26.10.04

DIREITA / ESQUERDA (Outubro 2004)

O último Prós e Contras sobre a dicotomia esquerda / direita revelou a maior das confusões sobre a matéria. Não foi por acaso, porque a distinção tem cada vez menos sentido e gera mais confusões do que clareza. Carlos Encarnação enunciou esses dilemas, atrapalhando a “esquerda” do painel com perguntas simples: a política de Schroeder é de esquerda ou de direita? Blair, é da esquerda ou da direita? Alegre irritava-se com Blair, mas não conseguia dizer a frase “Blair é de direita”. Depois, Lomba, no comentário final, atrapalhou tudo ao tentar viajar no tempo procurando coerências onde elas não existiam e encontrando diferenças que não conseguia explicar. Luís Osório contribuiu também para a confusão, enunciando uma fraternidade entre a esquerda dele e a direita de Lomba, sem ser capaz de tirar as conclusões sobre porque é que ela existia e era aparentemente mais forte do que fraternidade ausente que tinha com a esquerda de Sócrates. O único que estava à vontade era Jaime Nogueira Pinto, que há muito tempo sabe o que é, e conhece a sua história política. Não foi edificante o debate, aliás não foi um debate, foi uma enunciação afectiva das identidades com que cada um se veste e a tentativa de tornar universais essas vestes e nos obrigar a vesti-las, mesmo contra a vontade.
O retorno em força da dicotomia esquerda/direita no discurso político português, que se está a dar nos últimos anos, introduz mais confusão do que clarificação e é por si próprio uma forma de arcaísmo. É muito provinciano e local, porque este retorno às divisões classificativas simples, tem muito a ver com a nossa história política mais recente e isola-nos dos debates mais interessantes que se passam, por exemplo, nos EUA, no Reino Unido, na Itália, em Espanha, onde estas pertenças dicotómicas já não são centrais na vida pública. Acresce, como o estudo que acompanhava o programa e a sondagem que vinha no Público revelavam, que esta acentuação da dicotomia se faz em contra-ciclo e em directa contradição com a perda da sua importância nos eleitores em geral, e na parte da população que é politicamente activa.
As razões portuguesas deste retorno ao simplismo classificatório esquerda / direita são várias e têm a ver com a evolução do sistema político e à sua consolidação vinte anos depois do vinte e cinco de Abril. Nos anos oitenta fecha-se de facto o ciclo revolucionário, como resultado de um conjunto de eventos que inclui o fim do poder militar; a vitória da AD, mostrando a possibilidade da alternância; as sucessivas revisões constitucionais, quer na parte política, quer económica da Constituição, tornando-a adaptada a um estado democrático e a uma economia capitalista; a vitória de Soares nas eleições presidenciais, acabando com os projectos de “socialismo participativo” (Pintasilgo); e de Cavaco Silva, dando origem ao primeiro governo de maioria absoluta. Esta década foi verdadeiramente transformadora e levou a uma progressiva estabilização da alternância política entre o PS e o PSD e ao isolamento dos extremos políticos, principalmente do PCP e da extrema-esquerda. Esse processo simultâneo de “centramento” do PS e PSD, começou a gerar tensões e mudanças nas franjas politicas mais radicais e é aí que recomeça este novo surto identitário da dicotomia esquerda / direita.
Foi à “direita” que tal processo se iniciou, com a assunção por Paulo Portas do PP como “partido de direita”, abandonando o “centrismo”, seguida da entrada em cena do Bloco de Esquerda com a palavra no nome. É significativo que tenham sido dois partidos dos extremos, o PP e o BE, que, numa procura de uma identidade perdida e de outra renovada – o PP queria desfazer-se do CDS e o BE do seu passado trotsquista (PSR) e maoista (UDP) – se voltaram para um património ideológico que, de há muito, revelava desgaste na sua capacidade de interpretação do presente.
Simultaneamente com este processo, uma geração mais nova começou a substituir o alinhamento partidário restrito pelo alinhamento ideológico assente na dicotomia esquerda / direita, incorporando tradições e novas correntes que até então nunca tinham tido peso no debate político em Portugal, como é o caso do liberalismo à direita e do chamado alter-mundialismo à esquerda. Este processo acelerou-se, empurrado pelos eventos posteriores ao 11 de Setembro, e a guerra do Iraque, mas ocorreu de forma assimétrica. À direita foram os blogues, um novo meio de afirmação política, que permitiu romper a tradicional dominação pela esquerda do espaço comunicacional, que ajudaram à afirmação de uma geração de jovens intelectuais , que, simpatizando com o PP e o PSD, mais com o primeiro do que com o último, sentia-se mais individualista e liberal do que esses partidos. Na blogosfera foram hegemónicos numa primeira fase e estão agora a transitar para a comunicação social tradicional levando pouco a pouco para o mainstream da vida política uma sensibilidade conservadora e liberal que aí não tinha tradição.
A assimetria vem do facto do Bloco de Esquerda, pela sua herança de organizações e grupos, ter sido capaz de absorver a juventude de esquerda, permitindo-lhe a curto prazo uma expressão política mais orgânica. Por outro lado, como o Bloco beneficia da activa simpatia no sistema comunicacional, nunca necessitou de forma tão crucial de formas alternativas como os blogues. Embora tenham aí uma presença activa, esta reflecte mais a agenda da vida política exterior, do que uma marca própria na blogosfera.
Pouco a pouco, a impregnação destas categorias dicotómicas esquerda / direita, foi entrando nos partidos da alternância “central”, num processo contra-natura em relação ao posicionamento e ao discurso político que lhes garantia o eleitorado para ganhar eleições. Esta contradição manifestou-se agudamente no recente debate interior do PS, onde a acentuação da identidade ideológica tradicional entrou em choque não apenas com o pragmatismo eleitoral (como dizia Alegre), mas com a possibilidade da governabilidade (como Gama enunciou no único discurso consistente do Congresso). Um processo de impregnação que só se compreende por crises das lideranças fortes que tinham crescido no “centro” do espectro político, como Cavaco e mais tarde Guterres. Esse processo deu-se principalmente no PS, culminando no confronto político recente Alegre - Sócrates, e no PSD, mais lentamente no início, e depois acelerado pela coligação com o PP.
Estamos pois todos hoje outra vez a falar da esquerda e da direita, como se tal dissesse alguma coisa sobre o que somos e o que queremos.


