23.11.04

O DIÁLOGO DA BATATA LUSA COM A BATATA CASTELHANA (Setembro 1999)

Exilado por uns dias noutro Continente, debaixo das últimas chuvas que se seguiram na cauda do furacão Floyd, não pude ver o debate em que o Dr. Portas levou consigo umas batatas. Nem sabem a pena que tive.
A história das batatas esteve para ser comigo nas europeias, na versão pera-rocha. O Dr. Portas pensou levar para um debate televisivo, após conveniente discussão com os seus publicitários, uma pera-rocha. Na época as palmetas não estavam acessíveis e levar um peixe para estúdio tem os seus problemas, porque senão podia ser que fosse a molhada palmeta em vez da verde pera. Tive ainda mais pena, porque o ridículo que cairía sobre o Dr. Portas, faria concerteza mais pela agricultura portuguesa, que a demagogia da pera.
Mas fiquemo-nos pela batatas. Eu estou imaginando o que cada uma das batatas diria à outra e estive para fazer este artigo ao estilo dos “apologos dialogais” de D. Francisco Manuel de Melo, fazendo conversar a batata lusa com a batata castelhana. Mas faltou-me o engenho, a arte e os pormenores. Os pormenores é que eram o fundamental e aqui o exílio pesa.
As batatas certamente teriam muito que dizer, em particular sobre o senhor que as trouxera à arreata para cima da mesa. Como é que elas tinham vindo do humus para aquela mesa? De jeep, num daqueles veículos de tracção às quatro rodas, com design e comprados pelo FEOGA? Ou de Audi, ou Mercedes? E da porta da televisão ao estúdio? Como é que elas tinham vindo? Nos bolsos do Dr. Portas? E não estragavam o fato? Num saquinho de plástico do supermercado? Numa pasta Louis Vuitton? Num saco Gucci? Comprou-as o Dr. Portas num supermercado ou foi um agriculto que lhas deu? Eram as batatas politicamente correctas, a portuguesa pequena e triste e a espanhola, cheia e lustrosa? Ou uma versão ainda politicamente mais correcta, era a portuguesa grande e borbulhosa, cheia de hidratos de carbono, e a espanhola luxuosa e cheirando a pesticida? Eram as batatas novas ou velhas? Estavam greladas ou não? Tinham pó? Estavam protegidas contra o escaravelho? Guardou-as o Dr. Portas no fim para as devolver ao agricultor, ou comeu-as, ou deixou-as para os cameraman , já que no aproveitar é que está o ganho? Ah! Se as batatas falassem….
Eu imagino o comentário indignado que passará pela cabeça do Dr. Portas: “ele está a gozar com a sorte dos agricultores portugueses para quem estas são questões de vida ou de morte….”. E fará o seu ar mais compungido.
Não, Dr. Portas. Quem não tem respeito pelos agricultores portugueses, como aliás não tem pelos reformados, pelos pobres, pelas famílias – é o actual presidente do PP. Usa-os, mas não os respeita. Nem pouco, nem muito, nada.
Porque se há coisa de que eu tenho a certeza absoluta é que o Dr. Portas não quer saber para coisa nenhuma nem com os pobres, nem com os agricultores, nem com os reformados, a não ser como votos.
Aliás, isto não é segredo para ninguém e apenas é iludido pela protecção e projecção que a máquina do Dr. Jorge Coelho dá ao Dr. Portas. Bastava ver e entender o que se conhece da carreira política do Dr. Portas, nas suas duas metades – como director de um jornal político e como dirigente do PP – para se perceber aquilo que ele uma vez distraído disse: que acha que os portugueses não valiam nada.
É o que ele pensa porque se pensasse outra coisa, não vinha com as batatas, com as vaquinhas, com as lições de moral.

19.11.04

DISCURSO DE ACEITAÇÃO DA CANDIDATURA AO PARLAMENTO EUROPEU (Abril 1999)

(…)

No momento em que se realizam estas eleições há, pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial, uma guerra na Europa. Há sofrimento, terror, mortes, destruição de bens e recursos, violação sistemática dos direitos humanos, "limpezas étnicas", crimes de guerra. A um ano do ano 2000 esta realidade trágica, que ninguém pensava até há pouco ser possível, lança uma sombra de preocupação sobre o próximo século, e obriga-nos a olhar para a construção da Europa com nova exigência.

Atravessada no passado pela cortina de ferro e pelo muro de Berlim, a Europa corre hoje o risco de ser dividida de novo por uma outra fronteira de desespero, ódio, incompreensão, miséria, e violência, que pode vir a dar origem ao crescimento e à emergência de um novo bloco político a Leste.

Mais perigosa do que no passado, essa ferida aberta na Europa, é hoje muito mais indefinida e volátil. Não é feita de liberdades domadas pela ditadura e pelo terror, mas da perda das esperanças, do ressentimento, da humilhação. É uma combinação perigosa, muito perigosa e que nos diz directamente respeito, porque essa esperança que se perdeu e que hoje se traduz em humilhação e ressentimento, é a perda de esperança na própria Europa e nas suas instituições e na sua força. Muita coisa falhou a Leste, mas entre as coisas que falharam conta-se a capacidade política integradora das instituições europeias que olharam com demasiada complacência o que se estava a passar.

