14.4.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 29

TEMOS GOVERNO


Agora que temos governo é que vai fiar mais fino. O país vai –se ajustando a uma desejada normalidade, passada a opera bufa (ver palavra) dos últimos meses. O retorno à normalidade é um mérito e, honra seja feita a Sócrates, foi reforçada por decisões do Primeiro-ministro como a de impor silêncio e a de reduzir as cerimónias a um mínimo, poupando-nos à fila de boys do “bloco central” a mostrarem-se no beija-mão. Bom estilo, sem dúvida. A questão está em saber se esta contenção tem como principal motivo limitar o desgaste e os danos de eventuais “trapalhadas”, ou encobre a ausência de políticas reformadoras.
Ver-se-á no futuro muito próximo, onde mais adiamentos são impossíveis, até porque o governo tem a virtuosa espada de Damocles do controle do défice em cima da cabeça. Benfazeja espada! E aqui já há um sinal negativo: a escolha de um “facto político” (ver palavra) para o discurso de posse – a venda de medicamentos comuns fora das farmácias. Não é que não concorde com a medida, e não concorde com o seu sentido subliminar de recado aos lobis farmacêuticos, os mais visíveis dos lobis nacionais. Tudo isso está bem, só que a escolha desta medida para o discurso obedece apenas a uma estrita lógica comunicacional, a dos célebres “factos políticos”, e não tem dimensão nem relevância para ser a única coisa que lembramos do discurso de posse. A economia, as finanças, o emprego, a educação, onde defrontamos problemas mais de fundo e onde a responsabilidade do governo é maior, e se decide sobre o escasso dinheiro, é que deveriam constar do discurso da posse. Desconfie-se sempre de medidas que são grátis para o estado, ou em poder ou em dinheiro, quando são estas as únicas bandeiras levantadas por um governo.
Por tudo isto, seria muito mau sinal se o governo tivesse estado de graça (ver palavra), porque isso significaria que não estava a fazer nada. Não há uma única medida das necessárias que não implique controvérsia e dinheiro ou poder. Essas é que medem a governação e essas exigem a máxima discussão e o natural confronto de opiniões, até porque tendem a ter um lado “ideológico”. O facto do governo iniciar as suas funções praticamente sem oposição exige, mais que nunca, que não o deixemos em paz.


OPERA BUFA


Veneza, que sabe destas coisas mais a dormir que nós acordados, dedicava três teatros à ópera séria, três à comédia e dois à ópera bufa. Nem suportavam outra dose, mesmo eles que criaram a comédia, que viviam entre “enamorados”, “doutores”, “capitães” e essa figura tão da nossa paisagem, o Pantalone. Mas, vista da ópera bufa, a comedia era pacífica, apesar do seu ruído, apesar da confusão.
Esta história do volta / não volta à Câmara de Lisboa que Santana Lopes alimentou não tem um único motivo que possa ser considerado útil, já para não dizer nobre ou elevado. Quinze dias para tomar uma decisão, mantida em segredo até passar do prazo para gerar especulações, só pode significar coisas pouco dignificantes. A menos má de todo é esta pulsão pela ópera bufa, em que se enterra tudo numa política de egoísmo que à volta só gera terra queimada. Como se houvesse uma vontade de punir todos, uma sede de vingança contra o PSD, que se vê assim mais longe de ganhar a Câmara, contra os seus vereadores e o Presidente substituto, Carmona Rodrigues, tratado indignamente, e contra os munícipes de Lisboa, como se fossem os culpados colectivos de terem destruído a ambição do “menino guerreiro”.


“FACTO POLÍTICO”

Ou seja, uma invenção verbal, uma frase, uma proposta, uma intenção, cujo único objectivo é funcionar como buraco negro para o debate e assim concentrar a atenção e reforçar as distracções. Sócrates, como a esmagadora maioria das pessoas da sua idade que se interessam por política, formou-se nesta escola que teve Marcelo como o criador e pontífice, e o Expresso como a sua encíclica e permanente Osservatore Romano. Mas os tempos já não estão muito para uma governação pela “factologia política”, e o Expresso é cada vez menos influente. Aliás suspeito também que não será da escola rival, a do Independente , ainda mais em cinzas, que surgirá a alternativa. A tabloidização da imprensa tenderá a engolir todo esse passado dos “factos políticos” versus “escândalos punitivos”, herdando de forma desigual mais a segunda escola do que a primeira.
Como será? Não sei. Mas sei como se pode fazer a pergunta: como se reconstituirá o pathos político num momento de normalização, longo demais para a nossa pressa e os nossos hábitos?


ESTADO DE GRAÇA


O meu programa escrito e não escrito é impedir o chamado estado de graça dos socialistas, ficam os leitores prevenidos. Talvez não tenha sucesso, mas não deixarei de tentar. Suspeito aliás que essa invenção da “graça” me parece bem pouco democrática: a política numa democracia é para dividir e não para unir, e “consensos” e respeitinhos temos nós a mais.
Veja-se um exemplo: as nossas elites europeístas querem despachar a questão do referendo, ou não o fazendo, ou fazendo-o a reboque de uma votação que o torne inócuo, colando-o a uma outra votação que o desvalorize.
Seja como for prefiro que ele se faça e, por isso, aceito a sua simultaneidade com outra eleição. Só que me parece melhor junta-lo à eleição presidencial, mais propícia a uma discussão mais global e menos paroquial da questão europeia. Contra mim falo, que defenderei o “não” no referendo e sei que Cavaco Silva, se for candidato presidencial, será um activo defensor do “sim”. Mas era mais coerente essa simultaneidade. Juntá-lo às autárquicas mantém um pouco da tradição de pequeno truque que nos últimos anos tem acompanhado as questões europeias: garantem-se os eleitores a reboque para um voto que não mobiliza ninguém, e reduz-se o debate ao mínimo sobre a Europa, que não estou a ver interessar a ninguém por essa altura. Como no fim de contas se trata apenas de uma diferença de poucos meses, vale a pena pressionar para que as coisas se façam com um resto de dignidade: nas presidenciais ainda há um espaço mínimo para o debate sobre a Europa, nas autárquicas, não.