2

Se eu quiser fazer um catálogo rudimentar do estado da utilização da dicotomia esquerda / direita, ela pode ser resumida em três tipos de uso: um filosófico, outro histórico-identitário e outro meramente proclamatório. Os dois primeiros usos têm sentido, mas com precauções, que o uso proclamatório deixa de lado. Neste último caso, aquele em que a dicotomia esquerda / direita é habitualmente utilizada nos dias de hoje em Portugal, a sua capacidade heurística, a sua capacidade para produzir sentido na aplicação ao real, é escassa, e na maioria dos casos, mesmo enganadora. Volto ao tema inicial: usar como método de classificação, enunciação e proclamação a distinção esquerda / direita nada nos diz sobre o mundo a não ser alinha-lo de forma simplista, que só pode favorecer o extremismo político. O preço é a desertificação do pensamento criador que nos impede de ver o que é novo na complexidade dos nossos dias.
(Faço de passagem uma nota para evitar confusões: o “centro” não é o lugar de intersecção da esquerda com a direita e vice-versa. Escrevo sobre isto há muito tempo e nunca o pensei assim, nem penso que haja qualquer utilidade em acrescentar um “centro” à dicotomia. A três é igual a dois, porque não é esse o problema. Há quase vinte anos, escrevi que o “novo centro” que estava a aparecer em Portugal entre 1985-7, não era um lugar politicamente geométrico, uma espécie de encarnação do “bloco central”, mas sim o efeito da emergência de um novo tipo de eleitorado, que vota pelos resultados e pela percepção do mérito, umas vezes no PS outra no PSD. Foi a emergência desse eleitorado que subverteu um sistema eleitoral destinado a obrigar a coligações, permitindo as maiorias absolutas, a de Cavaco e aquela que Guterres esteve no limiar de alcançar. Quer a bipolarização, quer a alternância devem muito a esse “novo centro”.)
Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda-direita. O uso que identifiquei como filosófico, é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja um optimismo antropológico; outra, a ideia que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja um pessimismo antropológico.
Mas, mesmo a este nível de essencialidade, ou se quisermos de pureza e radicalidade argumentativa, em que o sinal separador (o /) parece ter mais sentido, encontramo-nos com problemas que tornam menos nítida a dicotomia. Um, é que a dicotomia antropológica comunica bem com algumas ciências humanas, na política, na sociologia, nas teorias da cultura, e nalgumas teorias da história, mas já não se manifesta com a mesma nitidez no domínio das ciências da natureza ou da criação estética. Ou seja, a distinção antropológica pode-nos ajudar a perceber Maquiavel, ou Hobbes, ou Burke, ou Rousseau, ou Napoleão, ou Lenine, ou Mussolini (com Hitler já não é tão fácil), o welfare state ou a ditadura do proletariado, mas é completamente impossível de aplicar à ciência, como se verificou no debate soviético sobre a genética, ou à literatura. Pound era fascista, mas, quando escreveu o seu poema contra a usura, a sua poesia é de direita ou de esquerda? Kafka percebeu o mundo concentracionário e burocrático muito antes de ninguém, mas o Processo é de direita ou de esquerda, é uma procura de ordem ou desordem? E Wagner e a sua música? E Proust?
Pode-se argumentar, contra o que digo, que o uso da dicotomia se limita ao terreno da política e da história e que é abusivo querer aplica-la à ciência e à criação literária e artística. Só que o carácter holístico da distinção esquerda / direita conduz inevitavelmente à sua utilização para além da política. As tentativas de fazer uma arte ou uma ciência “proletária” ou “progressista”, não foram uma perversão estalinista. Elas estão presentes como uma natural vontade de extensão, de perfeição, de uma dicotomia percebida como estruturadora do humano.
Outro problema é que a dicotomia esquerda / direita tem inevitavelmente em si uma teoria da história finalista, que transporta um sentido moral desigualmente representado nos dois lados da dicotomia. Um dos lados é moralmente superior ao outro. Veja-se como nenhum dos defensores da dicotomia prescinde de atribuir uma maior densidade moral ao seu lado do par, já para não falar de lhe atribuir um qualquer teleologia, ou destino manifesto.
Foi esta história que Fukuyama, analisando a crise do hegelianismo como teoria da história central no comunismo, disse que tinha acabado e acabou. Pode voltar, mas hoje está morta e enterrada e esta é uma das razões da crise heurística da dicotomia esquerda / direita. Se não conseguimos encontrar sentido manifesto na história, como é que o pessimismo ou o optimismo antropológico podem gerar uma explicação política global que estruture a acção política, sem a “certeza” da respectiva validade interpretativa? Só se a acção política for entendida como “experimental” na prática e civilizacional na ideia.
Voltaremos aqui depois de falar da dicotomia esquerda / direita como tradição identitária e como discurso proclamatório, duas formas muito próximas de a usar e as mais comuns no discurso político.

(Continua)
A LAGARTIXA E O JACARÉ 9 (Outubro 2004)

A EMISSÃO MINISTERIAL

Este título é o de um episódio da série “Sim Senhor Primeiro-Ministro”, talvez a melhor série televisiva de sempre sobre a vida política em democracia. Muito antes da mediatização da vida pública atingir o grau que tem hoje, as personagens do episódio representam o teatro perfeito da preparação de uma “emissão ministerial”, quando o Primeiro-Ministro Jim Hacker quis falar ao país. Desta vez, a figura que contracena com o Primeiro-ministro, não é a sua habitual Nemesis, Sir Humprey, o chefe da função pública, mas alguém a que hoje chamaríamos um assessor de imagem. Na sala da gravação está o chefe do gabinete, o responsável pelo texto do discurso, o assessor de imagem e uma responsável pela maquilhagem.
Tudo o que eles aconselham e desaconselham está no filme do tempo de antena do nosso Primeiro-Ministro desta semana (o tal que, filmado pela RTP, foi copiado para a SIC e a TVI à falsa fé, e andou em correrias electrónicas para dar a trapalhada das nove horas que afinal são oito, toda uma história rocambolesca bem pouco digna do modo como a comunicação social é tratada do ponto de vista utilitário e nós como imbecis).
O cenário diz tudo. Ao fundo um indistinto quadro moderno para dar cor, como um fundo de ecrã de computador, e atrás uma fotocopiadora, a “mobília moderna”. No “Sim Senhor Primeiro Ministro” aconselha-se pintura abstracta e móveis modernos quando não se quer dizer nada. Depois, sinais para todos os públicos, para que ninguém se sinta de fora: duas bandeiras, Portugal e UE, e rosas laranja, para o “PPD-PSD”. O retrato do Papa para a nação católica e fidelíssima. Um livro longo, verdadeiramente um álbum mais do que um livro, a ter o mesmo papel dos tinteiros de prata, um tijolo de matéria para ocupar a mesa, mas servindo como metáfora de cultura. O livro é, tanto quanto se pode ver, sobre um monumento antigo e não é o protótipo dos livros para ler. Livro de mesa de café. O telefone, a indiciar decisão e ordens. Um pisa-papeis de cristal, imagem da ordem e da autoridade. Um dossier com capa de plástico símbolo do trabalho, ler dossiers, trabalho do Primeiro-ministro. Se fosse em Inglaterra seria uma pasta de couro, mas decididamente não estamos em Inglaterra. Os papéis do tempo de antena, (depois do tele-ponto, os papéis são um arcaísmo da comunicação televisiva) incomodando as mãos.
Mensagem de tudo isto? Diria o assessor do “Sim Senhor Primeiro Ministro”: propaganda tão evidente que não é eficaz. Ah! E depois, como nos artigos do Diário de Notícias, os ajustes de contas com “alguns”, coisas semelhantes às que Jim Hacker também queria meter no seu discurso, as “coisas que agradavam ao partido”, o exorcismo dos outros, do “ruído”. Exactamente o que nunca se deve fazer num discurso em que se fala em nome do estado.