As instituições europeias foram construídas desde a II Guerra Mundial exactamente para evitar o que hoje acontece. Foram feitas para evitar em primeiro lugar uma guerra na Europa, uma Europa que, desde que existe como identidade, nunca conhecera um período de paz tão longo como o que durou de 1945 até hoje. Essa paz foi feita pela Comunidade Europeia, pela União Europeia, pela OTAN, pelas democracias construídas na guerra fria, contra o totalitarismo. Mas hoje vê-se que não foi suficiente.

Nos últimos anos, o ideal europeu foi transformado numa questão de dinheiro, de fundos, de subsídios, e esquecemo-nos desta dimensão inicial e fundadora, aquela aliás que permitiu que a Europa se fizesse.

Frente ao momento mais perigoso das últimas décadas, assiste-se a um cepticismo europeu na opinião pública de muitos países, e a um crescente egoísmo nacional que as recentes dificuldades para concluir a chamada Agenda 2000 revelam.

Tudo isto aconteceu e está a acontecer numa Europa onde os socialistas são hoje governo na maioria dos países, logo responsáveis pelo governo actual das instituições europeias. Há quem não goste de ver isto lembrado, de tornar este factor invisível. Não é o nosso caso.

A Europa tornou-se crescentemente numa ideia administrativa e burocrática, denominada por uma retórica europeísta, a que faltava vontade política, o que sobrava em palavras. Em vez de se explorar completamente o que já existia no plano institucional e político, passou a querer-se cada vez mais resolver o défice de decisão pelo experimentalismo político, utópico e insensato.

Aqui corre-se hoje o sério risco de ver esgotado e não renovado o impulso que levou a ideia europeia do pós-guerra aos nossos dias, e que garantiu à Europa este longo passado de paz e de prosperidade.

A construção da União Europeia e do "euro" representam os momentos finais desse impulso hoje aparentemente esgotado. Os Governos socialistas, que hoje são maioritários, estão associados a esse cepticismo sobre a Europa, a que devem as suas vitórias eleitorais. Por detrás da retórica das boas intenções europeias, cresceram e viveram da falta de confiança no futuro da Europa.

Por tudo isto é vital voltar à Europa dos fundadores, voltar à Europa como ideia política destinada a garantir em primeiro lugar a paz, a segurança, o bem estar, a justiça social, os direitos humanos, e a democracia.

Os políticos que construíram a Europa - na sua esmagadora maioria democratas-cristãos - sabiam que só podia ser assim. E foi assim até à última grande revolução política que foi a unificação alemã, que convém lembrar foi também obra de um político democrata-cristão com a forte oposição dos socialistas

Esta intenção inicial foi progressivamente sendo esquecida.

Por tudo isto queremos falar da Europa com uma linguagem nova, com preocupações novas e ideias novas. É a Europa do fim do século que temos de defrontar no decurso do nosso mandato europeu, que será muito diferente da que originou o Tratado de Roma ou de Maastricht.

E nesta nova Europa as diferenças vão ser mais de visões políticas do que de modelos salvíficos, vão ser mais de qualidade dos homens políticos, do que de expressões de engenharia social europeia. Vão depender mais de escolhas dos povos em cada país, do que de decisões transnacionais. (…) Os problemas agora são outros - são de visão política e não de modelos de organização.

(...)
OS QUE MANDAM E OS QUE OBEDECEM (Janeiro 2003)

Há que clarificar para o comum dos portugueses as origens e as razões do actual debate institucional na UE , e do significado de propostas como as feitas pela França e Alemanha nas passadas semanas. Bem sei que isto é como falar da estrela Siriús, paradigma da distância, mas convém perceber-se que o que vai ser decidido nestas semanas pode vir a ser imposto aos portugueses.

Era necessário mudar o quadro institucional da UE devido ao alargamento ? À primeira vista tudo parecia indicar que sim : passando de 15 para 25 membros a UE poderia ter problemas de "eficácia" no seu funcionamento . Este foi o argumento principal que serviu de pretexto para o lançamento de uma série de propostas sobre a arquitectura institucional da Europa , que tiveram um período áureo quando todos os primeiros ministros europeus iam a uma universidade propor um grande plano para a Europa do futuro . Depois veio a Cimeira de Nice e o primeiro banho de água fria sobre esses grandes planos - juntos, numa reunião decisiva, os chefes de governo deixaram todos os planos no vestiário das universidades e passaram três noites a discutir votos , ou melhor , quem tem mais votos , porque é que eu tenho menos que tu , se ele tem mais votos eu também tenho que ter, etc . E, subitamente, todos os argumentos de "eficácia" deram origem a um sistema medido ao milímetro em função dos interesses nacionais respectivos e muito mais complicado do que era antes. No entanto, sobrava uma enorme má consciência - a maioria dos membros do Conselho sabia a enorme diferença que havia entre a barganha das posições de Nice e as proclamações retóricas do ano anterior e resolveram então criar uma organização , ou melhor um "processo" , que contribuísse para um novo tratado da UE fomentando "um grande debate europeu" . Essa organização, ao modelo do modo como fora preparada a Carta dos Direitos Fundamentais , seria uma Convenção agrupando deputados nacionais , eurodeputados e representantes dos governos .

