23.6.05

OS TRABALHOS DO PRESIDENTE BARROSO (1) (Julho 2004)


O Pacto de Estabilidade

O Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) vai ser um teste ao novo Presidente da Comissão em dois aspectos fundamentais. Um é o próprio conteúdo do Pacto e as pressões para a sua revisão. Veremos se o novo governo português se junta aos socialistas e aos governos faltosos pondo em causa a validade do Pacto e exigindo ou a sua suspensão, ou a alteração do seu conteúdo, de modo a permitir políticas mais expansionistas. O outro aspecto do teste, e mais importante do ponto de vista institucional, é saber se a Comissão se vai manter firme na posição que Prodi tomou, uma das poucas relevantes em termos de afirmação da autoridade da Comissão, de considerar que a Comissão, como “depositária” do cumprimento dos Tratados, tinha sido posta em causa pela decisão do Conselho poupando à França e Alemanha as sanções devidas por violarem o Pacto. Esta posição mereceu a concordância do Tribunal de Justiça, pelo que a Comissão deve naturalmente aplicar essas sanções. Vamos ver o que o Presidente Barroso fará, embora o que está escrito no Pacto seja claro:

“As sanções consistem na obrigação de o Estado-Membro em causa efectuar um depósito sem juros, provavelmente associado a outras sanções não pecuniárias previstas no Tratado. Se a situação de défice excessivo não for corrigida no período de dois anos, o depósito é transformado em multa. O limite máximo para o montante anual do depósito equivale a 0,5% do PIB do país em causa.”

Um subproduto desta questão é saber qual vai ser a atitude da Comissão se Portugal voltar de novo a ultrapassar os 3% do défice, risco para que já fomos avisados.


A “Cimeira de Lisboa”

A “Cimeira de Lisboa” foi desde a origem uma das maiores colecções de ambiguidades da UE. Pensada como uma espécie de Plano Quinquenal para a economia e a tecnologia da Europa, foi apresentada por Guterres como uma competição com os EUA. Guterres disse aliás uma frase, muito semelhante à de Krutchov, sobre a “ultrapassagem” dos EUA em 2010. Krutchov apontara o ano 2000 para que a economia do socialismo soviético “ultrapassasse” a dos EUA. Os resultados estão à vista: a URSS foi para onde se viu, para o “caixote do lixo” da história, e, todos os anos, a diferença entre a Europa e os EUA é maior. O benchmarking revela que, em 2004, a Europa está mais atrasada face aos EUA em todos os critérios comparativos, do que no momento da célebre frase de Guterres. Saliente-se, de passagem, que um dos países que contribuiu para esse atraso foi Portugal, onde os objectivos da “Cimeira de Lisboa” estão longe de ser cumpridos. Foi este aliás um dos argumentos utilizados contra a nomeação de Barroso no Parlamento Europeu.
O problema da “Cimeira de Lisboa” não é a relevância das suas intenções, nem do problema de modernização tecnológica da economia europeia que suscita. É passar ao lado de qualquer análise de fundo dos problemas estruturais que explicam o atraso europeu, em particular os do sacrossanto “modelo social europeu”, uma receita a prazo para todos os desastres. Veremos se o Presidente Barroso consegue atacar o problema de frente ou se vai querer o melhor de dois mundos e não conseguir nenhum.


Referendos

A Constituição Europeia foi um dos maiores exercícios de défice democrático a que a Europa se entregou nos últimos anos. Não exigida a não ser por uma elite europeísta, assente em nenhuma necessidade vital (bastava um tratado que garantisse normas de funcionamento eficazes a vinte e cinco), realizada in camera, sem legitimidade nem escrutínio democrático, violando inclusive os termos da encomenda inicial (simplificar os tratados e devolver poderes às nações) com resultados inversos (complicou os tratados e concentrou poderes numa estrutura confusa e contraditória), a Constituição promete ser uma importante fonte de confusões e conflitos desnecessários nos anos que aí vêm.
Para tentar dar à Constituição uma legitimidade democrática que ela não tem, vários Estados vão realizar referendos, uns mais transparentes do que outros. Seja como for, o Presidente da Comissão vai ter que fazer campanha numa altura em que o eurocepticismo se revelou nas urnas em crescendo e defrontar o problema político da mais que provável reprovação da Constituição num ou mais referendos.


PESC

A política externa da Europa tem sido de uma irrelevância total. Desapoiada de qualquer ideia estratégica de fundo, a não ser uns restos de gaullismo metamorfoseados em anti-americanismo, a Europa foi incapaz de ter uma política activa até mesmo nas áreas da sua imediata influência e interesse: Médio Oriente, África, Rússia.
A sua acção permanece centrada numa política “olimpiana” de ajuda humanitária e ao desenvolvimento, a que não corresponde qualquer influência política acrescida. O caso mais exemplar é o do conflito israelo-palestiniano, onde a Europa surge como o principal apoiante e financiador da Autoridade Palestiniana, fechando os olhos à corrupção, ao desvio de dinheiros para grupos terroristas e para doutrinação radical e fundamentalista. Apesar disso, não tem nenhuma influência sobre aqueles que financia, minimamente comparável ao “Grande Satã” americano.
Veremos se o Presidente Barroso, com experiência nesta área, consegue ultrapassar a nulidade que Solana tem demonstrado, ou, caso se mantenha comissário, a habilidade pérfida de Patten, um dos mais capazes eurocratas (e mais do que isso) em funções. No entanto, a escolha da recondução de Solana, nas negociações de distribuições de lugares entre os grandes não indicia alterações significativas.


Maiorias e minorias

As novas regras, que implicam votações por maioria simples ou qualificada na UE, diminuindo as áreas onde permanece obrigatório o “consenso”, vão alterar o modo como as nações se vão relacionar entre si no quadro europeu. Embora muitas votações continuem a ter geometria variável, pode vir a assistir-se em matérias de fundo, como a economia, a defesa e a política externa, à formação de maiorias e minorias estáveis. Uns ganharão sempre, outros perderão sempre. O potencial de perturbação desta situação é grande, levando nações, ou grupos de nações, a considerarem que o equilíbrio entre os interesses europeus e os seus interesses nacionais está rompido. Já há indícios deste risco, nos tempos pós-iraquianos. O Presidente Barroso terá que usar toda a sua influência e autoridade para evitar esta situação, e para isso não pode ter a tentação de se aliar ao eixo franco-alemão, o núcleo de onde mais pode vir, a prazo (Pacto de estabilidade, reforma da PAC, política externa), uma maior intransigência negocial.

(Continua)

25.5.05

ATENÇÃO: OPERAÇÃO DE PROPAGANDA EM CURSO (Maio 2005)

Não é por nada mas não gosto que nos tomem a todos por parvos. E parece-me mais que claro que é isso que o governo está a fazer com as manobras a propósito do défice. É que em matéria de défice ninguém nasceu ontem, para o bem e para o mal, estamos todos cá há muito tempo.
Senão vejamos. Este que vos escreve não é economista e portanto do défice tem uma visão acima de tudo política, ou melhor, de economia política no seu bom e antigo sentido. Isto quer dizer que como em todas as coisas da sociedade e da política as soluções são várias e nunca são consensuais. A sua aplicação implica escolher entre quem ganha e quem perde com as medidas da solução, gerindo-se os interesses e resistências respectivos.
O nosso défice não tem mistério: a razão pela qual o défice aumenta tem a ver com a forma como é o nosso estado, a sua cara ineficácia e a sua relação com os que dele directamente beneficiam, ou por necessidade ou por astúcia social. A sociedade portuguesa, medianamente pobre e atrasada, proteccionista e sem mobilidade de qualquer tipo, fortemente subsidiada e agarrada como uma lapa a um estado clientelar explica porque o défice existe e porque razão ninguém o quer domar, a começar pela maioria dos portugueses. Este é um dos casos clássicos da fundamentação da democracia em que o voto não ajuda, só a “razão de estado”, o “bem comum”, o “bom governo”, o que está para além do voto, inscrito nos poderes do mandato representativo.
Este que vos escreve considera já há muito tempo ter a doença da “obsessão pelo défice”, aquela que impede que haja “mais vida para além do défice”, a doença de achar que fazia bem a Portugal o estado ter muito menos dinheiro, para ver se se abria uma oportunidade para não ter vícios. Não sei se é possível que, mesmo com pouco dinheiro, se possam eliminar os vícios, mas sempre se podia tentar. Foi esta doença que me levou a apoiar Manuela Ferreira Leite e Durão Barroso, e criticar Santana Lopes e Bagão Félix, que desfizeram em meia dúzia de meses o fragilíssimo edifício que herdaram.
A razão porque faço esta distinção é porque é não só injusto como errado meter todos no mesmo saco. Mais, hoje meter todos no mesmo saco faz parte da operação de propaganda política em curso, destinada a mostrar que todos foram iguais e a retirar legitimidade política às únicas tentativas, débeis que tenham sido, feitas nos últimos anos, para limitar o défice controlando as despesas. Convém não esquecer, agora que se fala de novo no “monstro” (aliás herança socialista), que Manuela Ferreira Leite, entre outras coisas, congelou os aumentos na função pública e não é coerente critica-la ao mesmo tempo pelo que fez para controlar o défice e acusá-la de nada ter feito.
O problema é que Manuela Ferreira Leite viu a sua política ferida pela quebra de legitimação que o abandono de Durão Barroso trouxe ao governo PSD-PP. Barroso tirou-lhe o tapete ao abandonar o governo e ao impedir a política de austeridade de ter a sua sequência natural que eram reformas como a da função pública. Barroso acabou por legitimar para trás o abandono de Guterres e criar um ambiente propício para que Sócrates, seu herdeiro, não tivesse que arcar eleitoralmente com os desastres do último governo socialista. Depois, de modo ainda mais grave, Barroso foi mais longe, ao entregar o governo a um despesista contumaz, que só esperava a mais pequena oportunidade para proclamar o fim da austeridade e a “retoma” e fazer um orçamento ficcional para ganhar eleições. Bagão Félix ajudou-o e por isso acabou mal a sua carreira governativa.
Eu e mais algumas pessoas andamos a dizer isto nos últimos seis meses, mas os socialistas disseram algo de completamente diferente. Os socialistas criticaram as políticas de contenção do défice, e assumiram posições sempre muito mais próximas das de Santana Lopes do que de Manuela Ferreira Leite. Com o habitual discurso errático também disseram muita coisa em contrário, mas certamente não padeceriam da “obsessão pelo défice” até porque todas as vezes que abriam a boca, e na campanha eleitoral abriram muito a boca, propunham medidas que agravavam o défice.
Muito bem. A essência da operação de propaganda em curso é que afinal o défice está muito acima do que se previa e o Primeiro-ministro mostra-se “preocupado”, coisa que não se percebe porque não estava antes dado que simultaneamente já dizia que o défice iria estar muito acima e ao mesmo tempo dizia que não iria ter, apesar disso, qualquer “obsessão” com ele. O mecanismo que os propagandistas repetem é “está ainda pior do que se esperava”, com a ajuda do Governador do Banco de Portugal que nos devia explicar porque é que ele, mais do que ninguém, só agora se apercebeu e porquê desse descontrole.
Há duas razões para este disparo do défice, mas o PS só quer falar de uma, e é por isso que o que está em curso é uma operação de manipulação da opinião pública e não uma avaliação equilibrada do problema do défice. A razão de que o PS quer falar é a que vem do orçamento fictício de Santana Lopes, que aliás o Presidente da República deixou passar para que os funcionários públicos fossem aumentados e para não se viver de duodécimos, o que talvez impedisse o actual disparo das contas. A outra, aquela de que ninguém fala, é que são os socialistas que estão no poder e que todos os dias acrescentam, por acção e omissão, novo rol de despesas. A estas somam-se outras bem mais perigosas que tem a ver com as expectativas para o consumo privado e para as empresas, positivas ou negativas, levando a gastar-se mais ou a ter medo de investir. Foram os socialistas que saltaram de felicidade pela revisão do Pacto de Estabilidade e a abertura ao furo do défice de 3%para fazer o “choque tecnológico”. E o bloqueamento do processo de acabar com as SCUTS não entra nas contas do défice? E a decisão de não usar despesas extraordinárias, medida que não é estruturante, mas tem valor conjuntural, não ajuda a duplicar os números? E depois são os milhões do “choque tecnológico”, é a nacionalização da Bombardier, são as promessas de reforçar a segurança social dos idosos, são as múltiplas promessas, ainda feitas ontem, que aos portugueses não serão pedidos “mais sacrifícios”.
Pode sempre dizer-se que ainda não há orçamento rectificativo deste governo e por isso tudo se passa devido às previsões irrealistas do anterior. É verdade, mas não chega, porque muitas medidas de contenção, mesmo pontuais e de emergência, já podiam ter sido tomadas e o que acontece é o inverso, abundam as promessas e as medidas que implicam o aumento de despesa. Os socialistas mostram não ter qualquer urgência com o problema, usando o estratagema da comissão verificadora do défice para adiar as medidas que se ignora se são de contenção da despesa pública ou de aumento de impostos. Que há a verificar que o Banco de Portugal não saiba ou não deveria saber?
É mais que evidente que o PS já é, desde o início do ano, o vencedor eleitoral previsível e depois o governante real há cerca de três meses. Como é que se pode falar do disparo do défice neste ano esquecendo que os socialistas já têm que ser chamados a assumir parte dessa responsabilidade? Este esquecimento é que mostra a manipulação da opinião.