OS APRENDIZES DE FEITICEIRO

Há uma geração de políticos menores que fizeram escola como aprendizes de feiticeiro da comunicação social. O grosso da sua escola de feitiçaria foi feito pelo método da “fonte”. De serem ou mandarem outros serem, (o que mais está na moda), “fontes anónimas” dos jornalistas. Esta expressão é enganadora porque dá uma ideia estática, como se isso de ser “fonte” se limite a fazer uns telefonemas negociando esta ou aquela informação ou opinião anónima, como fazia a assessora do PGR. Não a coisa vai mais longe e é comunitária.
Estes aprendizes têm um grupo de entreajuda que inclui jornalistas, de um modo geral pouco prestigiados pelo seu trabalho de jornalistas, mas activos nas colunas sociais, nos boatos da redacção, em jornais especializados em intrigas, em pseudo-notícias e, em geral, no submundo da informação. Assinam raramente com o nome próprio, mas usam pseudónimos, com uma interessante predilecção pelos pseudónimos femininos. Aí fazem os ajustes de contas da comunidade a que pertencem, através de “notícias”, “antecipações”, boatos, processos de intenção, toda a parafernália da “informação” moderna. O amiguismo com determinados políticos garante-lhes sempre uns empregos obscuros, mas surpreendentemente bem pagos. Vivem por conta e por isso são militantes das mesmas causas dos seus políticos, ou melhor, são militantes dos seus políticos, ponto. É com eles que se fazem as “centrais da comunicação”.

GUINÉ – FECHAR OS OLHOS

Um dos aspectos em que a nossa política externa é pura realpolitik é a que diz respeito aos chamados PALOPS. Viu-se agora na Guiné, como a CPLP e Portugal se tentam comportar como os franceses na Costa do Marfim. Era assim em Angola e é assim na Guiné.
O exemplo da Guiné chega. Um motim por salários e condições de vida nos quartéis, a que se associam motivos tribais pouco relatados, leva à morte de vários oficiais generais, alguns com requintes de selvajaria. Tudo indica que, por exemplo, o Chefe do Estado Maior foi torturado e morto à pancada, outro foi atirado de uma janela. Logo a seguir entra em jogo a diplomacia da CPLP para que o motim não seja um “golpe de estado”, preocupação puramente formal quando se sabe que a primeira coisa que os revoltosos exigem é uma “amnistia”, quanto ao motim e aos assassinatos, e novas promessas de satisfação das reivindicações. O dinheiro para lhes pagar é recolhido dos países doadores e distribuído, com o habitual desvio para a corrupção. E tudo volta aos quartéis contente e feliz. Menos os mortos. Violações dos direitos humanos, crimes? Nenhum problema, não pode é haver um “golpe de estado”. Até à próxima.


A PIOR FRASE DA SEMANA

Um vendedor de antenas parabólicas, que se acha crítico de televisão, e da Imprensa em geral, passou aos insultos pessoais. Diz tudo do seu carácter e estatura mental. Trate-se, ECT. Interne-se, num hospital psiquiátrico."

(Luis Delgado)

Esta frase é dita em resposta a um artigo de Eduardo Cintra Torres no Público, criticando a nomeação de Luís Delgado para a cabeça do maior grupo de comunicação social português, pertencente ao estado, resultado do milagre de uma golden share deixada pelo tandem Pina Moura - Guterres para que o governo re-nacionalizasse na prática uma boa parte do que privatizara. Como nunca nenhum governo deita fora um poder que tem, ou que lhe deixam, a golden share guterrista passou para o actual governo, dando à fome alguma fartura. (Aliás, a julgar pelos silêncios do PS sobre esta matéria, um futuro governo do PS também espera herdar a muito últil golden share e nomear uma variante socialista de Delgado).
Delgado, um jornalista menor, sem carreira que o justifique, começou a ser promovido pelas mais que obvias fidelidades políticas. Foi nomeado director da Lusa e agora, passando tudo e todos, inclusive o seu antigo director, hoje seu subordinado, foi escolhido para o cargo singular mais importante do sistema comunicacional português. E, atacado por isto mesmo, respondeu com esta frase tipicamente soviética, mostrando o seu nível de indignidade. Era na URSS que os hospitais psiquiátricos tinham esta função, mas também é verdade que a lógica da ascensão de Delgado também aí seria idêntica.