Voltemos atrás, antes de ir para a Convenção outra vez . O argumento de "eficácia" em política é sempre suspeito e neste caso muito mais . De facto ele já fora utilizado para combater o alargamento em que Espanha , Portugal e Grécia acederam à CEE . No entanto , a experiência mostrou que quinze países , cada um tendo em potência e em plena igualdade o direito de veto , não fora impeditivo da construção da União , nem mesmo dos passos mais decisivos que esta dera desde os anos 50-60 , o tratado de Maastricht e a criação da moeda única . Se quisermos , a aparente ineficácia de uma instituição complicada revelava-se particularmente eficaz para conseguir uma coisa que nenhuma engenharia institucional daria : o sentimento de pertença em igualdade de circunstâncias e poderes virtuais a uma comunidade feita de interesse comum.

Foi isto que começou a ser rompido em Nice , quando se abriu a porta a coligações maioritárias e minoritárias de países e votos , formando blocos uns contra os outros , ou seja passará a haver vencedores e vencidos e é só esperar pelos inevitáveis efeitos dissolventes desse processo .Na verdade , a motivação escondida das noitadas de Nice , como aliás de muita retórica institucional , é um prosaico receio do alargamento , um medo que os países do alargamento , alguns dos quais todos sabem não estar preparados para aceder à União , viessem a alterar os esquemas de poder estabelecidos ou a exigir condições de paridade que os quinze não estão dispostos a dar , em particular no âmbito da agricultura e da livre circulação de pessoas .

Há no entanto outra razão para não aceitarmos o argumento da "eficácia" Na verdade , há problemas de "eficácia" na UE só que com uma raiz bem diversa das pretensas dificuldades institucionais de funcionar a vinte cinco. Eles radicam na continuada falta de vontade política dos governos para defrontar questões como a da política agrícola comum . Ora isso nenhuma reforma institucional vai resolver , porque envolve interesses nacionais de grandes estados que não estão dispostos a por em causa as suas clientelas eleitorais , como é o caso da França e da sua dependência política de uma agricultura fortemente subsidiada . O que aconteceu na ultima década , num período em que campeou uma geração de dirigentes europeus , cheios de belas palavras mas incapazes de actuar e de resolver os problemas , é que em directa proporção à sua demagogia europeísta , se reforçar os interesses nacionais dos grandes países em detrimento do impulso europeu . Foi nesta década também que a Comissão se enfraqueceu e o Conselho se reforçou. Exactamente ao contrário das intenções iniciais dos fundadores da Europa.

Voltemos agora à Convenção . A Convenção é também um resultado de um processo institucional que prima pela confusão e pela indefinição de poderes e responsabilidades . Em primeiro lugar , em bom rigor , ela não deveria existir dado que a instituição naturalmente vocacionada para cumprir o papel que foi atribuído à Convenção , era o Parlamento Europeu . Eleito directamente por todos os cidadãos europeus , ele tinha uma legitimidade virtual certamente muito maior do que um ressamblement de deputados nacionais escolhidos por quotas que deixavam de fora correntes políticas importantes , funcionários superiores dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros , e algumas personalidades avulsas escolhidas pelos governos . Ninguém verdadeiramente responde pelo seu mandato "convencional " e por isso também ninguém se sente aí representado . Quem é que decide quais são as posições dos membros portugueses da Convenção ? Ninguém , ou melhor , eles próprios em função das opiniões pessoais de cada um .

O problema da legitimidade política democrática da Convenção é real , e isso revela-se na sua incapacidade de cumprir uma parte do seu mandato : promover um grande debate europeu sobre a futuro da União . A meio dos trabalhos da Convenção já se percebeu que não há debate nenhum , a não ser o que já havia e que envolve uma pequena elite , e toda uma série de grupos de pressão que vivem à volta do establishment europeu e que existem em muitos casos à volta dos subsídios e dos empregos europeus . Aliás era natural que assim acontecesse porque nunca há debates políticos que não sejam associados a escolher políticas e ao voto, e se há coisa que os governos e a Convenção não querem é que haja referendos nem reforço dos poderes dos parlamentos nacionais sobre as grandes questões europeias.

Acresce que ninguém sabe qual o âmbito e valor dos trabalhos da Convenção , que agrupa no seu seio os mais convictos federalistas europeus que querem uma Constituição e uns Estados Unidos da Europa , com representantes dos governos que querem o que os seus primeiros-ministros vão acabar por decidir . E é por isso que iniciativas como a dos governos francês e alemão revelam toda a perversidade deste processo - havendo uma Convenção em curso no qual estão representados , aparecem a fazer propostas públicas que especificamente são do âmbito da Convenção , colocando-a ou sobre o seu diktat ou remetendo-a para uma penosa irrelevância . Os homens e mulheres da Convenção lá estão diligentemente a arquitectar uma Constituição europeia e vem os senhores Chirac e Schroeder dizer-lhes como é que vai ficar o resultado final . Porque , ninguém realisticamente imagina o "motor franco-alemão" a fazer estas propostas públicas para depois a Convenção vir a decidir-se por uma outra solução distinta e contraditória .
Infelizmente este estado de coisas - confusão institucional, falta de vontade política, adiamento dos problemas reais e permanente criação de falsos problemas - soma-se a outras tendências perigosas para o futuro do projecto europeu, no qual avulta uma crescente tentativa de alinhar a Europa com uma política terceiro mundista anti-americana.