13.5.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 35 (Maio 2005)

O ESTILO E O HOMEM


A discussão sobre o “estilo” do primeiro-ministro tem a sua graça, se não prenunciasse as habituais desgraças. O homem tem um estilo, diz Eduardo Prado Coelho, que nestas coisas de “estilo” é mestre. O seu “estilo” é único, frio, distanciado, a contrario das nossas tradições efusivas dos últimos anos, que, de Guterres a Santana Lopes (Barroso também é excepção), encheram a vida cívica de amor e carinho, beijos e afectos. De facto, se fosse só isso, eu também aplaudiria farto da pasta sentimental em que todos nos queriam meter para “passarem bem na televisão”, essa rainha da manipulação afectiva. Mas há um pequeno acrescento na argumentação de Eduardo Prado Coelho que revela a real nudez: Sócrates não quer fazer “reformas abstractas”, proclamadas mas nunca realizadas, mas sim medidas “pontuais”.
Temos pois um governo minimalista para quatro anos e aqui é que a coisa se põe feia. Eu não sou contra pequenas medidas que às vezes tem grandes efeitos, mas parece-me que elas tendem a ser um paliativo e não uma solução. (Já não me refiro à sua eficácia real). De novo, volto ao mesmo, também eu minimal-repetitivo: há ou não há problemas estruturais graves em Portugal que exigem mexer com interesses instalados e têm tanta urgência que não podem ser adiadas? Se me disserem que não, muito bem, pode o engenheiro Sócrates ficar na repartição pública a “inovar” pelos séculos adiante. Agora que todos dizem uma coisa diferente, incluindo os socialistas até ganharem as eleições: havia gravidade, urgência e muita coragem para tocar nos interesses. Se era assim, as medidas pontuais são uma distracção. Onde Guterres adiava e distribuía, Sócrates distrai-nos e também distribui.
O problema é que , para não dizerem que o resto da coluna é só contra a França, os franceses tem uma frase boa para explicar o que acontece quando se assobia para o lado: “chassez le naturel et il revient au galop". E nessa altura o “estilo” de pouco serve.


EU NÃO ACHO NORMAL…

que um antigo Primeiro-ministro, que todos os dias anuncia que está activo da política, diga, com todo o à vontade, que vai ser empregado de um “grupo financeiro” para funções no exterior (percebe-se que África é o target, como agora se diz), porque, como foi chefe do governo, “conheceu” muitas pessoas importantes.
Duvido. No duplo sentido, que seja reconhecido, e que tenha sobre a matéria qualquer competência específica em matéria internacional, que nunca revelou. Eu sei que muitos antigos governantes se dedicam ao negócio das influências, a serem instrumentos de lobbies, mas não me parece que seja coisa para se gabarem e andarem a anunciar aos quatro ventos. O silêncio, a reserva, costumavam ser obrigatórios para esta função, a não ser que o “grupo financeiro” não queira ir longe.
Enfim, não é novidade nem é o primeiro, porque também anda por aí, respeitadíssimo, um outro político sobre o qual o empresário que o empregava dizia que “estar junto do poder valia um milhão de contos”.


BAGÃO FELIX ENGANOU-NOS QUANTO ÀS DÍVIDAS FISCAIS DOS CLUBES, OU SÃO OS SOCIALISTAS QUE ESTÃO A CONTAR MAL A HISTÓRIA?

Não sei mesmo, mas desconfio que as duas coisas são verdade. Aliás duvido que alguém saiba o que se passa com as dívidas dos clubes de futebol ao fisco, a não ser a certeza claríssima de que eles não pagam como toda a gente tem que pagar e têm privilégios injustificados em empresas que estão sempre a fazer negócios de milhões. A verdade é que, sem se perceber nunca o que se passa, eles lá vão escapando, de governo para governo, no meio de alguma fúria pública, muita hipocrisia e ameaças explicitas do devedor que pelos vistos metem medo ao credor. Pensei que Bagão Félix não estava só a fazer bravado eleitoral, mas pelos vistos foi ingenuidade visto que deixou um equívoco despacho, que eu o ouvi defender com má consciência e frouxidão. Acima de tudo sem indignação correspondente aos decibéis com que nos brindava antes. Por isso alguma coisa haverá.
Agora os socialistas que não se encostem à frouxidão alheia para justificar a própria, porque se o estado não consegue fazer nada para que os clubes paguem as suas dívidas ao fisco, todo o combate pelo cumprimento das obrigações tributárias é visto como uma treta inconsequente.


PROTECÇÃO, PROTECÇÃO, PROTECÇÃO

Experimentem cantar a palavra como se fosse uma versão prosaica do Hare Krishna. O que ouvem é o novo hino da Europa, substituindo a “alegria” beethoveniana. Cantam os empresários a propósito dos têxteis chineses, cantam os intelectuais, por causa de Hollywood, cantam os sindicatos que não querem ver os polacos e os checos a estragarem o caríssimo e insustentável “modelo social europeu”.
Nessa versão moderna do Hare Krishna destacam-se os intelectuais. Um bom exemplo do papel que têm tradicionalmente os intelectuais, no sentido eminentemente francês do termo, que aliás pertence à história cultural da França, está à vista nos Encontros que o governo francês patrocinou nestes dias em Paris. A fina flor da intelectualidade europeia foi convocada para cantar a mantra do proteccionismo cultural anti-americano por Chirac e para ajudar à campanha pelo “sim” no referendo francês. Todo o encontro está cheio de equívocos, uns inocentes, outros consentidos, mas na “operação”.
No palco chiraquiano, o rocker francês (ainda não legislaram para que haja uma palavra francesa para rock…) é uma velha personagem da minha vida. Encontra-lo agora no espectáculo do “sim” e dos intelectuais é um tardio ajuste de contas pela Sylvie. Onde antes a França podia avançar e bem com Zola, agora avança com Johny Halliday, um típico subproduto americano.


EU SOU SUSPEITO

porque sou amigo do Vasco Graça Moura, mas que o último livro de poemas que publicou, Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves é um magnifico livro, é. Eu sou ainda mais suspeito porque alguns desses poemas foram publicados inéditos no Abrupto, e porque conheço noutros a “biografia” que lhe está por detrás. Também vivi a mesma Bruxelas, do regresso a casa à noite…Mas eu não suspeito de mim, sei que não sou propriamente partidário do amiguismo na crítica, e que o livro é magnifico, é. Depois, dentro do livro, eu sou também suspeito de gostar daquele movimento entre falas e autorias, que caminha de um poema para outro, e um é de Horácio em latim e Graça Moura em português que soa a latim que soa a português, outro é uma tradução, mais à frente uma versão, mais à frente uma citação. O poema de Blake do tigre, “brilho em brasa”, caminha assim entre palavras dele e nossas. Eu sou suspeito de gostar de ler um livro assim porque acho que este é o cerne da poesia ocidental, uma conversa interior entre textos, uma “alta” conversa mas mesmo assim uma conversa, de corpo para corpo, de tempestade para tempestade, de música para música, de verso para verso, de palavras para palavras, de emoções para emoções. Um dos poemas fala disso, do mundo que já coube e que já não cabe na poesia, mas fala na voz de um “fabro” como Dante chamava a Arnaut Daniel e Eliot a Pound. E o Vasco está no cerne dessa tradição central do “fabro”, a mais clássica de todas, da poesia que se ergue como uma fábrica de palavras, em que os sentimentos são fortes porque são domados por disciplinas antigas como os decassílabos, para não serem vulgares, sendo, como humanamente são, vulgaríssimos.

18.4.05

MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (Abril 2005)

(1)

1. O PSD tem dentro de si vários “partidos” num só partido. O PS também, mas em menor quantidade, por isso é que o PSD é “o partido mais português de Portugal”, velha classificação que está longe de ser apenas propagandística, mas é também descritiva. Nos últimos dez anos, o PSD tem vindo a perder os “Portugais” que cabiam dentro dele. Mais: tem vindo a perder os “Portugais” mais dinâmicos socialmente, aquilo a que tenho chamado o equivalente moderno dos self made man originais, sem os quais qualquer programa de reformas deixa de ter base partidária e eleitoral de apoio. E isso reflecte-se de uma forma evidente no enquistamento do partido, na degradação do seu património de quadros, na cada vez menor influência social, muito para além das suas vicissitudes eleitorais, talvez até o último indicador que escolheria para retratar tal processo. O problema do PSD é começar a ter só um Portugal ou dois dentro de si e a ser mais um partido do Portugal do passado do que do futuro. Este dilema não será resolvido no Congresso, mas é o dilema que pesará em cima de qualquer liderança que não queira ser transitória, ou pior ainda, ajudar a aprofundar o divórcio entre o PSD e a sociedade portuguesa.

2. Como todos os partidos democráticos o PSD foi construído depois do 25 de Abril por dois factores: um, a resistência ao PCP e ao PREC; outro, no estado e a partir do estado. O primeiro mecanismo de construção, - partidos “feitos” pela resistência ao avanço comunista e radical de 1974-5 - , foi comum ao PSD e ao PS, que também praticamente não existia antes do 25 de Abril. Ambos são o que são por essa característica genética da fundação da nossa democracia, 48 anos de Estado Novo e dois de PREC, que marcou o equilíbrio esquerda-direita para muitos e bons anos. Depois apareceu o “centro” que os ideológos da “esquerda” e da “direita” dizem que não existe, mas, para infelicidade eleitoral de ambos, existe mesmo e “manda”.
E “manda” porque as sociedades ocidentais são suficientemente complexas para não caber nas dicotomias ideológicas de um mundo apenas construído pela combinação da herança da revolução francesa com a revolução industrial. Hoje há outras “revoluções” em curso que viraram a página, entre as quais, a gerada pela “consciência do fim” termo-nuclear, que deve ser repensada no terrorismo apocalíptico, e a existência de novas tecnologias perturbadoras do político, entre as quais a engenharia genética, e aquilo que se chama, um pouco impropriamente, a “revolução mediática”. Em Portugal, uma vez estabilizada a democracia, entramos no mesmo curso político das outras democracias, geramos um “centro” que vota solto, ou menos preso, e que, mais do votar, “comanda” o voto.

3. O segundo factor, - a construção dos partidos pelo estado - , é o mais fácil de descrever: para combater o PCP, o único partido que tinha emergido da ditadura com um aparelho político nacional e que mostrou, desde os primeiros dias depois do 25 de Abril, ter intenções hegemónicas, os partidos democráticos usaram o estado para crescer e se consolidar. Fizeram-no através do exercício do poder político, partidarizando as estruturas da nova democracia para poderem colocar lá os “seus” e não os de Salazar ou do PCP, atribuindo-se privilégios de controlo do espaço público, e garantindo o monopólio da acção política aos partidos de eleitores em detrimento dos partidos de militantes.
Estes mecanismos de controlo, – de que são exemplos os impedimentos a listas de independentes para a Assembleia da República, ou aos eleitores de escolherem a ordem de nomes dentro das listas apresentadas –, já tiveram o seu tempo e hoje devem ser repensados de modo a permitir maior papel dos eleitores nas formas da sua representação. Muitos outros mecanismos que tinham uma função “construtiva” no iniciar da democracia, tem hoje efeitos perversos e geram uma crise da representação.