19.10.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 8 (Outubro 2004)

A CELEBRIDADE DO LIXO

De um lado, o secreto desejo sádico de ver as “celebridades” na pocilga a comer “lavagem”, algo de obviamente muito popular. Humilhar os ricos e poderosos, mesmo que seja apenas os pobres diabos que em Portugal passam por “celebridades”, é um desporto popular e com sucesso garantido. Do outro lado, a ganância de encontrar o ouro da manutenção da fama fútil, mesmo catando no lixo. Tudo bem. São sentimentos normais numa sociedade em que a pocilga ainda está fresca na memória de uma geração atrás, ou ainda está ao lado da casa de muita gente. A fome ainda é demasiado ancestral, para ser esquecida e a pocilga como expiação, está bem para aquelas “celebridades”, e é uma cena clássica da pornografia hard.
Eu ia mais longe e tenho uma pequena sugestão para a TVI. Num acto de magnifica justiça social e sanidade pública, podia-se levar a coisa até ao fim e deixa-los lá eternamente presos, deitar a chave da quinta ao mar alto, rodear aquilo de arame farpado e minas e armadilhas, e explicar-lhes que afinal o filme era outro e que tinham ido ao engano para a Twilight Zone. Dava-lhes uns exemplares do Huis Clos de Sartre e dizia-lhe que afinal estavam era no Inferno. O Inferno “somos nós” ou seja, são eles.
Então é que o espectáculo devia valer a pena, daqui a um ano ou dois, quando os piolhos, as unhas gretadas, a sujidade, os cabelos colados, todos os restos de cosmética e dos liftings a desagregar-se, as borbulhas e a urticária instaladas, talvez sarna e outras doenças dos pobres a aparecerem, as hormonas aos saltos ou aos saltinhos, dependendo das personagens, o homem do Marco aos murros, e acima de tudo, ó Dante, a falta de esperança de alguma vez sairem de lá. Então, as faces visíveis das “celebridades” seriam iguais ao que elas são por dentro, e o espectáculo começava verdadeiramente. A pocilga passava então de ser um nojo para uma necessidade, as batatas a terem que ser rateadas, e as cenas do Zé Maria com as galinhas a parecerem uma amável diversão campestre face ao parto das vacas e à limpeza das latrinas.
A TVI que pense nisso, mas que não se esqueça de impedir o dr. Portas de ir lá com os tanques buscar a “supertia”. O ministro foi publicamente a um bar desejar felicidades à “supertia” antes da ida para a quinta, num gesto de subtil bom gosto. Ah! Meu bom Macário Correia, como te deves sentir vingado!



“NOVAS FRONTEIRAS”


“Novas fronteiras” é nome de agência de viagem para turistas “aventureiros”, órfãos do Maio de 1968, mas passa agora por ser o nome de uma espécie de Estados Gerais do PS. Como convém à nova direcção do PS é um nome “redondo” que não significa rigorosamente nada. Pior: pode iludir-nos sobre a nossa realidade com o novo-riquismo das palavras modernaças.
O problema em Portugal é que as “novas fronteiras” ainda são as velhas fronteiras – pobreza, iliteracias diversas e crescentes, fragilidade dos poderes que deviam ser fortes, clientelismo, corrupção, um estado ineficaz e caro – tudo coisas que exigem muito mais do que um “choque tecnológico”, exigem reformas profundas capazes de só de serem feitas por quem se preocupe em definir objectivos claros e inequívocos. Isto vale para o PS e para o PSD.
Medidas? Ele há tantas: por exemplo impedir as autarquias de acederem a fundos, para fazerem rotundas e fontes monumentais, se antes não tiverem saneamento básico. Simples. Não é difícil encher uma Sábado completa destes exemplos, a custo zero, mas que tem um pequeno senão: implicariam um estado diferente do que temos, partidos diferentes dos que temos, vontade reformista que falta. As “novas fronteiras” vão-nos distrair desta realidade, porque, em matéria de afrontar interesses instalados, o neo-guterrismo é “redondo”.


A “PONTE”

Todos sabem que, a cada “ponte”, o país fica mais pobre. Pode discutir-se se mais ou menos, mas não se pode iludir a realidade sobre os efeitos destes dias de não trabalho na já baixa produtividade nacional. Dias de “não trabalho”? Pior, dias de “meio trabalho”, porque muita gente, principalmente no sector privado , continua a trabalhar e a perder tempo duplamente porque não sabe quais os serviços públicos que estão ou não a funcionar. Bate com o nariz na porta, ou com o ouvido no telefone que toca e toca e ninguém responde. Sim, porque isto da “tolerância” é uma palavra doce para designar que pura e simplesmente não se trabalha no sector público.
As razões desta “ponte” são puramente políticas. Ninguém a exigia, foi pura iniciativa do governo para agradar, para descomprimir, e também para esconder que, num serviço público básico, o do ensino, é ainda uma ficção o início do ano escolar. Não adianta vir dizer-se que este ano havia menos dias de “ponte”,do que nos quatro anos atrás. O governo, se estivesse preocupado com a situação do país, felicitava-se com o facto de haver menos dias sem trabalho, em vez de dar mais feriados. Eis outro sinal perigoso, mais um a somar a tantos, de que estamos a entrar num clima de permissividade, resultante do fim da “obsessão” com o défice, e do in´cio da “obsessão” com as eleições. Estamos a voltar ao habitual costume desleixado dos portugueses com o seu futuro, tão típico dos anos de Guterres.


CONSTITUIÇÃO EUROPEIA

Está na altura de iniciar um combate político por duas coisas simples. Uma, e´ que haja uma pergunta clara e inequívoca no referendo sobre a Constituição europeia, de resposta sim ou não, do género “concorda com a Constituição Europeia?”, mesmo que isso signifique mudar a Constituição portuguesa. Outra é que os portugueses dêem “não” como resposta a essa pergunta.
Barroso, nas suas declarações em Portugal, esta semana, deu um bom exemplo das razões pelas quais se deve votar “não” à Constituição europeia. Passando ao de leve no referendo sobre a Constituição, centrou a sua atenção sobre a possibilidade de outro referendo, sobre a adesão da Turquia. Então, falando sobre a Turquia, desatou numa série de invectivas do género: os “políticos” não podem alhear-se da vontade popular, vejam lá o atentado à democracia europeia se apenas meia dúzia decidissem essa coisa tão importante que é a adesão da Turquia.
Tem razão. Só que se esqueceu que as suas palavras assentam que nem uma luva no primeiro referendo, sobre o qual não lhe ocorreu fazer invectiva nenhuma, apesar de ser mais que justificado que o fizesse. Nesse caso, uma elite europeísta cozinhou de forma bem pouco democrática uma Constituição, que muda quase tudo na Europa. Agora prepara-se para a levar a referendo às escondidas, sem debate e debaixo de um falso unanimismo, sob a chantagem do facto consumado e da transformação da pergunta sobre a Constituição num sim ou não à Europa, o que não é o caso. Pior ainda, numa União Europeia que já disse que, mesmo que haja “nãos” maioritários em vários países europeus, vai fazer avançar a Constituição custe o que custar.