Para contrariar estas tendências, o melhor seria permanecer fiel às lições dos construtores da Europa: reforçar a legitimidade democrática dos processos, usar a prudência e progredir por "pequenos passos". Discutir muito na base do enquadramento institucional presente, explorar as suas virtualidades e combater o perigo que a proposta franco-alemã enuncia: que haja uma Europa em que uns mandam e outros obedecem. Essa Europa não é de Schuman, Jean Monnet, e Gasperi.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 11 (Novembro 2004)

NÃO

1. A ENCOMENDA

A chamada Constituição Europeia é o resultado perverso de um equívoco e um sinal do que está mal na Europa. Foi assinada, com pompa e circunstância, pelos chefes de governo antes de ser submetida aos referendos previstos em vários países da UE, numa tentativa de criar um facto consumado. Isto devia estranhar, mas, vindo de instituições com um sério défice democrático, já não estranha, é o habitual. Parece que o Primeiro-ministro português, que toda a gente sabe que é um europeísta convicto, terá chorado emocionado no acto da assinatura. Agora só fala o dr. Portas chorar também, mas há-de se ver, porque dele há-de se ver tudo.
A Constituição Europeia nasceu do equívoco, da combinação entre um complexo de culpa face ao Tratado de Nice, e da necessidade de encontrar um mecanismo pelo qual os países que mandavam na Europa a quinze continuassem a mandar na Europa a 25. A encomenda que o Conselho Europeu fez em Nice e em Laeken era a de uma simplificação dos tratados, mais uma devolução de poderes aos respectivos países que abusivamente tinham sido “europeizados” e promover um grande debate sobre a Europa. A Convenção deveria formular recomendações sobre uma série de questões e a encomenda não falava de uma Constituição, cuja possibilidade era apenas suscitada como hipótese.
Depois, procurou-se um método que garantisse que o resultado fosse controlado pelos principais interessados neste exercício, ou seja a Alemanha e a França, em particular no que dizia respeito ao modelo institucional final da Europa a 25. Para o garantir seguiu-se o método de uma “Convenção” e escolheu-se para a presidir Giscard d’Estaing, que pouco antes tinha criticado duramente na Assembleia Nacional francesa os resultados de Nice como trágicos para o seu país. Iria ter oportunidade de os apagar do mapa.

2. O MÉTODO

O chamado “método convencional” foi uma ficção de democracia, uma forma de fazer funcionar uma assembleia híbrida, com muitos delegados sem mandato controlado, e que rapidamente chegou à conclusão que podia funcionar sempre em consenso sem votar. Votar, votava Giscard que fechava as discussões como lhe aprazia, “interpretando” o sentir dos “convencionais” em função das demografias nacionais, sempre sem a realização de votações. Ao lado da Convenção, o braço no ar do PCP é um excesso democrático.
Toda a Constituição foi por isso elaborada sem uma única votação, o que diz tudo sobre os “convencionais” e sobre a sua representatividade. Como os governos, numa fase inicial, não ligaram muito ao que a Convenção estava a fazer, com excepção dos que nela percebiam um reforço do seu poder, tudo foi deixado à rédea solta, ou seja às utopias políticas dos “convencionais”. Estes, naturalmente escolhidos entre os europeístas, até por indiferença dos outros, eram na sua maioria os mais federalistas e radicais defensores de uma forma de Estados Unidos da Europa, e viram aqui uma oportunidade única de forçarem um upgrade político da Europa, sem que para tal existisse qualquer manifestação da vontade dos europeus, nem boa-fé dos governos.
Desde o primeiro minuto assumiram como seu objectivo fazer uma Constituição, levando a Convenção muito para além dos objectivos definidos em Laeken. Já não se tratava de recomendações, ou de uma mera simplificação dos tratados num texto único, tratava-se de fazer uma “constituição” com o significado político que daí advinha. A ideia original de “devolver” poderes parecia absurda aos “convencionais” e por isso estes trataram de ainda mais reforçarem os poderes de Bruxelas. Quanto ao “grande” debate europeu, durante toda a Convenção, foi praticamente inexistente, seguiu apenas o ritmo habitual de colóquios e conferências institucionais, e a pequena controvérsia existente centrou-se apenas nas diferenças internas entre escolas de europeístas mais ou menos radicais. Para se medir o interesse dos europeus pela Convenção convém saber que o número de visitas ao seu site na Internet foi durante muito tempo inferior ao de alguns blogues portugueses.

(Continua)

