14.10.04

A FRONDA (Maio 2002)

De novo a RTP mostra a sua característica de órgão político, instrumento político, meio de actuação e pressão política, com o segundo "debate" sobre si própria transformado num comício contra o governo. A RTP que, nos últimos dez anos, não foi capaz de dar o seu precioso tempo a qualquer matéria de interesse nacional por exemplo, não fez uma única discussão sobre a Europa durante a Presidência portuguesa da UE -, usa agora toda a noite para defender uma posição política dominante na casa e atacar o governo.
Eu que assisti ao debate através da RTP Internacional ainda tive maior sensação da esquizofrenia com tudo aquilo. Imaginem os nossos emigrantes, habituados a presenciarem horas sem fim de programas de fado, Simone de Oliveira e Paco Bandeira, e que são cuidadosamente afastados de qualquer debate político sério, a verem com surpresa um debate cujas referências e condicionantes não conhecem, a preencher o prime-time. Devem achar que houve uma revolução em Portugal e que a programação, na sua excitação excepcional, está igual à do 25 de Novembro. A sensação de bizarria é tanto maior quanto a programação da RTP Internacional ficou tão perturbada que após o debate havia um filme sobre peixinhos. Depois do drama, o interlúdio.
Quando não se quer que um debate seja a sério enche-se o estúdio de convidados, usa-se a desproporção parlamentar entre a chamada "esquerda" e a "direita", para garantir o 3 a 2, conduz-se o debate de modo a permitir que X da "nossa" cor possa concluir os raciocínios e possa falar "limpo" e conta-se o tempo das interrupções no tempo do "outro", que, quando começa a falar "limpo", é admoestado que "tem que terminar". Depois escolhe-se a agenda e os convidados de modo a condicionar o terreno e a garantir que de um lado esteja o mais articulado defensor de uma posição e do outro alguém que tem uma posição híbrida e que tem que explicar dez vezes mais coisas. O resultado já se conhece à partida.
O que aconteceu na RTP na passada terça feira foi tudo isto e mais alguma coisa - foi um comício, usando o mais poderoso meio de comunicação de massas, integrado numa campanha política destinada a contrariar uma medida governativa incluída explicitamente no programa do governo sufragado pelos portugueses em eleições e na Assembleia da República, há pouco mais de três meses. Tudo foi manipulado por uma Judite de Sousa nervosa e excitada, que não ouvia nada do que lhe diziam, para repetir as mesmas perguntas armadilhadas - insistindo nos temas que dizia que eram "de fundo" e, ou se emitia o eco que ela queria ouvir, ou lá ia a palavra para o outro convidado numa cacofonia total. Por fim, no cúmulo da manipulação, surgiam miraculosas informações pelo auricular de Judite de Sousa, vindas da régie, onde, imagino, Rangel conduzia tudo como deus ex-machina do comício. A RTP está de facto a saque, financeira e politicamente.
Não há um átomo nesta questão do "serviço público" que não seja política e ideológica. Saber o que é ou não é "serviço público", como é que ele é garantido, qual o papel e as obrigações do Estado, saber o que é que o Estado deve garantir ou não no audiovisual, o que deve e pode pagar e como, o olhar que se tem sobre as virtudes ou defeitos do sector privado e do mercado, o modo como entendemos a liberdade individual da escolha do telespectador - tudo aqui remete para uma visão, uma escolha, que tem muito a ver com a política e a ideologia. Quem pensa que há cânones, padrões, soluções técnicas universais, regras inescapáveis, "modelos europeus", está a esconder as suas opções políticas por detrás do hoje muito confortável ecrã da "competência técnica". E o governo se pensa que isto é matéria de que possa prescindir das suas responsabilidades entregando decisões políticas a painéis de "técnicos", e "personalidades independentes",- a solução na moda para encobrir a fraqueza política - está já a recuar. Vá por aí e perde tudo, a razão primeiro e depois o combate político por uma reforma simbólica e vital para o seu programa.