14.10.04

A FRONDA (Maio 2002)

De novo a RTP mostra a sua característica de órgão político, instrumento político, meio de actuação e pressão política, com o segundo "debate" sobre si própria transformado num comício contra o governo. A RTP que, nos últimos dez anos, não foi capaz de dar o seu precioso tempo a qualquer matéria de interesse nacional por exemplo, não fez uma única discussão sobre a Europa durante a Presidência portuguesa da UE -, usa agora toda a noite para defender uma posição política dominante na casa e atacar o governo.
Eu que assisti ao debate através da RTP Internacional ainda tive maior sensação da esquizofrenia com tudo aquilo. Imaginem os nossos emigrantes, habituados a presenciarem horas sem fim de programas de fado, Simone de Oliveira e Paco Bandeira, e que são cuidadosamente afastados de qualquer debate político sério, a verem com surpresa um debate cujas referências e condicionantes não conhecem, a preencher o prime-time. Devem achar que houve uma revolução em Portugal e que a programação, na sua excitação excepcional, está igual à do 25 de Novembro. A sensação de bizarria é tanto maior quanto a programação da RTP Internacional ficou tão perturbada que após o debate havia um filme sobre peixinhos. Depois do drama, o interlúdio.
Quando não se quer que um debate seja a sério enche-se o estúdio de convidados, usa-se a desproporção parlamentar entre a chamada "esquerda" e a "direita", para garantir o 3 a 2, conduz-se o debate de modo a permitir que X da "nossa" cor possa concluir os raciocínios e possa falar "limpo" e conta-se o tempo das interrupções no tempo do "outro", que, quando começa a falar "limpo", é admoestado que "tem que terminar". Depois escolhe-se a agenda e os convidados de modo a condicionar o terreno e a garantir que de um lado esteja o mais articulado defensor de uma posição e do outro alguém que tem uma posição híbrida e que tem que explicar dez vezes mais coisas. O resultado já se conhece à partida.
O que aconteceu na RTP na passada terça feira foi tudo isto e mais alguma coisa - foi um comício, usando o mais poderoso meio de comunicação de massas, integrado numa campanha política destinada a contrariar uma medida governativa incluída explicitamente no programa do governo sufragado pelos portugueses em eleições e na Assembleia da República, há pouco mais de três meses. Tudo foi manipulado por uma Judite de Sousa nervosa e excitada, que não ouvia nada do que lhe diziam, para repetir as mesmas perguntas armadilhadas - insistindo nos temas que dizia que eram "de fundo" e, ou se emitia o eco que ela queria ouvir, ou lá ia a palavra para o outro convidado numa cacofonia total. Por fim, no cúmulo da manipulação, surgiam miraculosas informações pelo auricular de Judite de Sousa, vindas da régie, onde, imagino, Rangel conduzia tudo como deus ex-machina do comício. A RTP está de facto a saque, financeira e politicamente.
Não há um átomo nesta questão do "serviço público" que não seja política e ideológica. Saber o que é ou não é "serviço público", como é que ele é garantido, qual o papel e as obrigações do Estado, saber o que é que o Estado deve garantir ou não no audiovisual, o que deve e pode pagar e como, o olhar que se tem sobre as virtudes ou defeitos do sector privado e do mercado, o modo como entendemos a liberdade individual da escolha do telespectador - tudo aqui remete para uma visão, uma escolha, que tem muito a ver com a política e a ideologia. Quem pensa que há cânones, padrões, soluções técnicas universais, regras inescapáveis, "modelos europeus", está a esconder as suas opções políticas por detrás do hoje muito confortável ecrã da "competência técnica". E o governo se pensa que isto é matéria de que possa prescindir das suas responsabilidades entregando decisões políticas a painéis de "técnicos", e "personalidades independentes",- a solução na moda para encobrir a fraqueza política - está já a recuar. Vá por aí e perde tudo, a razão primeiro e depois o combate político por uma reforma simbólica e vital para o seu programa.
As minhas humildes "razões", de alguém que escreve e tem opiniões sobre isto há muito tempo, mas que a RTP decidiu excluir do debate e eu percebo muito bem porquê, são também políticas, são opções e não as escondo debaixo de "modelos" importados. Entendo que o estado não deve ter órgãos de comunicação social, e que só os tem pelas piores razões, ou em nome de uma elite política iluminista que pretende "educar" o povo, ou porque os governos querem ter um instrumento de controlo político fundamental. Entendo que é saudável um forte sector privado de comunicação social, dispondo do maior número de estações possíveis, generalistas, temáticas, locais e regionais, obtendo o seu funcionamento do mercado, da publicidade, de assinaturas, de pay-TV, das autarquias, e do estado sob a forma de contratos de determinados serviços do interesse público. Entendo que a definição desses serviços deve obedecer a regras gerais mínimas e que a sua forma varia conforme for a oferta privada. Entendo que a regulamentação sobre as estações privadas deve ser mínima, mas intransigente, dura e aplicada com rigor, como contrapartida da concessão do uso do espaço radio-eléctrico.
E entendo, acima de tudo, que não se deveria perder esta oportunidade de fazer uma reforma radical do sector audiovisual libertando-o da canga governamental, das ambiguidades de governos metidos indevidamente na comunicação social, e modernizando-o colocando-o ao serviço do progresso do país. Privatizar a RDP e a RTP, acabar com a taxa da RDP e, com o dinheiro que aí se poupa, dar capacidade ao Ministro da Cultura, da Educação e dos Negócios Estrangeiros, para poderem contratar produtos e serviços fundamentais para a acção desses ministérios. Por exemplo, permitindo que o Ministro da Cultura e Educação encomendassem - por concurso entre os pares e não por escolha dos governantes - uma colecção de DVDs com as dez peças de teatro fundamentais do nosso reportório dramático. Esse dinheiro permitiria assegurar um conjunto de espectáculos teatrais, apoiando assim o teatro em português, filmá-las, apoiando assim a produção e transmissão do teatro nas estações privadas, e editá-las em DVD ou vídeo, para que possam ser distribuídas pelas escolas , dando a oportunidade aos alunos de "verem" o Frei Luis de Sousa que estudam no papel, e levá-lo às Universidades estrangeiras onde se estuda o português, e pelo Instituto Camões, aos centros portugueses dos PALOPs e às comunidades.
Em vez de monstros pagos exorbitantemente pelo erário público, é uma política de contratos e encomendas que defendo. É aqui que o Estado cumpre o "serviço público" e não através de televisões "generalistas". É para a Cultura e a Educação que nos devíamos voltar e não para a "comunicação social pública" com as suas ambiguidades e grupos de interesses, é para as empresas privadas, grupos de teatro, empresas de produção de conteúdos, actuando no mercado, ganhando e perdendo concursos e contratos, aumentando os padrões de qualidade para competirem, que o dinheiro que hoje se gasta com a RTP poderia ter um papel útil e modernizador.
E, por fim e o mais importante, o futuro é o cabo e a banda larga não o espaço hertziano, o futuro é a emissão temática e não a televisão "generalista", o futuro é a fusão da televisão, com a televisão interactiva, a televisão digital, a Internet em banda larga, a telefonia, a rádio digital - tudo o que cabe na fibra óptica ou em novas formas de transmissão radioeléctrica, onde a televisão pode ser tão barata como a rádio e os jornais, tão diversificada como já o cabo começa a ser, onde é possível usar os meios digitais para garantir uma plasticidade da procura e da oferta inimaginável na televisão analógica.
Porque é que o governo não olha para os pequenos 91.905 Km2 de Portugal e não dá o salto para o futuro, patrocinando um plano nacional de cablagem em fibra óptica, ao mesmo tempo que liberaliza no cabo a concessão de licenças para canais portugueses, produzidos por autarquias, ou por pequenas e grandes empresas do audiovisual, para que haja canais de debate, canais de fado, canais para amadores de bilhar ou xadrez, canais universitários, etc., etc.. O futuro está mais do lado da SIC Notícias e da SIC Radical que, como se viu, não apareceram da gigantesca RTP e da empáfia da "televisão pública".
É disto que a RTP tem medo, é disto que os actuais donos da televisão têm medo, é isto que os socialistas não querem como no passado não queriam televisão privada, e queriam jornais públicos. A democratização da televisão tirar-lhes-ia o poder.