PROPAGANDA DO “SIM” PAGA COM DINHEIROS EUROPEUS

Existe um establishment europeu, pago e financiado pelas instituições europeias, com muito dinheiro, pouca transparência e quase nenhuma prestação de contas nacional. Produz aquilo que se chama eufemisticamente “propaganda institucional” como este encarte que apareceu dentro de jornais portugueses esta semana. Lá se conta, em linguagem que Orwell reconheceria como do 1984, uma versão oficial do que é e como surgiu a Constituição Europeia. É um instrumento para a propaganda do “sim”. Este é apenas um exemplo de uma máquina europeia que financia a sua propaganda em Portugal, paga a funcionários e jornalistas, financia viagens, encomenda programas de televisão e de rádio, convida e desconvida para colóquios e conferências, promove pessoas e grupos que gravitam à sua volta. Toda esta máquina, que devia permanecer isenta face ao referendo, já está a funcionar a favor do “sim”.
Os partidos políticos, algumas associações de interesses e um grupo de europeístas profissionais dividem entre si as benesses deste establishment, no qual os instalados funcionam em círculos fechados em que só alguns têm acesso à informação necessária para obter este ou aquele emprego, este ou aquele subsídio, este ou aquele patrocínio. Tudo isto, (com um pouco mais de escrutínio para não funcionar como funciona), seria aceitável se a questão europeia estivesse acima da política e fosse consensual. Não sendo, porque razão tenho eu de financiar propaganda pelo “sim” à Constituição Europeia, se, no meu país, esta é uma matéria que está longe de ser encerrada politicamente? Se defender o “não” vou ter acesso aos mesmos financiamentos europeus para a propaganda das razões do “não”? Ou são só europeistas os que defendem o “sim”?

TRAIDORA TRADUÇÃO – A MELHOR HISTÓRIA DA EUROPA

Para quem queira ler a melhor história da Europa, incorporando muitas das investigações mais recentes, pensada e escrita para um grande público, na melhor tradição da história narrativa inglesa, Europe - A History do historiador Norman Davies é um prazer para todos os sentidos do intelecto. Devia ser obrigatória para se perceber o complexo de “histórias” de que é feita a União Europeia, e para se ter uma compreensão quer da sua necessidade, quer dos limites para a sua “engenharia”. A história pode empurrar para a arrogância, e todos os ditadores europeus gostavam das “lições” da história, mas hoje precisamos dela para nos ensinar a prudência. A Europa é um continente muito velho para andar a fingir que é novo, a correr quando deveria só dar passos seguros.

7.11.04

O TORRÂOZINHO DE AÇUCAR (Novembro 2000)