4. O PSD de Sá Carneiro e dos outros fundadores assentou na sólida formação política que todos eles tinham, com base na doutrina social da Igreja, no conhecimento da social-democracia europeia ao modo alemão e nórdico, e na experiência portuguesa da “ala liberal” do marcelismo. Tinham preocupações com os direitos cívicos, com a pobreza e o atraso da sociedade portuguesa, olhavam para a Europa comunitária como um modelo, e eram “desenvolvimentistas”. Para cumprirem o seu programa precisavam de acabar com as imperfeições democráticas que sobravam do PREC, tendo tido sucesso mais rápido no plano político, e mais lento no plano económico, porque o PS bloqueou, muito mais do que devia, a revisão da parte económica da Constituição. Este processo teve como momentos políticos principais depois de 1976, a vitória da AD, a primeira alternância real do poder democrático; a vitória de Soares na primeira volta das eleições de 1985, contra os restos do basismo de Pintasilgo e o plano comunista de “igualizar”, fragilizando o PS, com a junção de votos PRD e PCP com Zenha; e por fim, a maioria absoluta de Cavaco, tendo como consequência o primeiro governo que defrontou uma sociedade política essencialmente democrática e de economia de mercado. Privatizações e abertura do espaço televisivo, ambos obra de Cavaco, representaram, junto com a entrada na UE, os últimos momentos definidores do contexto actual da nossa política. A partir daí houve desenvolvimentos, não houve mudanças.

5. O PSD foi construído, numa primeira fase, no topo, com quadros que tinham vindo da oposição liberal do regime marcelista, da chamada “ala liberal”, oriundos das listas na fase inicial da transição marcelista, da SEDES, do Expresso, dos círculos católicos ligados à doutrina social da Igreja, e, numa expressão menos significativa, de algumas figuras da oposição republicana e maçónica mais moderada à ditadura. Eram na sua maioria, como era típico da elite política de um país pobre e pouco desenvolvido, advogados e juristas. Na base, o PSD recolheu os restos das estruturas locais da ANP, e começou a recrutar as suas “bases” entre os notáveis e “homens bons” locais, entre os pequenos empresários e comerciantes, na altura alguns dos sectores mais dinâmicos do Portugal do interior. A estes sectores somaram-se emigrantes e retornados, ambos sectores igualmente com grande mobilidade social. Foi esta composição que permitiu a classificação do PSD como partido dos self made man, gente independente do estado, que tomava conta da sua vida e que queria “progredir”. A estes juntaram-se jovens que nas escolas defrontavam a hegemonia comunista e esquerdista, e que, mais tarde, vão começar a fazer variar a composição profissional do partido, com mais engenheiros, mais economistas, mais médicos.

8. Só para termo de comparação, o PS formou-se de forma bastante distinta. O partido tinha um núcleo político e ideológico forjado na oposição, vindo quer de pessoas que eram antigos comunistas, quer de notáveis republicanos e mações. Depois do 25 de Abril, agregou rapidamente funcionários públicos, professores, e elementos das profissões liberais urbanas. Um número escasso de quadros sindicais, dos bancários, dos seguros e dos empregados de escritório, ligaram-se ao PS, assim como certos grupos profissionais como os pescadores. Enquanto no PSD entraram os quadros locais da ANP, no PS entraram personalidades de topo dos governos de ditadura, algumas das quais da Maçonaria. O PS era um partido mais envelhecido que o PSD, com pouca juventude e, de um modo geral, englobando pessoas mais dependentes do estado.

9. Com os anos, e com a estabilização da democracia, os dois partidos foram recebendo outros fluxos. Os antigos esquerdistas entraram para o PS e o PSD, por esta ordem. Alguns jovens da extrema-direita pós-25 de Abril entraram para o PSD. O PS recebeu também quadros comunistas oriundos de sucessivas cisões “renovadoras”. À medida que o comunismo ia perdendo o seu poder de atracção, a maioria dos intelectuais aproximava-se do PS, assim como o sector cada vez mais importante nas cidades da “animação cultural”, enquanto o PSD começava a apelar a economistas e gestores e aos “negócios”, como nunca acontecera até então. Crescendo por cima e por baixo, em quadros e experiência, os dois partidos iam abandonando a precariedade inicial e transformavam-se em grandes partidos nacionais, alternando no poder e … começando a parecer-se, embora as diferenças ainda fossem muitas.

MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (2)


9. O último Congresso do PSD demonstrou à saciedade todos os perigos de implosão do partido, que referi no artigo anterior e, embora tivesse dado um passo no caminho certo, revelou a um observador comprometido, as enormes dificuldades que há que contornar, já não digo para fazer voltar o PSD à governação, mas para manter o papel do partido na vida política portuguesa.

10. Luis Filipe Menezes representou a continuidade da experiência Santana Lopes, sem nenhuma mudança significativa. Os votos que recebeu e a recepção que o Congresso lhe propiciou são um bom exemplo para a reflexão sobre o que está mal no PSD. Os discursos de Menezes foram retoricamente sempre melhores do que os de Marques Mendes, como aliás os de Santana Lopes foram sempre melhores do que qualquer outro dirigente do PSD. Não é isso que está em causa, e nem sequer é preciso salientar que nos Congressos, que têm um aspecto ritual, isso é importante mas não pode ser o decisivo. Só que isto é o que menos o partido precisa, nem de excessos de “alma”, nem de retórica. Precisa de reflexão e de racionalidade para compreender o que se está a passar à sua volta e dentro de si.

11. O próprio facto de a comunicação social ter passado três dias a valorizar esta dicotomia, para acentuar o seu lado espectacular, ou seja, valorizar o estilo de Santana e de Menezes, diz-nos alguma coisa sobre as dificuldades de um retorno à realidade. Tudo isto por uma razão muito simples e sobre a qual ninguém se pergunta: porque razão é que o país e os eleitores, a começar pelos eleitores do PSD, não valorizam por aí além os arroubos sentimentais desses dirigentes? Menezes, que como Santana Lopes é intuitivo, percebeu-o quando gastou todo o seu último discurso a falar da questão da “credibilidade”. É, o problema é a credibilidade e os excessos afectivos não chegam para a mostrar e consolidar, quando se percebe que o que se diz é pouco e errado.
Não admira que Menezes tivesse muitas palmas quando falou sempre como se o PSD estivesse no clímax do seu poder, como se estivesse sólido e maioritário, podendo fazer ao PS todas as farroncas que desejasse, esquecendo a comezinha realidade do partido estar na oposição a uma maioria absoluta do PS para quatro anos e só contar, por um cabelo, para uma maioria constitucional. Se muitos congressistas não querem ver a realidade debil do PSD e preferem alimentar um autismo cego, o partido não se regenerará.


12. O segundo paradigma é o consensualismo e o medo do conflito. Marques Mendes foi censurado pelo único momento em que no Congresso um candidato esteve coerente com a tradição de ruptura do passado, ou seja quando criticou o estado do partido e a responsabilidade primacial de Santana Lopes. (Deixou de lado a de Durão Barroso, cuja fuga a meio de mandato e condicionamento da sucessão o torna co-responsável). Era isto que era habitual num partido que não costumava ter palavras mansas consigo próprio. Até agora.
Aqui os media atacaram Marques Mendes por criticar Santana Lopes, porque, ao fazê-lo, “ia perdendo o Congresso”. Ainda bem que não perdeu, mas se o perdesse teria feito a sua obrigação. Unanimismos falsos e salamaleques em nome da honra da família destroem a política. Nos momentos decisivos, os media estão sempre no seu discurso implícito a favor daquilo que renegam no seu discurso explícito, e é por isso que são muito conservadores. Foram eles que fizerem Santana Lopes (e o desfizeram) e foram eles que iam fazendo Menezes.

13. A reflexão sobre as “imagens” comunicacionais deve continuar a ser feita, porque o Congresso revelou como o paradigma espectacular é dominante na leitura dos media, e como estes mesmos media favorecem o show ao conteúdo. O problema é quando se elimina o espectáculo e se coloca no papel as frases magníficas e se vê que elas significam muito pouco, são incoerentes e remetem para soluções mal pensadas e inaceitáveis. O problema de Santana Lopes era passar-se para o papel o que ele dizia, no meio dos “com todo o respeito”, e com Menezes era a mesma coisa, embora, faça-se justiça, menos.
Se tomássemos a sério o monumental exercício de massagem do ego dos delegados e da “camisola” que foi toda a intervenção de Menezes no Congresso, o PSD deixaria de ser um partido democrático com mecanismos de representação para passar a funcionar em assembleia de democracia directa. Menezes prometeu a todos tal poder, que, se aplicasse o que propõs, não ficaria com nenhum, não lideraria nada no dia seguinte. O partido viveria de sucessivas reuniões de presidentes de secções que decidiriam tudo: deputados, delegados, presidentes das Câmaras, vereadores, políticas.
As suas propostas levariam a tornar a democracia representativa partidária numa democracia directa, o que significa que apenas os mais activos teriam voz, e não seria surpresa, encontrarmos no fim o mesmo partido fechado sobre si mesmo que temos agora. Até a sua proposta de directas, tem que ter condições prévias para não ser manipulada pelo aparelho partidário, a começar pela individualização da militância, acabando com os pagamentos colectivos de quotas e com centenas de falsos militantes inscritos para engordar artificialmente as secções e aumentar o número de delegados, que depois são eleitos por meia dúzia de pessoas.


14. O papel de Santana Lopes só não foi absurdo porque é mais do que isso: reprovável até ao limite. Não assumiu uma única responsabilidade do que se passou, atirou as culpas para um título de jornal, imediatamente desmentido pelo próprio jornal (nem se pergunta porque é que o efeito de um raríssimo desmentido de um jornal, não funcionou a seu favor, como aconteceu a Bush nas eleições americanas), para um comentador de um programa de debate que passa à noite num canal de cabo, e para um ministro que se propôs como candidato, caso ele perdesse. Só o caso do ministro era grave, mas aí ele não fez nada.
Santana Lopes foi ao Congresso para se vingar, para apoiar Menezes, para fazer chantagem sobre os que o queriam criticar e para, pela sua presença, condicionar o Congresso e o partido. Não me surpreendeu, como não me surpreende nada, que force a candidatura de Lisboa, que force a candidatura presidencial, que faça tudo para que Cavaco perca e Marques Mendes falhe. É isto que significa o “vou andar por aí”.


15. Neste contexto penso que se percebe as minhas objecções ao modo como actuou o “grupo” à volta de António Borges, cujo efeito prático foi bloquear a mais que necessária crítica ao passado imediato, favorecer Menezes e enfraquecer Marques Mendes. A não ser a “marcação do terreno”, ela própria ambígua, a sua acção só reforça a ideia da transitoriedade e pouco ou nada contribui para a renovação que se pretende, acabando por ser muito mais complacente com a deriva populista, de que resultou o péssimo resultado eleitoral, que Marques Mendes. Se quisermos ser directos e usar os “ismos”, mesmo na sua imprecisão, há que ter em conta que o “nogueirismo” resistiu melhor ao “santanismo” do que o “barrosismo” e outros “ismos” de elite. Com raras e honrosas excepções, uma certa elite do partido conviveu melhor com a deriva populista do que o eleitorado social-democrata e muitos militantes que recusavam com vigor, coisas como a campanha negativa e o culto de personalidade do “menino-guerreiro”.

16. É evidente que não está em causa nem as pessoas, nem a qualidade da sua intervenção, nem sequer o seu papel fundamental de trazerem mérito profissional e social reconhecido de fora para dentro do partido, que é para mim o mecanismo fundamental que deve presidir às carreiras políticas. Mas convinha que não existissem dúvidas que se fosse António Borges ou Manuela Ferreira Leite a estarem no papel de Marques Mendes, a tentarem uma ruptura com a “vida” que o partido leva, teriam sido triturados pela mesma máquina que se voltou contra Marques Mendes. Manuela Ferreira Leite seria apontada como a principal responsável pela derrota do partido pela sua política de austeridade e António Borges descrito como “sulista, elitista e liberal” e cristão-novo. A complacência com que foram recebidos é envenenada, como se vê analisando o modo como muitos delegados votaram simultaneamente em Menezes para a liderança do partido e na moção de António Borges.