11.10.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 7 (Outubro 2004)

A escolha do Diabo

Como não sou socialista, a escolha do PS deveria ser-me indiferente. Mas os socialistas irão governar o país, mais cedo ou mais tarde, na inevitável alternância do poder, e, infelizmente, têm até condições para que o consigam mais cedo do que tarde, caso tudo continue como está do lado do governo e do PSD.
Nunca houve em todo este debate uma verdadeira escolha entre Alegre e Sócrates. Sócrates tinha com ele o que faz mover os partidos, a promessa do poder, a possibilidade do poder. Tinha esse poder não só para o aparelho, mas para a esmagadora maioria dos militantes socialistas, como revelaram os resultados. Para o PS, é obvio que é um melhor negócio eleitoral ter Sócrates do que Alegre, e foi em grande parte por isso que ele ganhou como ganhou.
O nome dessa possibilidade do poder chama-se no PS “guterrismo”, o estilo, o método de António Guterres, que, insisto, para quem tende a esquecê-lo, representou um dos maiores descalabros da governação em Portugal. Foi, nem mais nem menos, o governo que condições mais favoráveis teve para dar um sério impulso modernizador a Portugal, com uma chuva de dinheiro contínua, e esbanjou tudo sem resultados e sem destino, deixando o país seriamente endividado. Gastou o que tinha e o que não tinha, para gáudio da multidão que respira o dinheiro do estado, adiou qualquer reforma de fundo, deixou o país impreparado para uma dificuldade futura. Quando essa dificuldade começou a surgir, Guterres retirou-se sem glória, fugindo ás responsabilidades.
O socialismo esquerdista de Alegre, se chegasse ao governo, provocaria uma crise de confiança nos meios económicos, perturbações institucionais e sociais, greves, mais “direitos adquiridos” que se solidificariam como betão instantâneo, mais retórica esquerdista, mais défice público. O socialismo sorridente de Sócrates-Guterres deixará, como deixou, uma mentalidade de facilitismo e um enorme rasto de despesa. À sua volta juntar-se-á de imediato todo o bando de suplicantes do estado, aliás os mesmos que transitaram de Guterres para Lopes (desconto o governo Barroso porque a política de contenção do défice de Manuela Ferreira Leite era odiada pelos suplicantes). O problema, meus amigos, não é apenas o PS deslocar-se para o centro político, deixado vazio pela inflexão do PSD para a direita, é conquistar o centro com um programa reformista e não apenas estatizante e gastador. E isso o PS nunca fez, e é contrário à natureza do guterrismo.
A pergunta que me interessa é: qual é o mais difícil de corrigir depois? Ambos certamente são maus, mas o guterrismo é sempre pior. Pode ser mais eficaz em conseguir o poder, como se viu e poderá ver, é mais popular, mas cola-se como Supercola aos defeitos colectivos dos portugueses. Por tudo isso , é mais complicado de remediar, por quem vier a seguir.


Impunidade da brigada da adrenalina

A adrenalina é uma hormona com boa imprensa, como se lê a propósito das corridas ilegais que mataram esta semana três pessoas. Pois é, mas é difícil construir uma sociedade minimamente civilizada com base na exibição da adrenalina, por isso essas corridas são criminosas, como se viu, e a minimização do crime que se lê por todo o lado não augura nada de bom. Até os bons liberais argumentam que, se eles se querem matar é lá com eles, corredores e espectadores, porque deve haver liberdade para o suicídio. Sucede que eu, como bom social-democrata, entendo que a sociedade deve pagar os custos médicos mesmo aos suicidas, e entendo que uma coisa é suicidar-se e outra coisa é ser “suicidado”.
Bullshit… A brigada da adrenalina que se quotize para arranjar um autódromo, ou peça um subsídio do estado, que paga já tanta coisa absurda, para financiar o tuning. O que não me venham é com desculpas, nem quanto à gravidade do que fazem, nem quanto ao crime de morte. Ah, e de passagem, a polícia que me explique porque razão é que centenas de pessoas sabem com antecedência onde são as corridas, e a polícia que conhece o meio, insisto que conhece o meio, nada pode fazer


Um que não muda, no meio do catavento

Mérito ao Ministro da Saúde, que articulado e conhecedor, materializa uma continuidade exemplar nas políticas do seu sector desde o governo Barroso, para o de Santana Lopes. Confrontando um dos mais temíveis adversários socialistas, Correia de Campos, identicamente sabedor e competente, saiu-se bem do debate dos Prós e Contras. Sabe o que faz, sabe o que quer e já obteve resultados. Se conseguir impedir que o Primeiro-ministro fale demais e precipitadamente, como fez a propósito das “taxas moderadoras”, poderá ser a imagem de um impulso reformista que hoje escasseia.
É uma excepção num governo que já mudou muito: já mudou a política externa num aspecto simbólico, o Iraque, em que passamos de membros de boa fé da coligação, para membros de má fé. Mudou a política das finanças, com o fim da “obsessão” do défice, para o défice “ao serviço do crescimento”. Para não falar do resto.