No dia em que o governo , num amável movimento consensual , daqueles que passam na televisão e o país gosta , ofereceu às suas crianças uma coisa chamada o “kit patriótico” , (assim mesmo em inglês , a língua do imperialismo , a língua da “pérfida Albion” , dito assim por políticos que recitam todas as manhãs ao pequeno almoço que "a sua pátria é a língua portuguesa “ ) , decidi reler um dos mais magníficos textos escritos em português sobre a pátria . Foi o "kit patriótico" que ofereci a mim mesmo.
É um texto de um estrangeirado , cosmopolita , acusado de não ser um bom português por um oficiante do patriotismo de quatro costados . O estrangeirado era Eça e o patriota Pinheiro Chagas e vem nas Notas Contemporâneas. O texto é uma execução em publico do “brigadeiro Chagas” como poucas existem em qualquer língua, um fabuloso texto irónico , em que cada palavra é afiada como uma agulha e cortante como uma navalha andaluza . É também um dos textos de mais fundo patriotismo , natural , “burguês” como escreve Eça , que se respira como gosto por um pais melhor e funda compreensão das razões porque ele é o que é .
Dei por mim a pensar , concerteza pela moleza dos sentidos que estas coisas da pátria trazem, que triste que era o facto das criancinhas que receberam o "kit patriótico" , nunca irem poder ler esta maravilha que a língua da sua pátria lhes pode dar , porque pura e simplesmente não percebem nada do que lá está escrito . Quem diz as criancinhas futurandas, diz os estudantes do presente e mesmo muitas das criancinhas do próximo passado , que são hoje os professores das que recebem o "kit" .
Vamos ao texto . Intitulado “Brasil e Portugal” e sob forma de um carta a Pinheiro Chagas , foi publicado em 1880 , há 120 anos , na Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro . Não era um texto erudito , mas uma crónica jornalística , antepassado nobre daquilo que nesta página se escreve , ponderadas as enormes diferenças de qualidade e mérito. Nas sua meia dúzia de páginas, fala-se de Sansão , do martírio de S. Estêvão , do padre Manuel de Macedo e do poeta Bocage , do Parnaso , da campanha do Rossilhão , de Arzila , dos carneiros de Panurgo , ou mais exactamente da “fila balante dos carneiros de Panurgo “, de Carlos Magno , o que era imperador , de Michelet, de Ajax , de Cochim e Cananor , das Molucas , da Monarquia de Frei Bernardo de Brito , das batalhas de Sadova e Sédan, , dos “paxás de Constantinopla” , dos “rajás da India” , dos “mandarins de Pequim” , do “bei de Tunis” , de Lançarote do Lago , de Galaad, do Santo Graal , de Belzebu , e das suas incarnaçoes em Darwin , Huxley e Zola , do exilado Ovidio e dos “brandos epigramas de Higino”. Para além disso há as “cãs” , a “verve fumegante” , as “operações cabalísticas” , o “minuete” , e o “in-fólio” , e muito mais que , sem dicionário , é hoje o mesmo que escrever chinês .
Dirão os próceres da nossa educação, para que é preciso tudo isto , palha para os dias de hoje , erudição sem sentido prático. Para que é preciso saber quem é o “bei de Tunis” ? Não é um peça de cutelaria, ou uma aldeia do Club Mediterranée ? E os “rajás da Indía “ sáo sorvetes picantes ? Estão a ver como eu sei ! E isso dos “paxás” náo sáo aqueles preguiçosos do Big Brother reclinados nos sofás ( ia escrever otomanas mas parei a tempo ... ) . E o “in-folio” vem no Kamasutra náo é ? Os “mandarins “ , ah , isso sei o que é , é um fruto que se come nos restaurantes chineses , não é ? Estou tão certo que aposto os 200 contos , a ver se sou milionário...
Lamento . É preciso saber muitas destas coisas , e muitas mais ainda , entre outras razóes , para ler Eça . Bem vistas as coisas , a maioria das referencias de Eça , que hoje parecem alta cultura , eram escolares e comuns na época . Circulavam nos jornais , apareciam nos discursos parlamentares , e serviam para afiar a caneta , como Eça fez sem ter dúvidas se os seus leitores o percebiam . Tinham como fonte a Bíblia , o catecismo , as gravuras de Epinal ( uma espécie de calendários populares que se colocavam no equivalente às oficinas de mecânica , só que em vez de mulheres nuas tinham santos e guerreiros ) , apareciam na primeira página dos tablóides da época como o Petit Journal , vinham das referencias clássicas que se aprendiam no latim da escola , entre as fábulas de Esopo e a Guerra da Gália , vinham da literatice dos salões , dos almanaques , da imprensa , e da memória recente de guerras e de batalhas . Pode-se descontar esta ultima parte , substituindo Sédan por Estalinegrado , que o problema subsiste intacto , porque também não estou a ver muito quem nas escolas saiba colocar a terra no mapa da Rússia .
Rebuscando na minha memória escolar , onde eu aprendi muitas destas coisas , também não encontro nenhuma razão para ter medo que me acusem de pedante por achar normal saber o que era o Parnaso . Na Religião e Moral e no catecismo aprendi os rudimentos da Bíblia , e lembro-me de ter ganho uma sabatina nas aulas porque fiz uma pergunta sobre Nabocodonosor . A condiçáo posta pelo padre era que só se podia perguntar sobre nomes que se soubessem dizer e eu treinei. Quanto ao bei de Tunis acho que foi numa história de piratas e reféns que vinha no Cavaleiro Andante , de onde aliás , em conjunto com Julio Verne , vieram os rajas , paxás , cossacos e mandarins. Mesmo Xenofonte encontrei-o num magnifico livro de leituras oficial do ensino técnico , onde o meu pai era professor , que tinha uma banda desenhada com a história da retirada dos dez mil . Nada de extravagante e podia repetir mil exemplos , que concerteza muita gente também poderá repetir . Até agora , a partir de agora não sei .
Não vale a pena recitarem-me todas as vantagens do ensino de massas , dizerem-me que esta ignorância se nota mais porque hoje o "povo" aparece na televisão e no tempo do Eça os mesmos que agora fazem a escolaridade obrigatória eram socialmente invisíveis a não ser quando se revoltavam , eram analfabetos e emigravam descalços nos porões dos barcos para o Brasil . Mas não é esse o problema , nem aí me enredam . A questão está em saber se para ilusoriamente se dar a todos aquilo que pouco mais é do que uma versão moderna do analfabetismo , - convém lembrar que os padrões mínimos entretanto subiram - , se destruiu o equivalente à elite burguesa e interessada para que Eça escrevia . Se , somado e subtraído tudo , não se está pior com menos gente em termos absolutos e percentuais a ter um mínimo de cultura geral .
Não é de erudição que falo , mas da mais geral das culturas , porque há algo de terrivelmente errado em que cada vez menos gente tenha a capacidade para ler este texto escorreito , divertido , sério , escrito num português maravilhoso . E quem diz este , diz muitos . E continuarmos felizes como o "brigadeiro Chagas" , com as grandezas da história pátria , quer na sua versão salazarista , quer do 25 de Abril , e a minar o futuro dela , com a nossa falta de rigor , disciplina , gosto , atenção e trabalho e dizendo felizes como o "brigadeiro" : "Portugal é pequeno , mas é um torrãozinho de açúcar " .
O ASSALTO AO INDIVÍDUO (Novembro 2000)