17. Ora a moção e os discursos que a apoiaram independentemente dos seus méritos individuais e qualificações na sociedade – e são pessoas como essas que o PSD precisa - não demarcavam nada, não só em termos políticos e ideológicos, como na reflexão sobre o partido, não se diferenciando nem em relação a Marques Mendes, e acima de tudo, nem a Menezes e a Santana Lopes. E isso, neste Congresso e nos tempos de hoje, nada muda, conserva.
Se, e este se é importante, este “grupo” (e a verdade, minha querida Manuela, é que se actuou como grupo…) tivesse apresentado uma alternativa política ao programa de Marques Mendes, se contribuísse para identificar o que está mal no partido, não teriam qualquer estado de graça e isso talvez os levasse a compreender os problemas que Marques Mendes tem que defrontar quase sozinho e fragilizado pela sua actuação.
Para a semana, voltaremos a Marques Mendes.

14.4.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 31

É AGORA QUE SE ESTÃO A FAZER AS ASNEIRAS, DEPOIS É QUE ELAS SE MANIFESTAM


Tenho para mim uma regra, que a realidade costuma confirmar, que as grandes asneiras dos governos são normalmente tomadas nos primeiros momentos do exercício de funções. Tenho depois observado outra regra, que vem em pacote com a primeira, que estas asneiras são normalmente invisíveis quando são feitas, só se tornando evidentes quando os seus efeitos entram pelos olhos dentro de toda a gente. A essa observação acrescento outra: uma das razões porque são invisíveis se deve a toda uma panóplia de mecanismos que as protegem do escrutínio que deveriam ter e ou o adiam para o futuro, quando tudo já está entornado, ou as defendem no presente por razões de forma e não de conteúdo. Um destes mecanismos é o chamado “estado de graça”, espécie de tributo que o vício velho de todos os dias pensa que paga à virtude do novo, enquanto é novo. Todos os governos o tiveram, sim mesmo esse em que estão a pensar o teve, só que curto e fugaz, quando um coro de comentários afinava pelo diapasão do “o homem não tem lepra”, “vão ver que ainda nos surpreende”, “não subestimem as suas qualidades”. Os que disseram tudo isto já não se querem lembrar, mas a gente lembra-se por eles.
Os mecanismos comunicacionais ajudam também a este efeito de invisibilidade porque agora é o silêncio e a calma que são a novidade, onde antes era o barulho e a agitação. Vindos do psicodrama da campanha eleitoral, cheios de política até aos cabelos, na verdade cheios de politiquice, a dos políticos e a dos jornalistas, a comunicação ama a novidade antes da substância, que em bom rigor por ela não passa, e dedica-se a protegê-la com todas as forças. Há cumplicidades políticas, mas, no essencial, é o corso-ricorso dos tempos: o actual é aquele em que uns golfinhos aparecem mortos numa praia e são notícia de horário nobre. Será que os golfinhos são imortais e estes a excepção? Se calhar.
Ouço um coro a dizer em fundo: lá está o homem a dizer mal, mas porque é que ele não dá o benefício da dúvida? Conheço o coro contra os comentadores, vindo de outros comentadores, sobre os malefícios da função. Eu já caí nesse erro, no longínquo ano de 1987, acabava de se dar a revolução da primeira maioria absoluta e eu pensava que agora ia ser diferente, que o espírito do tempo ia descansar e tornar-nos outros, que havia um antes e um depois. Escrevi-o no Semanário, então um jornal, e Júdice, e bem, criticou a ingenuidade.
Há uma simples razão para tudo isto: o país em que acordamos a 20 de Fevereiro não é diferente daquele em que adormecemos a 19. Tem os mesmos problemas e, o que é mais grave, tende a não ter soluções, tende a ter adiamento das soluções, tende a ter as mesmas falsas soluções. E isso é o que se está a escolher agora, por estes dias, nos gabinetes do governo e nenhum indício melhor de que é assim do que o alívio com o fim do Pacto de Estabilidade, talvez a única coisa que, de fora para dentro, nos podia induzir a fazer reformas a doer. Deixou de doer lá fora, respiramos outra vez nos nossos tradicionais maus hábitos. Falaremos daqui a uns anos.


FIM DO PEC, PRINCIPIO DE COISA NENHUMA 1

Toda a história do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) é exemplar do que é a União Europeia dos dias de hoje. O PEC foi um complemento natural da moeda única e destinava-se a defende-la dos malefícios da inflação induzida pelo aumento do défice, que se esperava fosse a prática habitual dos países mal comportados, nomeadamente, Portugal e a Grécia. O PEC teve nos alemães os seus grandes defensores porque, com o fim do marco sólido e a sua troca com um euro que ainda não se sabia o que ia ser, eles queriam todas as garantias que não passavam de melhor para pior. A ironia da história foi que países como Portugal, contra o qual o Pacto foi feito, se esforçaram por cumprir o défice e a Alemanha e a França o deitaram fora pelas mesmas exactas razões contra as quais ele foi concebido: para proteger o “modelo social”, para combater o desemprego através dos gastos públicos em nome do “crescimento”. A simultaneidade do fim efectivo do Pacto com a recusa da directiva sobre a liberalização dos serviços retrata melhor do que tudo o estado da velha Europa: encostada a um canto, cada vez menos competitiva, defensiva do que tem hoje e hipotecando o amanhã.

FIM DO PEC, PRINCIPIO DE COISA NENHUMA 2


Tudo no Pacto e na sua história hipócrita é pouco virtuoso e ninguém verdadeiramente o defende, quase sempre pelas mesmas razões: os estados não querem ser limitados a gastar, os governos querem ganhar eleições ou pelo menos não as perder. No entanto, para Portugal, o Pacto tinha uma virtude: a tentativa, mesmo embrionária, de cumprir o Pacto empobrecia o estado e obrigava-o a prazo a ter que se reformar. Barroso inicialmente incorporou-a, ao escolher Ferreira Leite, depois hesitou; Lopes deitou-a pela borda fora na primeira oportunidade, e Sócrates transformou o seu abandono definitivo numa política virtuosa. Sempre o disse e repeti, é saudável o sufoco financeiro do estado porque obriga a prazo a ter que haver reformas que, sem uma forte pressão ou um estado de aguda necessidade, nunca se farão. O estado e o governo estrebuchavam por todo o lado, tentavam todos os paliativos e más soluções: tentavam aumentar as receitas a todo o custo, tentavam poupar onde não deviam para gastar onde também não deviam, faziam mil e um artifícios para nos enganarem, tudo para não tocar nas despesas que sustentavam o seu poder, a sua glória e a sua ineficiência. Mas lá chegaria o dia…
Agora já não chega, vamos voltar a uma espécie de “Fundo Social Europeu II”, chamado “choque tecnológico”. Mil licenciados vão inaugura-lo em nome da “modernização” das empresas, mas na realidade em nome do combate ao desemprego com o dinheiro público. Já há dinheiro outra vez, começaram os vícios.


A TRADUZIR: GELO

Onde está a “ultima fronteira”? Dentro ou fora, longe ou perto, alto ou baixo, no ar, no mar ou em terra? Verdadeiramente não me importa, porque me contento com pouco e, para o pouco com que me contento, a Antártida chega. Nunca lá fui e está no meu programa de vida ir. Não é que não tentasse, embora sem sucesso. Quando recebi um ou outro convite de países para fazer visitas e me disseram “escolha onde quer ir”, a minha primeira resposta foi “à base Amundsen-Scott não me importava de ir, ou à McMurdo talvez…”, ou “pode ser SANAE IV… ou Marion se não for possível”…Não podia ser. Um pouco incomodados lá me explicavam que, enfim, a Antártida não é bem território nacional e que o acesso às bases é difícil e as prioridades são para cientistas. Tretas, claro. Porque as bases dos diferentes países estão localizadas na parte do território que reivindicam – veja-se o Chile e a Argentina – e muitas tem militares e funções militares. À falta de ir, vou lendo sobre a Antártida e este livro de Stephen L. Pyne é do melhor que há. E sobre a Antártida há coisas muito boas.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 30


CRIME, VIOLÊNCIA, RAÇA, SEXO, CULTURA E NAÇÃO



A ideia politicamente correcta de que não se deve nomear a cor, nacionalidade (no caso de emigrantes) ou qualquer outro pormenor que possa ser considerado racista, sexista, ou xenófobo, nas notícias dos crimes, é só e apenas isso: politicamente correcta. Na prática, censura-nos uma informação que devíamos ter: a relação entre a criminalidade e os factores sociais e culturais onde ela encontra raízes. Nos crimes não há (não deve haver) desresponsabilização individual por razões “sociais” e muito menos “explicações” colectivas que desvalorizem o acto criminoso, e é insensato pensar que não há ”meios” de cultura favoráveis que incluem hoje a cor da pele, a idade, os padrões de consumo “cultural”, e o “ambiente”, a ecologia dos sítios. É veA rade para os lavradores que matam por águas e marcos do terreno; para os perdidos do mundo dos escritórios e da função pública que matam por ciúmes; para os mil e um “espertos” de todas as economias fora do fisco, sempre na linha entre a corrupção activa e passiva; para os ciganos, eternos vendedores e compradores de tudo que se compra e vende; para as máfias da emigração, que exportam métodos expeditos de “protecção” e punição; e para os desenraizados violentos dos subúrbios negros e, a prazo, islâmicos.
As recentes mortes de polícias não foram obra de “bandos de pretos”, mas uniram no assassinato duas realidades do crime: a nova criminalidade violenta e agressiva dos bandos de negros de segunda geração, ou seja portugueses filhos da primeira geração de emigrantes das nossas antigas colónias de África, e o submundo da “noite” do subúrbio, bares, casas de alterne, prostituição, tráfico de tudo, drogas e armas, economia paralela, ainda dominantemente caucasiano branco, ainda dominantemente português, embora a nova emigração do leste lhe dê um braço armado mais pesado.
Em ambos os casos as explicações “sociais” são mais que conhecidas, em particular para a nova criminalidade violenta ligada a grupos de jovens negros: vida de gueto, segunda geração sem a vontade de integração dos pais, sem a subserviência da emigração que veio da miséria absoluta e aceitava tudo, sentindo o racismo da sociedade branca como ninguém e respondendo-lhe com uma procura de identidade no crime e na violência. Muito centro comercial, muito filme americano, muito rap, muito jogo de vídeo, nenhuma escolarização, e, na cabeça, a violência como afirmação de força e identidade. É um problema sério cuja versão light se encontra todos os dias nos bandos que habitam o Colombo e outros centros comerciais, ou em que miúdos assaltam miúdos à porta de tudo o que é escola.
Depois há os grandes negócios clandestinos de sempre, a prostituição, a droga, as armas (este em crescendo), e todo um mundo de oportunidades na “indústria da noite”, a dos ricos e a dos pobres. Uma nova riqueza consumista, dinheiro mal ganho por todo o lado, no “estado social”, na economia clandestina da construção civil, nos jeitos e “biscates”, nas lojas que nascem e desaparecem sem que ninguém as perceba, na lavagem de muito dinheiro, tudo isto atraí uma competição sem tréguas, onde habitam personagens não muito distintas das da “Quinta das Celebridades”, quer as vindas de Cascais quer as da Brandoa.
Aqui Portugal mudou e muito e precisa de o compreender sem ser aos sobressaltos televisivos de cada crime. Precisa de outros polícias, outros magistrados e, num ou noutro caso, de novos procedimentos adoptados a uma realidade mais cruel. Mas precisa também de outras escolas e outros subúrbios, porque estes, feitos pela ilegalidade consentida de autarcas e governantes, vieram do crime e da pobreza e perpetuam o crime e a insegurança.