Um prato com o Sol

Dos destroços da sonda Génesis parece ter sobrado o suficiente para que um dos objectivos científicos da missão possa ser cumprido: o estudo do vento solar, o estudo da atmosfera solar e da sua composição química. Este prato simples contendo fragmentos de “vidros” muito especiais, partidos pelo impacto da desastrosa aterragem é a esperança de que se possa dar um enorme salto em frente para o conhecimento da estrela a que devemos a vida. Naqueles “vidros” de cores, que parecem bocados de um vitral, está parte da explicação da energia que move as folhas do loureiro que está à minha frente, que lhe dá a cor verde, que o faz respirar, que transporta a água da chuva que o rega. Bom, de quase tudo

4.10.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 6

A refinaria

… que eu conheci.

O que é que eu sei da refinaria de Leça? Coisas genéricas: é uma refinaria, um objectivo estratégico em caso de guerra. Deve estar guardada. É perigosa, como muitas instalações industriais. É ainda mais perigosa dado que trabalha com matérias incendiárias. Deve ter sido muito cara. Deve ser uma instalação importante para a economia do país. A esmagadora maioria dos portugueses devem saber isto quando se fala de uma refinaria. Como sou do Porto e conheço as praias de Matosinhos até ao Mindelo, sei mais algumas coisas. Sei que é bonita de se ver à noite, paisagem do Deserto Vermelho, para onde se levava as namoradas a caminho da casa do Siza ou da Praia da Memória. Que tinha uma chama eterna. Que cheirava a gasolina à volta. Que tinha fama de ser ainda mais perigosa do que as comuns refinarias, com as suas colunas onde se destilavam os aromáticos, benzeno, xileno, tolueno, voláteis, explosivos. Sei também como são magníficos os terrenos que ocupa, junto à costa bravia do Atlântico, a meia hora do centro do Porto, verdadeiro sonho de autarcas, urbanizadores e empreiteiros. Como leio os jornais e tenho um interesse pela coisa pública, sei que o abastecimento no Norte depende da refinaria de Leça. Sei que só há outra assim em Sines, pelo que Portugal não tem backup.

Tudo saberes que a gente acumula na vida, como quem não quer a coisa, sem estudo, imprecisos, pouco técnicos, impressionistas, se calhar errados num ou noutro aspecto. Mas o suficiente para saber, quando ouvi do gabinete do Primeiro-ministro que a refinaria ia ser encerrada, sugerindo que fecharia as portas amanhã (até se avisava que os trabalhadores teriam os seus interesses acautelados, o que pressupõe o encerramento definitivo), que só podia haver a mais absoluta ligeireza em tal afirmação, para além de não poder ser verdade. E não era. Está-se a falar demais e a trabalhar de menos ou mal, e o resultado é uma exibição de incompetência.


A descoberta da desigualdade fiscal


Um surto de luta de classes, raiva, má-língua, perturba a pequena comunidade rural onde vivo. Intenso, breve. Mas todos os anos se repete e deixa um rasto de mal-estar e de conflitos. Nessa pequena comunidade, nesta altura do ano, os pobres descobrem que são ricos e, ao mesmo tempo, descobrem que os “ricos” que conhecem (que são remediados, na maioria dos casos) são pobres. Todos os anos, quando se afixam nas escolas as listas classificadas dos subsídios escolares (quem recebe dinheiro para os livros, quem tem as refeições subsidiadas), os pobres percebem que estão no escalão B e estes “ricos” estão no A, porque não declaram o que ganham e não pagam impostos. Numa mega-escala, isto já se tinha visto quando das propinas indexadas às declarações fiscais, em que um país de pobres fiscais emergiu entre os pais dos estudantes universitários, que não são propriamente o fundo da escala social.

O problema de qualquer “moderação” baseada nas declarações fiscais é este: a sua escassíssima relação com a realidade. O resultado prático não é mais justiça fiscal, mas sim a reprodução e mesmo o agravamento da desigualdade.


A transparência fiscal

Estes surtos de “transparência” forçada são positivos: revoltam. É por isso que eu sou de há muito tempo partidário do carácter público das declarações de rendimentos. Os impostos são um elemento básico de uma relação de cidadania, e por isso devem ser tão transparentes como o bilhete de identidade. Terá que se alterar o modelo da declaração de IRS, de modo a proteger certos elementos pessoais que devem permanecer privados, mas o essencial, que é a declaração de rendimentos, deve ser pública.

O ministro Bagão Félix entende o mesmo e disse-o na entrevista que deu esta semana. Ainda bem, é uma proposta arrojada feita por quem é ministro das finanças. Mostra coragem. Como ministro é ministro, e supõe-se que manda, espera-se que actue em função do que pensa.


Fotografias Que Mudam O Mundo

Fotografias como esta mudam o mundo e nunca mais se esquecem. São toda uma guerra, para toda uma geração. O vietnamita executado, que parece que também tinha cometido umas violências pouco antes de ser feito prisioneiro, morreu aqui. O executor morreu de doença, há uns anos, depois de ser dono de uma pequena pizzaria no interior dos EUA. Milhares de execuções deste tipo foram feitas pelos americanos, pelos vietnamitas, e muitas mais pelo então chamado vietcong.