Há na discussão latente sobre os diferentes sigilos profissionais, dos médicos e advogados, e em muitos aspectos das leis fiscais que o governo e a esquerda querem aprovar, um aspecto particularmente malsão: o do contínuo reforço dos poderes do Estado para interferir na esfera privada dos cidadãos. Os motivos invocados são normalmente os melhores – a luta contra o tráfego de droga, o branqueamento de dinheiro, os interesses de terceiros ameaçados de ser infectados por doenças como a SIDA, a fraude fiscal – mas eu serei o último a ser convencido pela bondade das intenções, em relação às perversões que delas resultam. Em particular num país como Portugal, onde não há uma cultura cívica da defesa dos direitos e a administração se comporta com arrogância face ao cidadão, e é burocrática e prepotente.
O que me preocupa é a flacidez da resposta da sociedade a uma contínua erosão das liberdades civis e dos direitos individuais, a um assalto ao individualismo, numa sociedade em que estes valores nunca foram muito fortes. Anuncia-se que em matéria fiscal é suposto inverter-se o ónus da prova, é o contribuinte que tem que provar a origem e a legalidade dos seus rendimentos, não o Estado que tem que provar que ele mente nas suas declarações. Pode ser popular, pode ser eficaz em termos fiscais, mas é particularmente perigoso como generalização de uma atitude no qual o Estado se atribui o poder de dizer por meios administrativos que alguém é culpado. Isto, insisto, num país em que os direitos do cidadão face à administração são escassos, não são respeitados e esta tem uma mentalidade de omnipotência e desrespeito, e em que instrumentos de mediação, como os tribunais, não funcionam nem bem nem a tempo.
O sigilo dos médicos é outro exemplo. Quando é que começa e quando é que acaba, quando é que é legítimo obrigar os médicos a denunciar os doentes que têm SIDA e podem infectar outros, em nome de um interesse colectivo? À primeira vista parece razoável que isso se passe, mas basta que uma epidemia assuma maiores dimensões, reais ou imaginadas, para que não se esteja longe dos sidatórios que Fidel de Castro queria fazer em Cuba.
O mesmo acontece, com a facilidade com que um boato entra na informação corrente, nem que seja como "informação" sobre o boato. Numa altura em que os telejornais televisivos são cada vez menos informação, mas sim uma mistura de entretimento e publicidade para outros programas da estação que são tratados por jornalistas, como sendo matéria informativa do mesmo tipo da que se encontra no resto das notícias, as condições para a violação da privacidade são cada vez maiores. Será que a GNR e a PSP que se prestam a andar com jornalistas à procura de crimes em directo, informam aos que são interpelados por qualquer motivo - inocentes segundo a lei - que ninguém pode nessas ocasiões ser filmado sem autorização, ou está-se a criar o hábito de ser defrontado ao mesmo tempo pela polícia e pelas câmaras, num único acto de autoridade?
A pressão sobre a privacidade, a liberdade civil e a individualidade, reduz estes valores a direitos dos "mais ricos", e dos "mais fortes". O segredo, a descrição, a reserva, a acantonam-se cada vez mais junto do poder e reforçam esse poder, diminuindo a democracia. Não é segredo para ninguém que os verdadeiramente ricos não se expõem, e os verdadeiramente poderosos não têm as suas decisões escrutinadas pela "transparência". A forma como se tomam as grandes decisões em Portugal não são conhecidas da opinião pública, que se concentra nos políticos e em particular nos deputados, cujo poder é cada vez menor, num efeito de ilusão em que muitos estão interessados e em que muitos ingenuamente colaboram.
O comportamento da sociedade portuguesa faz lembrar o Big Brother e não é por acaso. O Big Brother é uma experiência social com cobaias humanas, "editada" para efeitos de entretimento, ou seja, algo que é proibido aos cientistas sociais fazerem. Mas isso não significa que não se possa aprender com o Big Brother, e muito. E uma das coisas que se aprende com clareza é que os que estão presos num enquadramento totalitário,– a casa é uma prisão, ou um asilo psiquiátrico, com o seu sistema de regras que não vemos na televisão, como seja parar para mudar as pilhas dos microfones de 5 em 5 horas –, tendem a punir a individualidade. Os que estão fora, a "audiência", tende a premiar a vítima, ou seja, actua pelo politicamente correcto. Estas atitudes não são contraditórias, são complementares.
As duas lógicas são um retrato social dos nossos dias portugueses: o governo, que se sente cada vez mais como os presos do Big Brother, responde reforçando as regras da prisão, e passando por cima dos direitos em nome da publicidade, e da recolha de dinheiro para as despesas. Com esse dinheiro, dá aos portugueses o equivalente à junk food que se come na casa do Big Brother. A audiência, nos seus fluxos de simpatia e antipatia é condicionada pela inveja e pelo ressentimento social. E quem tem poder não se vê, anda atrás dos espelhos vestido de negro para que o seu vago reflexo nas paredes não se perceba. Eles transportam, escondido por detrás das paredes, o olho colectivo dos nossos dias: uma câmara de televisão. Atrás dos vidros não há transparência porque há poder. O resultado é o assalto ao indivíduo, à individualidade, valores bem pouco apreciados em Portugal.

6.11.04

LAGARTIXA E O JACARÉ 10 (Outubro 2004)