“CHOQUE TECNOLÓGICO” E “ESTRATÉGIA DE LISBOA”


A ênfase do governo num “choque tecnológico” é uma opção política que merece ser discutida por mais do que o título progressista nos iluda. Há sobre esta matéria duas maneiras de ver a tecnologia na sua relação com a economia, no fundo, do “choque tecnológico”: uma, a americana, outra a europeia. Já para não confundir as coisas acrescentando a indiana, a singapureana (que subsume a chinesa) e a japonesa que está em decadência no Japão, mas floresce em Taiwan e na Coreia.
Anunciada com grande fanfarra por Guterres, e criada quase pela mesma equipa que nos dá hoje o “choque tecnológico”, a “estratégia de Lisboa” era o sinal de partida da competição económica da Europa com os EUA. Deveria transformar, numa década, a Europa na economia mais competitiva do mundo, e ser medida por métodos de avaliação. Essa medição, talvez a única coisa benéfica que sobrou, mostra o completo falhanço da “estratégia de Lisboa” – a Europa atrasou-se e muito dos EUA. A meio caminho do prazo estabelecido, muitos dirigentes europeus não se coíbem de a criticar abertamente apontando para razões estruturais na própria concepção dessa “estratégia” e que estarão por detrás do seu fracasso.
Entre essas razões estará a rigidez do chamado “modelo social europeu”, a falta de espírito empresarial nos sectores chave da investigação, nas universidades e entre os jovens e a enorme dependência do estado e dos seus monopólios actuais ou deixados de herança nas privatizações, nos sectores das novas tecnologias. Se a isso acrescentarmos o papel crucial que tem na economia e investigação americanas os avultados investimentos militares, percebemos a diferença entre a mobilidade americana e a rigidez europeia. O debate sobre a “directiva Bolkenstein”, recusada quase liminarmente por países como a França, é só mais uma verificação da “closed shop” europeia.
O “choque tecnológico” de Sócrates é uma herança da “estratégia de Lisboa” com todas as suas ambiguidades: apela ao investimento privado, mas depende acima de tudo do investimento público. Dificilmente se vê como num país que trata o “caso Bombardier” como se esta fosse uma empresa nacionalizada, onde as universidades como a de Coimbra, que tem vagamente relações com o sector privado, se acham já “mercantilizadas”, onde ser funcionário público é uma aspiração que move milhares de jovens, onde fazer uma empresa é igual a abrir uma loja de roupa ou um bar ou um cabeleireiro, se pode ir mais longe do que tecer estratégias de resistência e de recuo, de velhas sociedades perdidas no seu pequeno conforto imediato e incapazes de assegurar sequer a reprodução desse conforto.


A CRENÇA NA INDIGNAÇÃO E NA VERGONHA


Também já a tive, mas perdi-a. Não é preciso ir mais longe e ver Fátima Felgueiras na televisão a falar de alto, como se fossemos nós que lhe devemos alguma coisa e não ela às leis do seu país e, presumivelmente, ao bom uso dos dinheiros públicos; ou lendo mil e umas entrevistas assinalando “regressos” de pessoas acusadas de histórias por esclarecer que continuam a ficar por esclarecer e continuam a ser populares e desejadas, logo desculpadas. Este limbo de impunidade, já o pensei, na minha inocência, que provocava a ira popular. Hoje desconfio muito dessa falsa indignação e vergonha, porque, nos momentos cruciais, os “populares” mostram uma esplendorosa complacência com os prevaricadores.
Fátima Felgueiras tratada na televisão como vítima da justiça, negociando os seus directos, atirando-nos com a sua condição de “perseguida”, recebe não indignação, mas um encolher de ombros quando não um apoio explicito. Vai-se a Felgueiras, à terra, e vê-se esse esplendor da complacência. Aliado ao medo. Pudera. É de ter.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 29

TEMOS GOVERNO


Agora que temos governo é que vai fiar mais fino. O país vai –se ajustando a uma desejada normalidade, passada a opera bufa (ver palavra) dos últimos meses. O retorno à normalidade é um mérito e, honra seja feita a Sócrates, foi reforçada por decisões do Primeiro-ministro como a de impor silêncio e a de reduzir as cerimónias a um mínimo, poupando-nos à fila de boys do “bloco central” a mostrarem-se no beija-mão. Bom estilo, sem dúvida. A questão está em saber se esta contenção tem como principal motivo limitar o desgaste e os danos de eventuais “trapalhadas”, ou encobre a ausência de políticas reformadoras.
Ver-se-á no futuro muito próximo, onde mais adiamentos são impossíveis, até porque o governo tem a virtuosa espada de Damocles do controle do défice em cima da cabeça. Benfazeja espada! E aqui já há um sinal negativo: a escolha de um “facto político” (ver palavra) para o discurso de posse – a venda de medicamentos comuns fora das farmácias. Não é que não concorde com a medida, e não concorde com o seu sentido subliminar de recado aos lobis farmacêuticos, os mais visíveis dos lobis nacionais. Tudo isso está bem, só que a escolha desta medida para o discurso obedece apenas a uma estrita lógica comunicacional, a dos célebres “factos políticos”, e não tem dimensão nem relevância para ser a única coisa que lembramos do discurso de posse. A economia, as finanças, o emprego, a educação, onde defrontamos problemas mais de fundo e onde a responsabilidade do governo é maior, e se decide sobre o escasso dinheiro, é que deveriam constar do discurso da posse. Desconfie-se sempre de medidas que são grátis para o estado, ou em poder ou em dinheiro, quando são estas as únicas bandeiras levantadas por um governo.
Por tudo isto, seria muito mau sinal se o governo tivesse estado de graça (ver palavra), porque isso significaria que não estava a fazer nada. Não há uma única medida das necessárias que não implique controvérsia e dinheiro ou poder. Essas é que medem a governação e essas exigem a máxima discussão e o natural confronto de opiniões, até porque tendem a ter um lado “ideológico”. O facto do governo iniciar as suas funções praticamente sem oposição exige, mais que nunca, que não o deixemos em paz.


OPERA BUFA


Veneza, que sabe destas coisas mais a dormir que nós acordados, dedicava três teatros à ópera séria, três à comédia e dois à ópera bufa. Nem suportavam outra dose, mesmo eles que criaram a comédia, que viviam entre “enamorados”, “doutores”, “capitães” e essa figura tão da nossa paisagem, o Pantalone. Mas, vista da ópera bufa, a comedia era pacífica, apesar do seu ruído, apesar da confusão.
Esta história do volta / não volta à Câmara de Lisboa que Santana Lopes alimentou não tem um único motivo que possa ser considerado útil, já para não dizer nobre ou elevado. Quinze dias para tomar uma decisão, mantida em segredo até passar do prazo para gerar especulações, só pode significar coisas pouco dignificantes. A menos má de todo é esta pulsão pela ópera bufa, em que se enterra tudo numa política de egoísmo que à volta só gera terra queimada. Como se houvesse uma vontade de punir todos, uma sede de vingança contra o PSD, que se vê assim mais longe de ganhar a Câmara, contra os seus vereadores e o Presidente substituto, Carmona Rodrigues, tratado indignamente, e contra os munícipes de Lisboa, como se fossem os culpados colectivos de terem destruído a ambição do “menino guerreiro”.


“FACTO POLÍTICO”

Ou seja, uma invenção verbal, uma frase, uma proposta, uma intenção, cujo único objectivo é funcionar como buraco negro para o debate e assim concentrar a atenção e reforçar as distracções. Sócrates, como a esmagadora maioria das pessoas da sua idade que se interessam por política, formou-se nesta escola que teve Marcelo como o criador e pontífice, e o Expresso como a sua encíclica e permanente Osservatore Romano. Mas os tempos já não estão muito para uma governação pela “factologia política”, e o Expresso é cada vez menos influente. Aliás suspeito também que não será da escola rival, a do Independente , ainda mais em cinzas, que surgirá a alternativa. A tabloidização da imprensa tenderá a engolir todo esse passado dos “factos políticos” versus “escândalos punitivos”, herdando de forma desigual mais a segunda escola do que a primeira.
Como será? Não sei. Mas sei como se pode fazer a pergunta: como se reconstituirá o pathos político num momento de normalização, longo demais para a nossa pressa e os nossos hábitos?


ESTADO DE GRAÇA


O meu programa escrito e não escrito é impedir o chamado estado de graça dos socialistas, ficam os leitores prevenidos. Talvez não tenha sucesso, mas não deixarei de tentar. Suspeito aliás que essa invenção da “graça” me parece bem pouco democrática: a política numa democracia é para dividir e não para unir, e “consensos” e respeitinhos temos nós a mais.
Veja-se um exemplo: as nossas elites europeístas querem despachar a questão do referendo, ou não o fazendo, ou fazendo-o a reboque de uma votação que o torne inócuo, colando-o a uma outra votação que o desvalorize.
Seja como for prefiro que ele se faça e, por isso, aceito a sua simultaneidade com outra eleição. Só que me parece melhor junta-lo à eleição presidencial, mais propícia a uma discussão mais global e menos paroquial da questão europeia. Contra mim falo, que defenderei o “não” no referendo e sei que Cavaco Silva, se for candidato presidencial, será um activo defensor do “sim”. Mas era mais coerente essa simultaneidade. Juntá-lo às autárquicas mantém um pouco da tradição de pequeno truque que nos últimos anos tem acompanhado as questões europeias: garantem-se os eleitores a reboque para um voto que não mobiliza ninguém, e reduz-se o debate ao mínimo sobre a Europa, que não estou a ver interessar a ninguém por essa altura. Como no fim de contas se trata apenas de uma diferença de poucos meses, vale a pena pressionar para que as coisas se façam com um resto de dignidade: nas presidenciais ainda há um espaço mínimo para o debate sobre a Europa, nas autárquicas, não.

A LAGARTIXA E O JACARÉ 28


CONTRA OS NOSSOS INTERESSES E A CAMINHO DA IRRELEVÂNCIA

O “caso” do governo com a escolha de Freitas do Amaral é mesmo um caso e deve ser tomado a sério. O “caso” não é a ida de Freitas do Amaral para o governo socialista, nem a sua legitimidade, sem ser apoucado ou diminuído na sua integridade, por ter mudado de campo político. O “caso” está em que se Freitas do Amaral quer ser levado a sério pelas suas ideias e posições quanto àquilo que o levou a apoiar o PS nestas eleições, não tem sentido não o levar a sério nas posições que tem tomado nos últimos tempos em matéria de política externa. Ora, se tomarmos a sério a substância e mesmo a tão importante forma dessas opiniões, elas significam uma profunda inversão da nossa política externa em relação a aspectos do nosso tradicional posicionamento internacional. (Deixo de lado que Freitas do Amaral é também um federalista europeu com posições muito mais avançadas na defesa desse federalismo do que os federalistas envergonhados que abundam no PS e no PSD).
Ora não adianta esconder que a política que se fará no mundo, e nos sítios mais quentes do mundo, a começar pelo Médio Oriente, será a política definida pelos americanos da administração Bush, porque mal ou bem, é ela o motor das alterações políticas na região, do road map, à retirada síria do Líbano. Aquilo mesmo que parece hoje ser uma conversão dos EUA ao “multilateralismo” europeu, materializado nas visitas de Bush e Rice, é muito mais um desenvolvimento normal, e normalmente corrigido, do quadro de pressupostos que levaram os EUA à intervenção iraquiana. Os europeus que sabem, sabem muito bem que é assim, embora para se justificarem nas suas cedências as atribuam ao outro.
As posições de Freitas do Amaral, coerentes com as de Mário Soares, se forem tomadas à letra como acção governativa irão conduzir Portugal não só para a ultra-periferia do seu sistema atlântico de alianças, que ainda ninguém explicou porque é que deixou de servir os nossos interesses, e para um vazio diplomático que também já não serve aos interesses europeus. É do interesse da Europa aproximar-se dos EUA até porque sem o fazer será irrelevante em áreas vitais para existir diplomaticamente como o Médio Oriente. Ora um ministro dos negócios virulentamente anti-Bush está condenado a ser um anacronismo e a empurrar-nos para a irrelevância. Como aconteceu com a Espanha de Zapatero, que conta muito menos do que a de Aznar em quase tudo.


OS GAROTOS QUE BRINCAM COM A MEMÓRIA PORQUE A NÃO TEM NEM QUEREM TER

Poucas vezes vi o porta-voz do PS tão certeiro, no uso da sua qualidade de “portador” de uma voz, como quando classificou a atitude da direcção actual do PP de enviar o retrato de Freitas do Amaral para a sede do PS: “garotice” disse ele e disse muito bem. A palavra faz-nos lembrar uma característica do PP desde que Portas e Monteiro mataram o CDS, o partido é dirigido por jovens adultos arrogantes, indelicados, mal-educados e radicais, “garotos” em suma. Não é só de agora, já vem de há muito, nós é que estamos muito esquecidos do que o CDS era e o PP é. Não admira, o ofício principal dos garotos é destruir a memória, porque a memória ata e eles querem ter as mãos livres, e a memória ensina e eles acham que já nasceram ensinados, porque a memória obriga a pensar e eles só acreditam nas intuições rápidas dos “animais” políticos. É um estilo.


