15.9.04

SEM CARROS E SEM CABEÇA (Setembro 2000)

Há várias razões porque o "politicamente correcto" tem sucesso em Portugal e todas têm a ver com as nossas fragilidades. A primeira e a mais importante, diz respeito à debilidade da nossa vida pública, à ausência de debate contraditório, à facilidade na demagogia modernista, ao palavreado tão desempoeirado como superficial, nalguns casos ao logro puro e simples. Um exemplo gritante dessa facilidade que tem o "politicamente correcto" em dominar tudo, foi a forma como correu o chamado "Dia sem Carros".
O "Dia sem Carros" é uma daquelas iniciativas bem avontadadas e inócuas pela qual hoje se permite aos governantes nacionais e europeus terem uns discursos amáveis sobre o destino do mundo e o bem que eles todos os dias fazem aos seus eleitores. Como é normal nas cidades europeias melhor preparadas para se viver sem carros, a iniciativa não foi levada a sério e passou desapercebida de todos. Em Portugal, como de costume, o atraso correspondeu à apoteose. Nenhum país da Europa deve ter vivido com tanta excitação o seu "Dia sem Carros".
Como acontece hoje, estas "soft issues", que não implicam nada mais do que a exposição das boas intenções de quem nos governa, estão sempre pela sua natureza acima da crítica. É da natureza destas "soft issues" não resolverem nenhum dos "hard problems" que elas aliás fazem por substituir, porque é da natureza do "politicamente correcto" evitar, adiar, esconder os problemas, porque defrontá-los divide, expõe, polariza. Polarizar é hoje uma coisa que nenhum dos políticos de marketing quer. Eles só querem que o Tide seja mais vendido que o Omo, e nunca que haja um exército aguerrido de partidários do Tide contra o Omo e vice-versa, não vá ganhar a rude lixívia. Está na natureza dos detergentes.
Vejamos o "Dia sem Carros" em Portugal. A verdade que a todo o custo se nos pretende ocultar é o do completo falhanço do objectivo do "Dia sem Carros". O objectivo era mostrar que se pode viver na cidade sem carros, e as pessoas necessariamente responderam que não. Faltaram aos empregos, não levaram os filhos à escola, não fizeram a sua vida normal, consideraram que o dia era um feriado a mais e aproveitaram para alargar o fim de semana. Não admira que gostassem de ouvir os passarinhos.
Os nossos governantes sabem que não há nada como uma ponte, um feriado, uma tolerância de ponto, para satisfazer uma parte da população dentro do velho princípio do panis et circensis. Eles também sabem que o problema não está no "circo" mas no "pão" e que Portugal tem feriados a mais, férias a mais, e uma baixa produtividade – só que não convém dizer isso no "Dia sem Carros". Dizer quanto custou à economia nacional.
E, por isso tudo correu muito bem. Aliás nem se compreende se, como disse João Soares, tudo está preparado para que Lisboa funcione sem carros, com os excelentes transportes públicos que a gente sabe que a cidade tem, que pura e simplesmente não se continue com a iniciativa. Se proibir os carros melhora a vida de tudo e todos, porque não proibir sempre, porquê não remeter o tenebroso carrinho para as garagens suburbanas e restituir a "qualidade de vida" tão exemplar de Lisboa? Isto chama-se deitar areia nos olhos das pessoas, a mesma areia que vai continuar a fazer uma cidade que torna inevitáveis e obrigatórios os carros, o caos urbano e trânsito, numa cidade que nem sequer consegue cumprir o regulamento de cargas e descargas, quanto mais não ter automóveis.
Se se tratava de um caso de pedagogia cívica porquê a obrigatoriedade? Se as autoridades estão assim tão certas das virtudes da iniciativa porque razão é que não apelaram a um abandono voluntário dos carros, a criar condições para que aumentassem os serviços de transportes públicos, a facilitar a vinda de bicicletas, trotinetes, patins, cavalos e burros ao centro da cidade. A razão é muito simples: toda a gente percebe que o apelo não seria seguido e o afluxo dos transportes "alternativos" iria aumentar o caos urbano. O "politicamente correcto" não pode correr o risco do voluntariado, porque isso mostraria a sua falta de apoio - precisa da obrigação, da proibição.
Outra razão do sucesso do "politicamente correcto" é a hegemonia da esquerda sobre a comunicação social e logo a facilidade com que esta embandeira em arco com iniciativas destas. Há quanto tempo nenhuma grande cadeia de televisão nacional, a começar pela RTP pública que é suposto retirar daí a legitimidade para a sua existência, faz um debate contraditório sobre alguma coisa? Mas está tudo tão anestesiado que ninguém se pergunta porque razão, no meio de tanta cobertura especial, não se ouviu ninguém atacar a iniciativa. Não é estranho num país democrático? Felizes os países com esta unanimidade.
A razão é simples: o politicamente correcto não suporta o debate, a controvérsia. As suas justificações estão sempre no terreno intangível dos bons princípios, das boas vontades, das boas intenções, que duvidar só pode ser um acto de maldade, ou egoísmo. Como pode a virtude discutir com o vício?
Porque se houvesse debate alguém certamente lembraria ao Ministro Sócrates que faz parte do único governo da Europa que subsidia a gasolina barata, numa política de combustíveis errática e cujas ondas de choque perturbam as finanças e a economia. Quando os combustíveis derem o salto que inevitavelmente vão dar no próximo ano, só faltava que então aparecessem "verdes" razões, que agora convenientemente esqueceram.
Porque se houvesse debate alguém lembraria que o "Dia sem Carros" é, como quase tudo no "politicamente correcto", socialmente injusto e que o seu preço será, como sempre, pago pelos mais pobres. Os ricos podem bem sobreviver a muitos "Dia sem Carros", os remediados e os pobres, os que precisam do carro para trabalhar, ou aqueles que precisam de gente nas ruas e fácil acesso às cidades para as suas actividades comerciais, esses pagaram a demagogia. Aliás, que eu saiba, nenhuma das grandes superfícies comerciais de Lisboa, estava inacessível por carro.
O "politicamente correcto" é uma das formas modernas de demagogia. Aquilo que à direita faz o Dr. Portas, à esquerda fazem os apóstolos do "politicamente correcto". Há muita mais ideologia na demagogia do que o que se pensa. Da mesma maneira que a direita se excita quando há um assalto, a esquerda embandeira em arco quando pode atacar o consumo e o individualismo. E de há muito tempo, o vil carrinho está na linha da frente dessas críticas. O resultado está à vista. Portugal mais longe da Europa, a Europa cada vez mais longe dos Estados Unidos. Pensam que não é por estas coisas? É. É muito por causa destas coisas, o que elas representam, o que elas impedem e o que elas custam.