TRAIDORA TRADUÇÃO - A NOSSA MAFIA CASEIRA (Julho 2004)
David Lavery (editor), This Thing of Ours. Investigating the Sopranos, Columbia University Press, 2002
Os Sopranos ficarão como uma série que revolucionou a televisão, não só pela sua qualidade genérica, mas também pelos notáveis guião, representação e realização. Num certo sentido, tem muitas semelhanças com o Dallas, uma série onde os maus dominavam o ecrã, entre o negócio, o crime, a cama, o psiquiatra e a família. No entanto, as diferenças são significativas: o Dallas era anti-capitalista, e os Sopranos são liberais; os maus do Dallas eram ricos e distantes, viviam nos bares e restaurantes dos hotéis de luxo da América do interior, e os maus dos Sopranos vivem entre o subúrbio étnico e o “american trash”. Daí que as pessoas gostassem de odiar os Ewing, e não consigam odiar Tony Soprano e a sua “equipa”.
Esta empatia é talvez o ponto mais interessante das análises da colecção de ensaios de responsabilidade de David Lavery, intitulada This Thing of Ours, um dos livros mais interessantes sobre os Sopranos, e uma antologia, típico produto da academia americana. Os títulos dos ensaios são magníficos e bem conformes com o mundo retratado entre os Sopranos e os filmes de Tarantino: “Fat fuck! (intraduzível) Porque é que não olhas para o espelho? Imagem do corpo e masculinidade nos Sopranos”, ou “Cunnilingus e Psquiatria fizeram-nos chegar até aqui? “, ou “Por detrás do Bada Bing! Negociando a autoridade na narrativa feminina”, ou o “Dezoito de Brumário de Tony Soprano”, ou “A brutalidade da carne e o carácter abrupto dos mariscos”, e por aí adiante.
É verdade que Tony Soprano nem sequer imagina o que é o Dezoito de Brumário, mas os Sopranos têm de tudo para toda a gente. Um dos mais interessantes capítulos deste livro é uma lista exaustiva das referências intelectuais dos Sopranos, que vai de Coleridge, a Robert Nozick, passando por Nietzsche, pela “madalena” de Proust (comentário de Tony, quando a psiquiatra Melfi lhe fala de Proust: “sounds very gay”), pelo Talmud, Sharon Stone, Tenneessee Williams, Rasputin – uma verdadeira enciclopédia da cultura erudita e popular ocidental. Não é fundamental saber que é Edgar Allan Poe “o tipo que fez toda aquela merda do Vincent Price (“Vincent Price shit”) ”, como diz Tony, quando a filha descobre um ensaio na Internet para copiar e assim fazer um falso trabalho para o namorado mafioso, para se gostar dos Sopranos. Mas para os émulos da dra. Melfi, a psiquiatra, ajuda. Aliás, a série é considerada pelos profissionais da psiquiatria aquela que melhor retrata o trabalho da profissão e os seus impasses.
Para os comuns mortais, resta tudo aquilo que é analisado neste livro: as disfunções familiares mais triviais numa família nuclear, as pequenas redes étnicas de partilha, entreajuda e competição, o provincianismo dos subúrbios (embora os subúrbios de Nova Iorque sejam uns subúrbios muito especiais), a mediterrânica contradição entre a honra e a vergonha, o machismo e as suas fragilidades, a centralidade da comida e do sexo, a criminalidade violenta (mata-se e tortura-se nos Sopranos), mas, mesmo assim, tão caseira e kitsch. A história também é retratada em acto, com a presença das mafias russas assumindo um papel crescente no mundo do crime, e a crescente disparidade entre o mundo das mulheres de meia idade, casadas com a geração mafiosa no poder, e as raparigas mais novas, como Meadows, que namora um negro e se dedica a causas da esquerda, tanto quanto há uma esquerda americana.
O que faz dos Sopranos uma série marcante, daquelas que definem um antes e um depois, é o excepcional trabalho, a qualidade e natureza inventiva, mérito da HBO, produtora para canal de cabo, o único onde nos EUA podem passar os Sopranos com a sua linguagem obscena e a violência. “It’s not TV . It’s HBO”, escreve-se num dos ensaios deste livro em que se esboça uma história desta produtora e do canal que a suporta, um dos exemplos da inanidade inútil da “excepção cultural” com que os franceses querem barrar a “americanização” da Europa, que eles acham que é a França em grande. Enquanto existirem séries como os Sopranos, ou como, no passado, a Twilight Zone, só os ingleses, os “nossos” americanos, são capazes de competir em criatividade e mudança, como é o caso do Monty Python, ou do Yes Prime Minister, obras-primas a seu modo. A continuar assim, a televisão continuará a ser uma arte americana.