A IRÓNICA VITÓRIA DA JSD

Noutros tempos as vitórias da JSD costumavam ser medidas pelo seu grupo parlamentar. Agora como ele é inexistente, talvez valha a pena fazer uma introspecção sobre o seu papel no “santanismo” triunfante do passado e decadente no presente. Mas a ironia destas coisas é que ela é a verdadeira triunfadora simbólica das últimas eleições assumindo funções de verdadeiro “colo” para três dos dirigentes dos cinco partidos parlamentares, que fizeram escola nas “juventudes”: Santana Lopes, et pour cause, Sócrates e Portas antigos militantes da JSD. Talvez por isso, Jerónimo de Sousa aparecesse aos portugueses como a única pessoa normal, com o lastro da experiência de uma vida normal, sem ter nascido político de carreira, nem assessor ministerial, e vivido na alcatifa protegida da política profissional e do estado.


PACTO DE ESTABILIDADE

Toda a história do que vai mal na Europa pode vir a ser contada à volta do Pacto de Estabilidade. Exigido por alemães para ameaçar e punir Portugal e a Grécia nos seus maus hábitos orçamentais e para defender no euro a herança do marco; violado pelos franceses com jactância para defender o “seu” emprego e pelos alemães e portugueses por incompetência governamental; re-violado, se tal é possível, por franceses e alemães que se arrogaram o direito de exigir não serem sancionados por um acordo que tinham assinado quando pensavam que era para os outros; tri-violado quando os mesmos franceses e alemães impuseram à Comissão Prodi a inconsequência da sua violação e assim a tornaram ainda mais frágil; vai agora ser alterado pela grandiloquência arrogante de Chirac, com o “chanceler” ao lado, porque convém aos seus governos para que haja “crescimento”, ou seja, para o estado gastar mais e se ganharem eleições. Sempre unidos, sempre cegos, a quererem convencer-nos que os males da Europa estão no Pacto e não no “modelo social europeu” que os défices estão a pagar hipotecando o futuro.


SETA PARA A FRENTE, SETA PARA TRÁS

A cada vez mais clara diferença de velocidade de futuro entre os EUA e a Europa perpassava como uma epifania na conferência organizada pelo Presidente da República e dirigida por Manuel Castells. Os americanos falavam do crescimento do acesso sem fios à Internet e mostravam os mapas da cobertura que ia da Califórnia rica às reservas de índios, “americanos nativos” como se diz, parte da América pobre. Apareciam os exemplos e eles vinham de milhares de pequenas companhias, algumas com pouco mais de mil assinantes que serviam a sua comunidade, introduzindo inovações tecnológicas importantes que iam saindo das célebres garagens de onde também saiu a Apple e o MSDOS. No wireless as caixas de batatas fritas falsas da Pringle foram as primeiras antenas. Qual é a abissal diferença que entra pelos olhos dentro? O “espírito do capitalismo”, o espírito empresarial que impregna tudo, jovens que lêem o Popular Mechanics, universitários com talento, investidores argutos com imaginação na ponta do seu dinheiro e claro… todos ganham. Na Europa, fala-se de “novas tecnologias” e é o estado ou os gigantescos filhos dos monopólios do estado que contam. Estavam todos na sala a ver o mundo novo passar longe e depressa.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 27

E AGORA JOSÉ?

O “José” dos políticos é difícil de definir. No fundo, os portugueses não são o mesmo José: há “Josés” yuppies, e “Josés” trolhas, há “Josés” betos e “Josés” da passa, há “Josés” que são “Marias”, metade dos portugueses são “Marias” que o nosso machismo inclui-as na pergunta dos “Josés”, há “Josés” funcionários e “Josés” desempregados. Por aí adiante.
Que querem estes “Josés” todos? Coisas diferentes, contraditórias e hostis entre si. Contrariamente aos que, de há muito, anunciaram a sua morte, a velha “luta de classes” continua a existir. Não se faz ao modo que Karl Marx enunciou, mas ao modo que Balzac, Tolstoi, Ibsen, Kafka , entre outros, descreveram. Invejas, ressentimentos, apaziguamentos, revoltas, curiosidades, ambições, dinheiro, falta dele, a terrinha dos pais ou o apartamento em Massamá, medos e seguranças, makes the world go around. Esta dinâmica, às vezes apenas uma mecânica, do mundo faz-se por uma miríade de desejos e expectativas, nem todos gloriosos, nem todos socialmente aceitáveis nem enunciáveis, nem todos bons, nem todos perversos. Mas faz-se. Move-se, embora muitas vezes para trás.
Para um jovem empresário que queira fazer uma empresa ex-novo a burocracia é o seu inimigo. Gostaria de chegar a um Centro de Formalidades das Empresas e sair de lá com o que precisa no mesmo dia. Mas se viver na província, ou, se mesmo em Lisboa, tiver que lidar com algumas burocracias firmemente estabelecidas, prepara-se para um longo calvário. Do outro lado, está uma miríade de funcionários que nunca tiveram preparação, nem tem as literacias para atenderem com eficiência quem ocorre às repartições. Estão habituados a mandar no seu pequeno cacifo, e a atrasar ou acelerar, a informar, ou a desinformar, a aceitar a pequena corrupção da empresa que oferece o serviço de tratar dos papéis e que tem sempre melhor tratamento do que os indivíduos que ousam aparecer sozinhos. Depois, este “jovem empresário” é um tipo ideal weberiano, que quase não existe. Os que existem são na maioria “velhos”, mesmo quando novos, espertos, conhecendo e praticando todos os truques do ofício de sobreviver num mundo de cunhas e corrupção de que eles se queixam, mas que alimentam e, pior, reproduzem na sua própria actividade: “quer factura?”, uma das frases mais ouvidas em Portugal. A sociedade alimenta-se de milhares de pequenos conflitos, de milhares de interesses desavindos, e para que uns ganhem outros perdem.
Em Portugal é tudo muito pequeno, somos todos primos uns dos outros e o espaço e os bens escasseiam. Esta é uma visão pessimista de intelectual? Não é: todos os inquéritos sociológicos revelam a falta de mobilidade profissional, social, geográfica dos portugueses, a sua preferência pelo que está e o seu medo de mudar, particularmente se a mudança incluir uma avaliação do seu mérito. É este também o nosso atraso – vimos de muita pobreza e achamos que o remedeio medíocre já é demasiado bom para nos darmos ao trabalho de arriscar a mudar. Não admira por isso que os “Josés” que querem mudar e arriscar sejam escassíssimos e os “Josés” que querem manter o pouco que têm, apenas gastarem mais sem comprometerem o garantismo do que tem (quase sempre do estado) e sem muito trabalho, abundam. E votam, em função dos riscos e seguranças que retratam o seu modo de vida. A inércia é a regra, a mudança é a excepção.



PROCESSAR SALDANHA SANCHES OU ASSUMIR O COMBATE CONTRA A CORRUPÇÃO NAS AUTARQUIAS?

Esta é uma típica pergunta retórica, porque todos sabemos que ninguém enunciou este dilema, a começar pelo sujeito invisível da frase, a Associação Nacional de Municípios. O que Saldanha Sanches disse não precisa de qualquer comprovativo: já desde a antiga Alta Autoridade Contra a Corrupção, cujos ficheiros confidenciais estão convenientemente guardados no arquivo morto, até aos inquéritos policiais conhecidos de hoje e aos processos realizados e a realizar, que a corrupção é um problema gravíssimo das autarquias. Quando um autarca toma a iniciativa de querer limpar a sua casa, como Rui Rio fez na Câmara do Porto, para além de todas as dificuldades e obstáculos, acabam por aparecer os casos de corrupção. É também a experiência de muita gente e por isso não é “acusação” nenhuma que precise de ser provada. Se depois o nosso sistema judicial não actua como deve, é todo um outro problema.
Se os autarcas estão preocupados com a sua “imagem” seria bom que experimentassem conduzir eles próprios esse combate contra a corrupção, cujos meandros tem obrigação de conhecer melhor que ninguém.


E O NOSSO REFERENDO À CONSTITUIÇÃO EUROPEIA QUANDO É QUE É?


Os espanhóis fizeram já o referendo à Constituição Europeia e os seus resultados são reveladores. Votar sim é politicamente correcto e agrupa todos os partidos do poder, socialistas e populares. Logo que, nas respostas, houvesse uma maioria de sins não espanta. Mas o desinteresse e a indiferença foram os verdadeiros vencedores. O cidadão comum, aquele para quem a Constituição diz apelar, mostra escasso interesse num texto que vê como inócuo (os que o vêm como perigoso votaram não) e irrelevante. Acham que o poder é o poder e ele virá ao de cima, com Constituição ou sem ela, e se for preciso contra ela. E ponto.
Mas há um sinal preocupante no caso espanhol, que também se verifica em Portugal sem grandes alardes: a chamada “propaganda institucional” a favor do sim, feita com dinheiros europeus ou do estado. Ora sendo a aprovação da Constituição uma questão de decisão política livre dos portugueses convinha não esquecer que as instituições não devem ter lado antes de um voto que não devem querer condicionar. É por isso que a inauguração de um mural sobre a Carta dos Direitos Fundamentais, um documento que não é vinculativo face à lei portuguesa, só pode ser propaganda. E já agora, está tudo esquecido de que existe um compromisso de referendo e que convinha sabermos quando é, para não se criar mais uma vez uma situação de facto, antes de ser de jure.


DICIONÁRIO DE FILOSOFIA PORTUGUESA

Como muita gente formada nos anos sessenta, a mera junção do substantivo “filosofia” ao adjectivo “portuguesa” levantava logo as piores das suspeições. Suspeições políticas, porque a “filosofia portuguesa” era vista como um produto ideológico reaccionário entre o Integralismo lusitano e o regime salazarista, e suspeição de interesse, porque alguns dos seus autores escreviam num estilo obscuro e ilegível para o comum dos mortais, mesmo sendo filósofos. Havia também um nacionalismo predestinado, como se o Quinto Império fosse uma realidade ôntica. E tudo parecia comentário, do comentário, do comentário, fechado, isolado, provinciano e voltado para si mesmo, longe das grandes portas abertas dos filósofos do século XX.
Se bem que houvesse razões para estes preconceitos, eram de facto preconceitos e muita ignorância à mistura. Não é que a “filosofia portuguesa” tivesse a genialidade que os membros da sua escola, lhe atribuíam, mas merecia ser melhor conhecida e estudada. Vale por isso a pena o Dicionário de Filosofia Portuguesa de Pinharanda Gomes, que a D.Quixote publicou. Como os dicionários não são para ler de fio a pavio, comecem por exemplo por “Paremiologia”, ou seja o estudo dos provérbios para ter um sabor da “filosofia portuguesa”.

10.3.05

OS "CONSELHOS" EUROPEUS AOS EUA (Novembro 2002)

Quem tem errado nas suas análises e previsões, umas atrás das outras, têm sido muitos destes europeus, que se acham milhas acima do intelecto de Bush, como aliás já pensavam o mesmo de Nixon e de Reagan, hoje considerados dos mais importantes presidentes americanos do século XX.

Muita gente já não se lembra, ou não se quer lembrar, que a unidade da Europa, que começou na Comunidade do Carvão e do Aço e que deu origem à União Europeia, foi resultado de uma iniciativa americana. Essa iniciativa apontava para a construção de uma Europa pacífica e próspera, com o Plano Marshall como instrumento da reconstrução económica, em torno do qual se estabilizaram democracias em risco como a França e a Itália.

A construção da unidade europeia foi, por isso, uma consequência da política externa americana para a Europa e constituía uma chave-mestra da nova ordem mundial do pós-guerra. Os EUA fizeram da unidade europeia um elemento essencial da sua política de segurança, materializada numa aliança transatlântica entre a Europa e os EUA, baseada na NATO, que servisse de travão ao expansionismo comunista. Movimentos políticos pró-europeístas e favoráveis ao federalismo, como o Movimento Europeu, foram criados, controlados e financiados extensivamente pela CIA, como revelam documentos recentemente desclassificados.

Por tudo isto, a União Europeia, sem a relação transatlântica com os EUA, seria uma outra entidade alienígena, sem qualquer relação com o seu movimento fundador. A tentativa evidente e clara, nos nossos dias, de querer construir uma Europa "independente", uma "superpotência" europeia antiamericana, é por isso um projecto de uma outra natureza, com consequência impensáveis e, a meu ver, nefastas para a própria unidade da Europa. É isto que, num certo sentido, alguma esquerda europeia quer, sem medir que um dos efeitos que certamente provocará - como já está a provocar - é a irrelevância política da Europa entregue a si própria, ou, no pior cenário, a degradação da própria União Europeia.