MARCELO, SÓCRATES, SANTANA E GUTERRES


Porque razão o governo foi muito mais sensível ás críticas de Marcelo do que às de Sócrates? Porque é que as críticas de hoje de Sócrates não têm o mesmo efeito das de ontem de Marcelo? Porque razão foi estratégico para o governo obter, como obteve, o objectivo de o calar perante o seu milhão de audiência, mesmo com todos os custos inerentes, numa operação com saldo positivo para o governo? Porque razão as críticas de Sócrates são “moles”, e atiram ao lado (como a história da “legitimidade” do governo), e as de Marcelo põem o governo possesso e aos berros?
A primeira e óbvia razão é que as críticas que vêm de perto, do Mesmo, afectam mais do que as do Outro. As do Outro são do Outro, que se presume fazer críticas. Este é um aspecto importante, mas não o mais decisivo. O que tornava as críticas de Marcelo mais incomodas para o governo é que elas eram o reverso dos elogios de antes a Barroso. Elas vinham da memória do que foi o PSD de antes de Junho de 2004, e eram coerentes com o discurso político que o partido e muitos portugueses tinham durante o governo de Barroso, que Marcelo apoiava em dois ou três aspectos estratégicos, os mais importantes, como a política da “obsessão do défice”. (Já em política externa Marcelo estava mais próximo de Lopes do que de Barroso, por isso o que dizia era inócuo.)
O discurso sobre o défice não era uma conversa ocasional, nem Manuela Ferreira Leite uma ministra de transição. Pensava-se. O discurso do défice, a celebre “obsessão”, era a principal fonte de legitimação política de Barroso, que ganhou as eleições em grande parte porque o PS as perdeu com o descalabro das contas públicas. A ideia de rigor e austeridade como política a médio prazo, como política estrutural que iria posteriormente conduzir, mais do que conduzir, obrigar, à reforma do Estado tinha-se interiorizado em todos os sectores da vida pública. Mais do que isso: os portugueses compreendiam essa política e, mesmo contra o seu bolso, percebiam a sua necessidade. Este era o aspecto mais sólido da credibilidade do PSD e do seu governo.
Não é pois por acaso que a fúria do Primeiro-ministro, transmitida pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares, teve como pretexto uma comparação com o governo de Guterres a propósito da “ponte”, ou seja de uma manifestação de laxismo típica do passado que sempre se tinha criticado. Eu percebo a fúria: é que o governo com que Santana Lopes pode e deve ser comparado é mesmo o de Guterres, e isto estoura com a credibilidade e legitimação de um governo PSD. O ambiente é o mesmo, o facilitismo e as promessas são as mesmas, o fim da “obsessão pelo défice” aponta para o mesmo despesismo, a representação dos interesses no governo é idêntica, o desejo do controlo da comunicação social é o mesmo, a ausência de reformas (salvam-se as que foram herdadas na saúde e na habitação do governo anterior) é a mesma, a vontade de governar para a popularidade é a mesma. O maior crime é mostrar que o rei vai nu, que já estamos outra vez em festa conjuntural e não em dificuldades estruturais.
Como Sócrates não pode dizer isto, e fica encravado com um orçamento que não pode criticar porque segue a lógica do seu mentor Guterres, os que o dizem (Marcelo, em primeiro lugar, e à sua dimensão, este vosso autor) são os que fazem mais mossa e o alvo a abater. Com o PS pode o governo bem.

A PASTA DE DENTES QUE REGRESSA AO TUBO

A frase mais significativa da intervenção do Primeiro-ministro no tempo de antena foi: "Não dêem importância ao ruído que vai à nossa volta". Este é talvez o mais comum lamento de qualquer político, todos o fazem, todos o fizeram e todos o farão. É também o mais inútil de todos os lamentos, porque o “ruído” é o mundo exterior, é aquilo que os físicos designam por entropia. Sempre disse que os políticos deviam ter no seu gabinete, colocada na parede, uma frase de Max Weber que, parafraseando, diz “todos os políticos devem saber que a maioria das suas acções tem os efeitos exactamente contrários ao pretendido”. É isto o ruído, a vida lá fora.
Sem ruído, como o Primeiro-ministro deseja, as leis da física não se aplicariam dentro das fronteiras de Portugal, e a excepção, ou, como diriam os matemáticos, a “singularidade”, teria o epicentro no gabinete do primeiro-ministro, o local onde, como é obvio , não haveria qualquer ruído. Também seria o sítio onde a pasta de dentes regressa mais facilmente ao tubo do que sai dele, o calor volta aos caloríferos para aquecer de novo, as moléculas de perfume voltam ao frasco obedientes, as meninas e os rapazes regressam rapidamente do mundo do Balzac à adolescência e à infância. Ninguém cresce, ninguém se gasta, ninguém precisa de dormir a sesta. Não há ruído, só informação e dedicação.
A malta ruidosa do Monty Python devia gostar de ver o espectáculo de tal gabinete. Melhor do que o Ministério do “silly walking”.


O REINO DA SELVAJARIA

O país ciclicamente mostra uma parte de si mesmo, o reino da selvajaria, o atraso miserável dos nossos costumes, com a colaboração activa das melhores forças vivas da nação, com destaque para a comunicação social. Sim. O futebol, esse manancial de bons costumes e educação cívica revelou-se em toda a pujança, no seu esplendor de murros e pontapés, insultos e nomes chamados à mãe, à mulher e à irmã de qualquer dirigente desportivo. O megafone gigantesco das televisões, rádios e jornais desportivos, tablóides e de referência, mergulhou no brilho e na elegância do momento, para recolher o magnifico exemplo de virtudes cívicas da “bola”.
Nos outros países também é assim, dizem os desculpadores do costume. Quero lá saber, eu não vivo nos “outros países”, vivo no meu, onde a selvajaria do futebol vai muito para além dos imbecis amestrados das claques e tem dignidade de estado. Nunca a voz me doa a dizer isto.

MAR CÃO

A morte no mar é uma morte antiga, uma morte ancestral, uma morte que mexe na nossa memória de povo que já foi de marinheiros e pescadores. Nas vilas e cidades da costa, onde subsistem as últimas comunidades de pescadores, ela lá vem, todos os anos, com o seu gadanho, ceifar uns homens e uns miúdos que ganham a vida sempre no limite do perigo. Lembrar-lhes do poder do mar, da frágil fronteira que cada barco tem com um fundo escuro e verde e branco e azul, belo de fora, belo de longe, terrível de perto. Mata os homens e deixa as mulheres de negro, com raiva ao mar. Mar cão.