Os Sopranos ficarão como uma série que revolucionou a televisão, não só pela sua qualidade genérica, mas também pelos notáveis guião, representação e realização. Num certo sentido, tem muitas semelhanças com o Dallas, uma série onde os maus dominavam o ecrã, entre o negócio, o crime, a cama, o psiquiatra e a família. No entanto, as diferenças são significativas: o Dallas era anti-capitalista, e os Sopranos são liberais; os maus do Dallas eram ricos e distantes, viviam nos bares e restaurantes dos hotéis de luxo da América do interior, e os maus dos Sopranos vivem entre o subúrbio étnico e o “american trash”. Daí que as pessoas gostassem de odiar os Ewing, e não consigam odiar Tony Soprano e a sua “equipa”.
Esta empatia é talvez o ponto mais interessante das análises da colecção de ensaios de responsabilidade de David Lavery, intitulada This Thing of Ours, um dos livros mais interessantes sobre os Sopranos, e uma antologia, típico produto da academia americana. Os títulos dos ensaios são magníficos e bem conformes com o mundo retratado entre os Sopranos e os filmes de Tarantino: “Fat fuck! (intraduzível) Porque é que não olhas para o espelho? Imagem do corpo e masculinidade nos Sopranos”, ou “Cunnilingus e Psquiatria fizeram-nos chegar até aqui? “, ou “Por detrás do Bada Bing! Negociando a autoridade na narrativa feminina”, ou o “Dezoito de Brumário de Tony Soprano”, ou “A brutalidade da carne e o carácter abrupto dos mariscos”, e por aí adiante.
É verdade que Tony Soprano nem sequer imagina o que é o Dezoito de Brumário, mas os Sopranos têm de tudo para toda a gente. Um dos mais interessantes capítulos deste livro é uma lista exaustiva das referências intelectuais dos Sopranos, que vai de Coleridge, a Robert Nozick, passando por Nietzsche, pela “madalena” de Proust (comentário de Tony, quando a psiquiatra Melfi lhe fala de Proust: “sounds very gay”), pelo Talmud, Sharon Stone, Tenneessee Williams, Rasputin – uma verdadeira enciclopédia da cultura erudita e popular ocidental. Não é fundamental saber que é Edgar Allan Poe “o tipo que fez toda aquela merda do Vincent Price (“Vincent Price shit”) ”, como diz Tony, quando a filha descobre um ensaio na Internet para copiar e assim fazer um falso trabalho para o namorado mafioso, para se gostar dos Sopranos. Mas para os émulos da dra. Melfi, a psiquiatra, ajuda. Aliás, a série é considerada pelos profissionais da psiquiatria aquela que melhor retrata o trabalho da profissão e os seus impasses.
Para os comuns mortais, resta tudo aquilo que é analisado neste livro: as disfunções familiares mais triviais numa família nuclear, as pequenas redes étnicas de partilha, entreajuda e competição, o provincianismo dos subúrbios (embora os subúrbios de Nova Iorque sejam uns subúrbios muito especiais), a mediterrânica contradição entre a honra e a vergonha, o machismo e as suas fragilidades, a centralidade da comida e do sexo, a criminalidade violenta (mata-se e tortura-se nos Sopranos), mas, mesmo assim, tão caseira e kitsch. A história também é retratada em acto, com a presença das mafias russas assumindo um papel crescente no mundo do crime, e a crescente disparidade entre o mundo das mulheres de meia idade, casadas com a geração mafiosa no poder, e as raparigas mais novas, como Meadows, que namora um negro e se dedica a causas da esquerda, tanto quanto há uma esquerda americana.
O que faz dos Sopranos uma série marcante, daquelas que definem um antes e um depois, é o excepcional trabalho, a qualidade e natureza inventiva, mérito da HBO, produtora para canal de cabo, o único onde nos EUA podem passar os Sopranos com a sua linguagem obscena e a violência. “It’s not TV . It’s HBO”, escreve-se num dos ensaios deste livro em que se esboça uma história desta produtora e do canal que a suporta, um dos exemplos da inanidade inútil da “excepção cultural” com que os franceses querem barrar a “americanização” da Europa, que eles acham que é a França em grande. Enquanto existirem séries como os Sopranos, ou como, no passado, a Twilight Zone, só os ingleses, os “nossos” americanos, são capazes de competir em criatividade e mudança, como é o caso do Monty Python, ou do Yes Prime Minister, obras-primas a seu modo. A continuar assim, a televisão continuará a ser uma arte americana.
2 Comments:
Caro Sr. Pacheco Pereira,
Aprecio muito os seus artigos sobre livros na revista Sábado. O que ainda não consegui perceber é a regularidade com que os seus artigos são publicados nessa revista.
Tendo já inquirido a redação da revista sem ter obtido qualquer resposta, venho por este meio colocar-lhe a mesma questão, isto é, com que regularidade é publicada a Traidora Tradução na revista Sábado? Obrigado.
Cumprimentos,
Marco Batista
omeucaderno@netvisao.pt
Antes de tudo, quero dar-lhe os meus parábens pelo post.
No que se refere à critica, apesar da razão lógica que apresenta no post, convém não esquecer que, cada série tem o seu tempo cultural e a sua época social. Para além de ter os seus alvos...
Enviar um comentário
<< Home