A eleição do Presidente Bush foi a gota de água nesse antiamericanismo esquerdizante (e que alguma direita apoia). Os socialistas europeus gostavam de Clinton, apesar de este ter feito, de uma forma desastrada, algumas coisas idênticas às que Bush também fez, e passaram a tratar os EUA como se fosse um país liderado por um imbecil belicista que quer colocar o mundo à beira da destruição. E no entanto... quem tem errado nas suas análises e previsões, umas atrás das outras, têm sido muitos destes europeus, que se acham milhas acima do intelecto de Bush, como aliás já pensavam o mesmo de Nixon e de Reagan, hoje considerados dos mais importantes presidentes americanos do século XX.

A soma dos erros europeus é grande. Os diplomatas e governantes europeus andaram a dizer aos EUA que a Rússia nunca aceitaria que o alargamento da NATO chegasse às suas fronteiras. Não só chegou, como na próxima cimeira de Praga, ainda chegará mais. E, em vez de um retorno à "guerra fria", os EUA consideram a Rússia como nunca tendo estado mais próxima, sendo classificada de "parceiro estratégico" nos seus documentos de segurança.

Os diplomatas e governantes europeus passaram todo o tempo a dizer aos EUA que a guerra no Afeganistão iria ser um desastre: lembravam-lhe os desaires dos ingleses no século XIX, e as atribulações russas. O Afeganistão era, diziam, "inconquistável". Foi o que se viu.

Os diplomatas e governantes europeus diziam que o ataque aos taliban iria desencadear uma verdadeira revolta das massas muçulmanas, a queda do Paquistão no caos, tumultos de consequências impensáveis, desde Marrocos à Indonésia. Foi também o que se viu.

Todos estas previsões apocalípticas e "conselhos" que foram feitos quanto ao Afeganistão são agora feitos, do mesmo modo, quanto ao Iraque. O caso do Iraque é claramente um exemplo do desfasamento europeu da realidade dos factos e da incompetência diplomática e política europeia. Após dez anos de violação sistemática pelo Iraque das resoluções das Nações Unidas, os EUA preocupados - ou informados - da probabilidade do Iraque estar a construir armas de destruição em massa, ameaçaram com uma intervenção militar. Os europeus clamaram por "mais diplomacia", eles que em dez anos fecharam os olhos aos programas de armamento iraquianos - que conheciam - e que tiveram todo este tempo para usar toda a diplomacia que quisessem. O Iraque, como é óbvio, não prestou nenhuma atenção à diplomacia europeia, mas prestou a atenção devida à ameaça da força militar americana. Se hoje os inspectores voltaram a Bagdad, é por único e exclusivo mérito americano.

Nesse mérito inclui-se também uma grande vitória diplomática americana - a votação unânime do Conselho de Segurança - o que mostra o apoio crescente à política externa americana, e que nenhuma previsão dos nossos europeístas antiamericanos foi capaz de antecipar. Eles especularam que não foi Bush, mas Colin Powell que o conseguiu, porque no fundo continuam convencidos de que têm sempre razão. Mais ainda: todos os que votaram no Conselho de Segurança sabiam que, ao o fazerem, estavam a legitimar uma possível intervenção militar dos EUA e dos seus aliados - que certamente aparecerão em abundância à última hora -, porque todos sabem que Saddam não permitirá qualquer inspecção a sério.

Os europeus antiamericanos clamam também que, em contraste com os EUA, que só combatem os "efeitos" do terrorismo, eles por seu lado combatem as "causas", como aconteceu na Palestina. Em consequência disso, nunca ninguém deu tanto dinheiro ao "povo palestiniano" como a União Europeia. No entanto, a União Europeia permanece completamente indiferente ao facto de que a Autoridade Palestiniana está minada pela corrupção e que muito desse dinheiro nunca chega ao "povo". E também tem fechado os olhos ao facto de algum dele ter ido para os grupos de terroristas que combatem Israel. A verdade é que nos momentos cruciais em que se poderia pensar que, com tanto apoio financeiro, a União Europeia tivesse influência junto dos palestinianos, ela revela-se nula. Do mesmo modo, comentários completamente insensatos, vindos de responsáveis da União, destruíram quaisquer laços com Israel, pelo que no conflito no Médio Oriente, a União Europeia está impotente. Não custa muito antecipar que, a prazo, se houver um Estado palestiniano, e uma estabilização da região, ela deverá mais aos EUA do que à União Europeia.

Todas estas diferenças se agravaram depois do 11 de Setembro. Enquanto os EUA apelidaram o atentado terrorista de "acto de guerra", muitos governos europeus recusaram tal classificação. Já hoje ninguém se lembra, mas quando, desde o primeiro momento, os americanos apontaram Bin Laden como responsável, houve comentários irónicos, em que se destacou o engenheiro Guterres, dizendo que ninguém ia para a "guerra" contra um "inimigo imaginário". Para muitos governos europeus, não tinha nenhum sentido falar em "guerra", e Bin Laden era uma personagem minimizada. Um ano depois, as bombas de Bali, os atentados no Kuwait, os atentados falhados em Londres, mostram bem a realidade da "guerra" que na Europa não se queria nem se quer ver. É só uma questão de tempo e ela bate-nos à porta.

O problema da Europa hoje é de credibilidade. Somando "conselhos" sobre "conselhos" deste calibre, muito responsáveis da UE tem feito tudo para reforçar o unilateralismo dos EUA, a reacção esquemática e igualmente nefasta do lado americano à má-fé europeia. É um péssimo caminho.

7.3.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 25 (Fevereiro 2005)

“VIRANÇA”

Na noite eleitoral, a candidata do BE Ana Drago enganou-se e inventou uma palavra nova: “virança”. Como diria um mendeliano louco, a coisa é o resultado dos amores da “mudança” com a “viragem”. Mas “virança” é uma boa palavra para descrever o que aconteceu no dia 20 de Fevereiro, embora os híbridos não se reproduzam. Ou seja, tivemos mudança e viragem, mas duvido que haja grandes frutos a prazo dessa “virança”, em particular, porque nos deixou quatro anos com o protótipo do adiamento amável, o neo-guterrismo socialista.
No dia da “virança” o que se passou foi um plebiscito a Santana Lopes. O PSD ofereceu um homem enredado nas suas idiossincrasias e não um líder partidário ou um programa. O resultado foi que a maioria dos portugueses não lhe quis dar o “colo”, nem prestar-lhe o favor “pessoal” que ele lhe pediu por carta, e parece ter abominado a personagem por todas as razões incluindo as da inteligência afectiva. Ponto.
Ficou-nos Sócrates, o que usa o nome do filósofo e se fez quase instantaneamente, do zero ao nada com tão absoluto sucesso como a maioria que conseguiu. Como agora cada vez mais acontece, o escolhido Primeiro-ministro foi-o porque o Outro (nos partidos há sempre o Outro) não quis. Vitorino não quis, ficou Sócrates, o que fez tudo “direitinho”. Para sabermos como é, ou seja o “tortinho” por baixo do “direitinho” há que analisar as duas ou três coisas que sabemos dele. Uma, que foi um razoável ministro do ambiente, gerindo a pasta de forma mais arejada, pós-Pimenta, do que o habitual. O conflito sobre a incineração foi o seu melhor, mostrou que podia associar a acção política a uma certa firmeza e determinação, mais as muito humanas qualidades da zanga e da irritação em funções. Foi e penso que ainda é, o melhor de Sócrates.
Depois “fez-se” na televisão em frente a Santana Lopes e isso para mim foi o pior de Sócrates: certinho, voando baixo, mimético com o outro, ortodoxo no fundamental, com a cara, o fato, o look, a voz certas para serem transformadas em marketing. Ficou-me claro que o Sócrates da RTP foi o Sócrates da campanha de 2005, um tenebroso indício.
O segundo melhor ponto a favor de Sócrates foi o conflito interno no PS pela liderança. Sócrates e Alegre personificaram diferenças de política verdadeiramente existentes e não fictícias e as posições de Sócrates enunciaram uma moderação que o deslocou para o centro do espectro político. Mais na forma do que no conteúdo, as suas recusas como a de insistir num novo referendo para o aborto e não numa mera vitória legislativa na Assembleia reposicionaram o PS que vinha de Ferro Rodrigues.
Mas se a moderação é uma virtude, não chega para as tarefas bem mais duras da governação. E aqui tudo o que foi preocupante nas conversas televisivas e na campanha de 2005, a começar pela completa ausência de urgência ou necessidade para medidas difíceis, vai ser a receita para o retorno do estilo do outro engenheiro, Guterres. Vai-se já ver no orçamento, tarefa quase imediata, como a “virança” vai ficar “quedança”.

O QUE NÃO VAI MUDAR

será a transumância dos boys. Podem já os senhores jornalistas começar a anotar as nomeações muito para além do âmbito compreensível da confiança política, quando o aparelho socialista, um pouco por toda a parte, começar a sempre eficaz tarefa de colocar os “seus” onde antes estavam os “deles”. De há muito apelo a uma definição estrita dos lugares de confiança política e da aceitação – algum terá que ser o primeiro – da estabilidade dos boys anteriores. Eu sei que isso parece injusto para a regra nomeado como boy, substituído por outro boy. Mas este ciclo só se encerra quando alguém fechar os olhos à camada anterior e não lhe acrescentar outra por cima. Mas Jorge Coelho é profundamente querido entre os socialistas por alguma coisa e essa alguma coisa é por chefiara o sindicato do emprego socialista, com maior eficácia, registe-se do que os dirigentes do idêntico sindicato do PSD.


BLOCO DE ESQUERDA E PP

são partidos muito mais parecidos do que alguma vez queiram admitir. São miméticos no seu ódio recíproco, como só os pequenos partidos podem odiar-se entre si na sua couraça de radicalidade. Tem ambos dirigentes muito semelhantes: o que é que há de mais parecido a Portas do que Louça e vice-versa? Ambos moralistas, self-righteous até dizer chega, não conseguem abrir a boca sem nos dar uma lição do que se deve ou não deve fazer. Ambos politicamente correctos um na sua missa, outro no seu ocasional e admitido charro, um no seu fato, outro na sua camisa, ambos usando o que vestem como uma farda de serviço, uma extensão do seu manifesto político.
Nestas eleições o BE ganhou ao PP, subiu onde ele desceu, também porque Louça é mais genuíno do que Portas. Portas não consegue esconder a agressividade, que nele assume a forma de arrogância, da pose. Querendo ser inglês, mordaz e cínico, anarco-conservador como vem nos livros e no Spectator, falta-lhe o estofo e o saber, e acaba por ser ultra-montano e beato, e ávido de uma realpolitik no fundo paroquial e provinciana. Louça é o que é há muito tempo, tem muito treino, é um ideólogo frio e capaz, tem o mundo completamente encaixado, sem uma dúvida, auxiliado por uma maior cultura e cosmopolitismo. A sua arrogância, parecida com a de Portas, manifesta-se pelo verbo, mas é menos susceptível de soçobrar no ridículo, até porque protegida por uma comunicação social simpatizante.
Depois o Portugal de Louça cresce e o de Portas encolhe. Os jovens radicais urbanos bem nascidos hão-de sempre ser mais do lado do Bloco, porque o politicamente correcto é a ideologia do nosso ensino, e só uma pequena minoria, não muito diferente na origem social mas de famílias diferentes, engrossa os admiradores do PP. Quem podia fazer crescer o PP, os empresários e a “cultura da iniciativa” desconfiam do radicalismo de Portas e preferem outros, Sócrates neste caso.