Claro que por detrás do gesto assassino do comandante da polícia Nguyen Ngoc Loan, estavam muitas outras coisas que não se vêem nesta fotografia e que só com a tragédia dos boat people se perceberam. Mas isso interessa pouco para a força desta imagem, para a ética desta imagem. É a guerra e a violência da guerra, nua e crua, só que desta vez diante das câmaras, o que faz toda a diferença. O seu autor, Eddie Adams, morreu esta semana e ajudou a acabar com a guerra do Vietname.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 5 (Setembro 2004)

PORQUE É QUE É MAU ABANDONAR A “OBSESSÃO” DO DÉFICE

No dia em que se percebeu o que aí vinha, escrevi que era só uma questão de tempo até que se deitasse pela borda fora o pouco que se tinha adquirido. Depois disso muito se discutiu sobre se o governo de Santana Lopes iria ser mais ou menos despesista. A escolha de Bagão Félix para as Finanças foi saudada como um sinal de que ele funcionaria como um avalista para que não houvesse despesismo, contrariando as pulsões eleitorais conhecidas do Primeiro-ministro.
Havia, é certo, sinais contraditórios: todas as declarações do Primeiro-ministro implicavam sempre mais despesa, mas Bagão Felix aparecia depois a contraria-las e o Primeiro-Ministro, que ouve bem e depressa, lá fazia as suas rectificações. Mas do resíduo desta confusão, iam pouco a pouco ficando promessas. Ia-se ver a força do avalista. Depois da comunicação de há dias e da clara admissão que o défice de 3% pode ser ultrapassado, depois da retórica do rigor servir no fundo para justificar a ruptura com a “obsessão” do governo Barroso – Manuela Ferreira Leite, já se percebeu, como muitas vezes acontece na história, que será o avalista Bagão Félix que assinará as contas das despesas que uma enorme multidão dependurada no estado pretende fazer. Não será ostensivo, não será muitas vezes evidente, não será nunca o suficiente, mas a ruptura com o rigor será ele, Bagão Félix, o avalista do despesismo, que a fará. Já a fez, já a está a fazer.
O que nós precisamos é de uma longa cura de falta de dinheiro no estado, de “obsessão” pelo défice, pelo equilíbrio das contas públicas, ou seja pela adequação entre o dinheiro que se tem e o que se gasta. Não é uma questão de contabilista, nem é uma questão de economista, é uma questão de política. Política pura que é mau aliás deixar a economistas. Um estado que vive rarefeito de dinheiro é mais propício a reformas, a procurar soluções para poupar, a deslocar o pouco dinheiro que há para tentar gastar melhor. É uma questão de “ambiente” e a política de Manuel Ferreira Leite melhorava o “ambiente” e forçava-nos, mais cedo do que tarde, a reformar. Não garantia as reformas, mas tornava-as mais urgentes. O “ambiente” é pouco? Não. O “ambiente” é tudo.
O que eu queria era um governo com os cordões apertados na bolsa por um exigente e capaz tesoureiro, e depois um grupo conhecedor, inovador e corajoso, a procurar que o pouco dinheiro que havia fosse aumentado nas receitas e diminuído nas despesas. Cada vez me convenço mais que um governo destes é quase impossível em Portugal, porque em Portugal não há médio prazo, como se vê. Sai Durão Barroso – Ferreira Leite, entra Santana Lopes – Bagão Félix e tudo muda.
Em Portugal, enquanto o estado gastar mais do que ganha, não há reformas possíveis, nem a sociedade parasitária do estado se vê obrigada a soltar-se dele. Há demasiados subsídios, possibilidades de subsídios, dinheiros públicos, acesso a dinheiros públicos, para que uma sociedade de um país pobre se solte do estado. Há demasiado dinheiro no estado para que haja um verdadeiro esforço para melhorar os serviços. Há dinheiro a mais e não dinheiro a menos, logo gasta-se mal e hipoteca-se o futuro.
O “ambiente” mudou para o lado da despesa, é apenas uma questão de tempo até ela começar a pesar de novo. Ouviremos Bagão Félix mais vezes a explicar-nos porque é difícil controlar o défice, mas nunca a dizer-nos que será cada vez mais difícil fazê-lo porque ele deixou de ter essa “obsessão” de o controlar.


FAÇO CONFERÊNCIAS DE IMPRENSA, LOGO EXISTO

Tenho de há muito a tese que a explicação mais simples para um evento bizarro é normalmente a melhor. As teses conspirativas, ou muito elaboradas, em que se diz isto para fazer passar aquilo, em que se diz preto porque se quer branco, afirmando isto dou um sinal para aquilo, têm para mim dois óbices fundamentais: não resultam na esmagadora maioria dos casos, e depois, em Portugal, nada de muito complicado funciona.
A bizarra conferência de imprensa do Ministro do Ambiente Nobre Guedes, com a sua grandiloquência grave, cheia de acusações de negligência criminosa, sem outro resultado que a criação de outras comissões e inquéritos, cheia de potencial cizânia interministerial, e interpartidária, seguida de reprimenda e diminuição de competências, pode ter as mais complicadas das interpretações. Fico-me por uma muito simples. O Ministro do Ambiente nada conhece de Ambiente, mais do que isso, pouco lhe interessa o Ambiente. O Ministro do Ambiente interessa-se pela sua pessoa, e pelo seu grupo partidário, para o que precisa de existir, ser, mostrar que manda, que faz alguma coisa. A solução mais simples é a conferência de imprensa e um pretexto. O desastre do oleoduto de Leça foi o pretexto. O resultado foi exactamente o contrário das intenções do seu autor. Se lesse Weber percebia porquê.


TRAIDORA TRADUÇÃO - MORTE E MEMÓRIA

Catherine Merridale, Night of Stone, Death and Memory in Russia, Londres, Granta Books, 2000

A Rússia está outra vez a mover-se para zonas perigosas. Numa sociedade cuja democracia e fragilíssima e acantonada em escassos sectores da vida pública, a Presidência de Putin está a caminhar claramente para uma autocracia.
A Rússia devia ser um país que toda a gente que profere um sussurro que seja sobre a história contemporânea, deveria ser obrigada a estudar a fundo, e este livro deveria fazer parte desse estudo. Porque na Rússia o particular é o universal, e na sua história viva, nas pessoas vivas, está uma tal dose de sofrimento e memória, que remete para toda uma história do humano, sem paralelo no ocidente. Os russos lembram-se da II Guerra Mundial, de forma diferente dos ingleses, americanos e alemães. Os russos lembram-se, com uma memória da história, não como um sentimento do presente. O seu sofrimento foi “antigo”, teve uma dimensão trágica que mostra que os povos podem sofrer por igual (o sofrimento é muito igual para os que sofrem), mas a memória do sofrimento é diferente. Se acrescentarmos a essa memória da guerra a do Gulag, os milhões de vida devorados, as populações deslocadas, as aldeias atravessadas pelo medo absoluto, temos aí uma história única. O massacre de Beslan inseriu-se nessa história – memória da dor sem paralelo noutro povo, depositada em particular nas mulheres, nas mães russas. Ouviremos falar cada vez mais da Rússia e isso é mau sinal.