As minhas humildes "razões", de alguém que escreve e tem opiniões sobre isto há muito tempo, mas que a RTP decidiu excluir do debate e eu percebo muito bem porquê, são também políticas, são opções e não as escondo debaixo de "modelos" importados. Entendo que o estado não deve ter órgãos de comunicação social, e que só os tem pelas piores razões, ou em nome de uma elite política iluminista que pretende "educar" o povo, ou porque os governos querem ter um instrumento de controlo político fundamental. Entendo que é saudável um forte sector privado de comunicação social, dispondo do maior número de estações possíveis, generalistas, temáticas, locais e regionais, obtendo o seu funcionamento do mercado, da publicidade, de assinaturas, de pay-TV, das autarquias, e do estado sob a forma de contratos de determinados serviços do interesse público. Entendo que a definição desses serviços deve obedecer a regras gerais mínimas e que a sua forma varia conforme for a oferta privada. Entendo que a regulamentação sobre as estações privadas deve ser mínima, mas intransigente, dura e aplicada com rigor, como contrapartida da concessão do uso do espaço radio-eléctrico.
E entendo, acima de tudo, que não se deveria perder esta oportunidade de fazer uma reforma radical do sector audiovisual libertando-o da canga governamental, das ambiguidades de governos metidos indevidamente na comunicação social, e modernizando-o colocando-o ao serviço do progresso do país. Privatizar a RDP e a RTP, acabar com a taxa da RDP e, com o dinheiro que aí se poupa, dar capacidade ao Ministro da Cultura, da Educação e dos Negócios Estrangeiros, para poderem contratar produtos e serviços fundamentais para a acção desses ministérios. Por exemplo, permitindo que o Ministro da Cultura e Educação encomendassem - por concurso entre os pares e não por escolha dos governantes - uma colecção de DVDs com as dez peças de teatro fundamentais do nosso reportório dramático. Esse dinheiro permitiria assegurar um conjunto de espectáculos teatrais, apoiando assim o teatro em português, filmá-las, apoiando assim a produção e transmissão do teatro nas estações privadas, e editá-las em DVD ou vídeo, para que possam ser distribuídas pelas escolas , dando a oportunidade aos alunos de "verem" o Frei Luis de Sousa que estudam no papel, e levá-lo às Universidades estrangeiras onde se estuda o português, e pelo Instituto Camões, aos centros portugueses dos PALOPs e às comunidades.
Em vez de monstros pagos exorbitantemente pelo erário público, é uma política de contratos e encomendas que defendo. É aqui que o Estado cumpre o "serviço público" e não através de televisões "generalistas". É para a Cultura e a Educação que nos devíamos voltar e não para a "comunicação social pública" com as suas ambiguidades e grupos de interesses, é para as empresas privadas, grupos de teatro, empresas de produção de conteúdos, actuando no mercado, ganhando e perdendo concursos e contratos, aumentando os padrões de qualidade para competirem, que o dinheiro que hoje se gasta com a RTP poderia ter um papel útil e modernizador.
E, por fim e o mais importante, o futuro é o cabo e a banda larga não o espaço hertziano, o futuro é a emissão temática e não a televisão "generalista", o futuro é a fusão da televisão, com a televisão interactiva, a televisão digital, a Internet em banda larga, a telefonia, a rádio digital - tudo o que cabe na fibra óptica ou em novas formas de transmissão radioeléctrica, onde a televisão pode ser tão barata como a rádio e os jornais, tão diversificada como já o cabo começa a ser, onde é possível usar os meios digitais para garantir uma plasticidade da procura e da oferta inimaginável na televisão analógica.
Porque é que o governo não olha para os pequenos 91.905 Km2 de Portugal e não dá o salto para o futuro, patrocinando um plano nacional de cablagem em fibra óptica, ao mesmo tempo que liberaliza no cabo a concessão de licenças para canais portugueses, produzidos por autarquias, ou por pequenas e grandes empresas do audiovisual, para que haja canais de debate, canais de fado, canais para amadores de bilhar ou xadrez, canais universitários, etc., etc.. O futuro está mais do lado da SIC Notícias e da SIC Radical que, como se viu, não apareceram da gigantesca RTP e da empáfia da "televisão pública".
É disto que a RTP tem medo, é disto que os actuais donos da televisão têm medo, é isto que os socialistas não querem como no passado não queriam televisão privada, e queriam jornais públicos. A democratização da televisão tirar-lhes-ia o poder.