PARA LIMPAR A CABEÇA

não há nada como televisão, também da boa. Os Sete Palmos de Terra a que temos direito se não quisermos ser cremados e não nos desintegremos em serviço, são um bom exemplo da grande televisão americana. Dos mestres dos Sopranos, veio esta família disfuncional de cangalheiros e só podia vir dali, daquele reservatório de imaginação e criação, alimentado pela “indústria”, unindo profissionais muito competentes, começar pelos melhores guionistas e actores. Tudo para representar uma adolescente deprimida, uma mãe igualmente deprimida, um filho homossexual, cantor de coro e namorado de um polícia, ambos deprimidos, um outro filho deprimido vá-se lá a saber porquê porque parece saudável, a sua insuportável esposa, maternamente deprimida, um bebé de meses a treinar para ficar deprimido, e vários mortos, muito mais saudáveis e nenhum deprimido.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 24 (Fevereiro 2005)

OS DADOS ESTÃO LANÇADOS

Se no dia 20 de Fevereiro tudo correr como apontam os principais indicadores, o PS será governo, provavelmente sem maioria absoluta e na base da acordos permanentes ou pontuais com o BE e o PCP, o PSD passará á oposição, junto com o PP. Voltar-se-á formalmente à situação anterior a 2002, quando Guterres era primeiro-ministro. O único factor de dúvida pode ser a existência ou não de uma maioria absoluta, e de se saber se o PS sozinho tem mais votos que o PSD e o PP juntos, o que implicaria, neste caso, um apoio parlamentar mais sistemático do BE e do PCP ao PS, fragilizando a governação. Ainda no terreno formal, das eleições vai depender o futuro de Santana Lopes, em primeiro lugar, mas também de Jorge Sampaio e José Sócrates, a tríade de políticos mais directamente dependente deste processo eleitoral. Paulo Portas, pode também ver-se em risco, se o PP baixar do seu resultado actual, dadas as elevadas expectativas com que conduziu a campanha. Jerónimo de Sousa e Louça, pertencem a partidos em que a lógica eleitoral é menos importante e por isso atinge-os menos.
É muita coisa junta, para que dos resultados apenas se possa considerar os aspectos formais e o “regresso ao passado”. Há uma crise sem precedentes no PSD, e há tensões no sistema político que irão condicionar de forma decisiva a próxima eleição presidencial. Se olharmos para o lado do pessoal político, a crise de representação é evidente e ela está presente como um fantasma para o PS e o PSD. Mas, se formos mais longe, essa crise de representação tem elementos positivos e mostra uma maior atenção dos portugueses com a coisa pública, uma exigência que levou os partidos a hesitar nas promessas, uma imediata reacção aos sinais mais preocupantes de populismo.


FALHANÇO DO POPULISMO, PRIMEIRO ACTO?

A primeira tentativa séria de moldar um partido ao perfil de um homem só, assente nos afectos televisivos e no culto de personalidade, parece ter falhado, a julgar pelo que se espera dos resultados eleitorais. Nunca como hoje, um grande partido nacional se tinha reduzido à exibição de uma personalidade, dos seus afectos, dos seus medos, dos seus desejos, como programa político, tudo assente numa ideia de que o “karma” individual da personagem bastava magicamente para ganhar eleições na era dos reality shows das televisões.
No passado do nosso sistema partidário, algo de semelhante aconteceu com o general Eanes e o PRD, guardadas as diferenças de personalidade do general que era um homem íntegro e não tinha ambições pessoais de poder. As ideias justicialistas do PRD eram más, e ainda estão aí: migraram por muitos caminhos, para o PSN de Manuel Sérgio, para o PP de Portas-Monteiro, mas acabaram por se dissipar com as maiorias absolutas de Cavaco Silva, que da crise de representação levou a uma sobre- representação. Mas Eanes era da época pré-televisiva e o seu populismo muito mitigado, comparado com o actual. Talvez Santana Lopes tenha falhado por ter vindo cedo demais, quando ainda havia na sociedade uma dose de anticorpos bastantes, ou só tenha tido azar, a explicação que talvez estivesse escrita nas estrelas. Porém, o populismo está longe de desaparecer.


RECONSTRUIR A OPOSIÇÃO

A tarefa política do PSD depois de 20 de Fevereiro é organizar uma oposição intransigente, activa, credível e popular ao governo do PS, quer haja maioria relativa quer haja absoluta. Existe nesta tarefa uma oportunidade única para a retomada do papel político do partido, e é nessa mudança e nas reformas que a possibilitam que pode haver uma esperança de regeneração partidária.
Em teoria, o centro dessa oposição deveria ser o parlamento, mas duvido que o seja. A fragilidade do Grupo parlamentar do PSD dificultará esse papel, e impedirá a luta pela reforma da Assembleia da República para a transformar naquilo que é hoje um parlamento moderno: um órgão de vigilância ao governo mais do que um local onde se produz leis. Seria bom que a oposição desenvolvesse, desde o primeiro dia, a sua acção na constituição de uma equipa de governo sombra, que acompanhe áreas do governo, especializando-se, e que possa, também na oposição, ser julgada por objectivos, pela sua capacidade e influência. Essas equipas devem permitir a participação qualificada de não militantes, voltando a sua acção para os meios universitários, empresariais, sindicais, envolvendo estudantes, professores, jovens empresários, num acompanhamento permanente da governação. É por aí que se tem que ir.


IRMÃ LÚCIA

A morte da Irmã Lúcia, a última vidente, é um acontecimento para a Igreja institucional, não inteiramente coincidente com o sentimento do catolicismo popular. Para as multidões de fiéis que vão a Fátima, há uma luz de santidade que necessariamente se derrama no lugar e em todos os protagonistas das aparições. Para eles, Lúcia é uma santa, a cuja morte não são indiferentes, porque parece ser mais uma metamorfose do que uma perda. Enquanto os não crentes falavam de “dor” pela morte de um ser humano, os crentes, a começar pelos que mais proximamente a acompanhavam, não mostravam sofrimento, mas esperança, quase uma alegria interior. É natural que assim seja, mas esta diferença de sensibilidade foi pouco percebida pelos políticos que quiseram em campanha eleitoral afivelar os sinais de luto e dor, gravatas negras, tom fúnebre, contrastando com a serenidade de bispos e padres.
Talvez por isso, haja muitos equívocos na questão do luto nacional que a Igreja não pediu e que hoje o estado concede quase de forma trivial aos sabores das popularidades e das conveniências do momento.

O PIOR DA SEMANA: A INVENÇÃO DE NOTÍCIAS

É difícil fazer pior do que as “notícias” de primeira página do Expresso sobre Cadilhe e sobre umas “convicções” de umas fontes anónimas sobre o que outras fontes anónimas tinham levado o Público a escrever falsamente. Se a “notícia” sobre Cadilhe ainda podia ter resultado de uma manobra política com algum fundamento, a que o jornal se prestou sem cuidado, a segunda sobre o papel dos círculos à volta de Santana na desinformação sobre Cavaco já é claramente jornalismo de manipulação. O Expresso deveria seguir o exemplo do Público e pedir desculpa aos seus leitores.

1.2.05

ANTES E DEPOIS (Junho 1994)

Os recentes acontecimentos na Argélia confrontaram a opinião pública ocidental e os políticos das democracias com uma realidade que dificilmente conseguem integrar não só nas ideias correntes sobre a democracia, como no discurso político dominante. O mal-estar gerado é significativo e a incomodidade, em particular … esquerda, é grande. A direita, como nunca concedeu … democracia o estatuto de um valor metapolítico, compreende muito bem que se façam golpes de estado para resolver os problemas do exercício do poder político.
A atitude dos ocidentais em relação à Argélia é por isso essencialmente hipócrita: receberam de braços abertos um golpe de estado destinado a impedir que os vencedores das eleições assumissem a governação, e acabam por validar a continuidade do poder ditatorial e corrupto da FLN. Tudo conta para legitimar essa atitude: desde o argumento jacobino de que não deve haver liberdade para os inimigos da liberdade (verdade seja dita que o resultado é continuar a não haver liberdade nenhuma), até às múltiplas racionalizações da ignorância ocidental face ao mundo muçulmano e velhos medos nascidos da diferença cultural. O fundamentalismo, reduzindo a sociedade … comunidade, é devastador para a liberdade e a democracia, mas o fundamentalismo não pode passar a ter as costas largas que a FLN, republicana, socialista e laica, e que mergulhou a Argélia no descrédito e na demagogia revolucionária, nunca teve.
Este silêncio prudente e comprometido mostra as dificuldades interpretativas e explicativas de algumas variantes circulantes do pensamento democrático que pareciam suficientes para dar um sustentáculo legitimador ao conflito Leste e Oeste, enquanto este era percebido como um conflito entre a democracia e o totalitarismo. Revelam-se, no entanto, insuficientes para defrontar as ameaças à democracia que vem de um terreno que inclui fortes elementos do simbólico. O caminho progressivo do pensamento ocidental para a laicização do político, em sociedades criadas elas próprias pelo crescimento da "descrença", levaram a tomar por adquirido que o conflito ideológico se faria apenas pelo confronto de modelos de sociedade secular. Ora para o caso da Argélia e não só, não basta.
A crise argelina mostra como o pensamento democrático precisa de ser pensado para além de uma espécie de escolástica positivista, de um racionalismo mais ou menos apodíctico que faz surgir da razão e das luzes, o "império das leis" e a livre contratualidade social. Sempre foi esta aliás uma das minhas divergências antigas com João Carlos Espada que tem, melhor do que ninguém, feito o apostolado deste entendimento da democracia. O resultado é a profunda sensação de irrealidade que emana dos seus textos em relação aos problemas concretos da política e um forte pendor pedagógico e normativo. O que escreveu sobre a Argélia não escapa a esta irrealidade.
O problema, e faço justiça ao Espada de saber que ele o reconhece, é que seria tudo mais fácil se a FIS pudesse aceder democraticamente ao poder e fosse limitada no exercício desse poder por uma constituição que a impedisse de aplicar a sharia ou de retirar os direitos às mulheres - que a subordinasse ao "império das leis". Mas esta "boa e bem estabelecida solução teórica", como Espada se lhe refere, pouco nos diz sobre as razões porque os povos parecem renitentes … "bondade" teórica de tais soluções, ou sobre o problema prático de saber como é que se gera uma cultura democrática onde ela não existe. Aliás Espada mostra a sua dificuldade em defrontar situações como a argelina quando atribui, nas conclusões do seu artigo, a falência do primado do "império da lei" … circunstância de este "não dar votos" aos políticos que o defendem. Nada é mais remoto de qualquer descrição dos problemas da democracia (ou da sua falta) na Argélia do que esta conclusão que escapa ao problema essencial de saber porque é que as "massas" não desejam esse bem precioso que são as "leis" e votam na fé em vez da razão.
Sempre pensei que o pensamento democrático mais interessante e mais útil é aquele que é pensado nos limites da democracia, nas suas fronteiras e não no seu centro, o que é pensado com tragédia e interrogação - como dúvida. Mesmo como dúvida sobre as virtualidades de democracia. Dito de outra maneira: aprende-se mais sobre a democracia com Weber e Nietszche do que com Popper.
Mais: aprende-se muito sobre a democracia entendendo, no sentido weberiano, as pulsões anti-democráticas, em vez de as esconjurar como se viessem das trevas exteriores. Rapidamente se percebe então a precariedade da ideia de que tudo possa ser resolúvel a uma razão transparente e a uma mera mediação de contratos sociais volunt rios, ignorando que há obscuridades essenciais nos comportamentos individuais e colectivos, que o "império das leis" cede muito mais ao império dos sentidos do que desejaríamos.
Freud percebeu essa opacidade e mostrou os limites do racionalismo clássico para entender os comportamentos quer individuais, quer das "massas". Um certo adormecimento dogmático do pensamento sobre a democracia tem levado a esquecer a relação entre a democracia e a demagogia e a esconder que, mesmo nas democracias mais consolidadas, não se consulta o "povo" sobre determinadas questões porque a sua resposta seria bem pouco conforme com os cânones políticos do pensamento democrático. É o caso, em determinadas circunstâncias, da pena de morte, dos privilégios dos políticos, ou dos impostos.
As grandes tentações totalitárias do nosso século e que tiveram expressão de massas, - o nazismo e o comunismo -, não surgiram tão longe de nós como gostaríamos que tivesse acontecido. A sua origem não está em qualquer perversão social, atraso cultural e económico, mas no nosso quotidiano mais vulgar, no meio de povos com grande tradição civilizacional como o alemão ou de sociedades tecnologicamente desenvolvidas como as da Europa entre as duas guerras.
Existe a tendência para esquecer que o poder, - mesmo o poder democrático -, assenta numa violência e que nessa fonte primeira não há assim tanta diferença entre a democracia e os seus opostos. As diferenças surgem depois, nessa mediação que separa a natureza da cultura e que faz a civilização. Só que muitas vezes não se chega ao depois, fica-se no antes.