19.7.04

A EUROPA NÃO É UM PAÍS (Outubro 2002)


A nossa relação com a Europa ou melhor com a UE, pode ser claramente compreendida pela flagrante contradição entre a opinião "oficial" e a opinião real dos portugueses. Os portugueses, segundo os Eurobarómetros, os inquéritos de opinião institucionais da UE, são os mais europeístas dos europeístas. Consultados sobre matérias como a necessidade de uma Constituição europeia, ou sobre a existência de um presidente europeu, respondem massivamente que sim. Querem uma Constituição europeia com um zelo que nem os partidários dos Estados Unidos da Europa são capazes de mostrar em público. Ao mesmo tempo, basta um incidente com um petroleiro que ameaçava as costas de Portugal e de Espanha, para surgir uma nova vaga de nacionalismo exacerbado, e uma satisfação interior pelo castigo da pérfida Espanha, que viu justamente punida a sua costa galega pelo barco que queria empurrar para Portugal. Parece que do lado espanhol, embora sem a mesma exaltação pública, também o europeísta governo de Aznar não se importaria muito se o barco viesse dar às nossas costas em vez das deles. Na França, idem.
Tenho para mim que o segundo sentimento - um nacionalismo velho, antigo e rudimentar, ou um indiferentismo egoísta - explica mais o estado de
espírito português (ou espanhol, ou francês) do que o entusiasmo pela "nação Europa" patente no Eurobarómetro. O que o Eurobarómetro, como aliás outros inquéritos cujas perguntas evitam cuidadosamente confrontar os inquiridos com as consequências das suas posições, retratam é o desinteresse, indiferença, complacência perante as boas palavras e pelas boas intenções e ... ignorância.
Como é que podia ser de outro modo, quando Portugal é o recordista da ausência de debate sobre a Europa, aliás uma situação não muito diferente dos seus congéneres da UE. A Europa só nos preocupa quando ela se traduz em fundos comunitários ou quando nos defrontamos com qualquer agravo, normalmente também associado aos dinheiros que achamos nos são devidos. Então aí, há um clamor brutal, e rápido, que passa a silêncio logo a seguir, que isto de constância ou preserverança das questões não é hoje "mediático", logo não existe.
Há por outro lado um clamor diferente, muito pequeno e concentrado, numa pequeníssima elite, que essa sim queixa-se da indiferença e do silêncio geral sobre a Europa, mas quando se lhes propõe que a melhor maneira de garantir o interesse dos cidadãos pela Europa, é dar-lhe mais poder para dizer que sim ou que não, volta logo a preferir as decisões discretas in camera. Vê-se o incómodo do referendo Irlandês, ou, no passado, com o referendo dinamarquês, e a estranha teoria que nesses casos terá que haver tantas consultas quanto as necessárias até que se chegue ao único resultado aceitável - o sim.
Tenho para mim que só haverá um verdadeiro debate europeu quando nos dividirmos sobre a Europa e formos a votos, e não enquanto andarmos a rezar por um "consenso nacional" e a mandar para as franjas do sistema político, os que discordam em parte ou no todo dos caminhos da UE. É por isso, que, por mais ofensivo que possa parecer aos nossos europeístas, há mais debate público, - logo haverá mais legitimidade democrática na decisões -, no Reino Unido do que em qualquer outro país da UE. É verdade que o comportamento anti-europeu de uma parte da opinião pública, da comunicação social, e dos políticos ingleses, roça às vezes a pura imbecilidade - no que aliás são seguidos acriticamente pela comunicação social dos países euro-entusiastas, como quando da história parva mas "engraçada", do Viagra gratuito para os deputados. Mas, seja como for, há discussão e algumas perplexidades inglesas traduzidas em perguntas simples e directas, exigiriam respostas igualmente francas. O que se passa é que o incómodo dessas perguntas mostra a má fé de algumas das propostas em curso na UE e que, tenho receio, Portugal venha a assinar de cruz como já fez em relação ao Tratado de Nice.
Por exemplo: qual a necessidade sentida pelos europeus, que movimento generalizado da opinião pública, que disfunção maior sentida pelos governos, exige que haja uma Constitução Europeia ? Ainda estou por perceber, a não ser que, com essa Constituição feita discretamente, se queira dar um pulo a mais para uma Europa federal que não ousa apresentar-se como tal. O melhor exemplo da má fé neste processo está numa declaração do Ministro britânico Jack Straw. Straw sabe que será muito difícil a um país que se vangloria de não ter sequer uma constituição escrita, mas um conjunto de documentos como a Magna Carta e de direitos e tradições antigas e consolidadas, aceite uma constituição europeia com valor vinculativo. Sabendo isto, Straw explica candidamente numa intervenção pública que não haveria grande problema para os ingleses aprovarem uma Constituição Europeia, ou um tratado constitucional, porque ele "teria o valor das regras de um clube de golfe", ou seja, teria o mesmo valor da Carta dos Direitos fundamentais que não é legislativamente vinculativa para os estados, mas um documento consultivo.
Tudo isto é típico do actual estado de coisas da UE. Somam-se documentos sobre documentos, com as melhores intenções do mundo, mas depois permanecem com o mesmo estatuto de um "paper" numa conferência académica. No entanto, e isso é mais importante, este processo é feito de forma muito pouco transparente e com grande má fé, porque, o que Straw não explicou, nem quer explicar, é que existe uma agenda escondida em todo este processo. Essa agenda escondida tem dois grandes motores. Um, é de caracter táctico e é a desconfiança face ao alargamento e a vontade de manter o poder no núcleo duro das grandes nações europeias - Reino Unido, França, Alemanha, Espanha. Outro é de caracter estratégico e tem a ver com um impulso de engenharia política, oriundo de uma elite europeia transnacional, muito ligada às burocracias europeias, para fazerem da Europa um país, limitando progressivamente às soberanias nacionais no plano político. O impulso táctico ainda se compreende pela auto-consciência de que o alargamento está a ser feito ás pressas e com o adiamento de todos os problemas. O segundo motivo, é mais perigoso, não porque seja realizável, mas porque acabará com a UE como ela é, nas suas virtualidades e vantagens para todos os países europeus. Como se passa com quase todas as experiências de engenharia politica vanguardista, estragará o que está, sem construir nada de novo.
É por isso que as perguntas incómodas se fossem feitas como deveriam ser já não permitiriam o euro-entusiasmo dos Eurobarómetros. Por exemplo, se houver um Presidente da Europa ele terá efectivos poderes ou não? Se os não tiver entramos no domínio das "regras do clube de golfe", se os tiver de onde vem a sua legitimidade? Se vier de eleição directa dos europeus, como é que se impedirá que funcione a demografia - ou o sentimento nacional... - e que esse Presidente seja um alemão...Se esse Presidente for alemão, com poderes europeus, vai decidir por cima da Assembleia Nacional francesa, da Rainha da Inglaterra, nos seus poderes constitucionais que ainda os tem, ou sobre o Parlamento dinamarquês? Não estou lá muito a ver, como qualquer pessoa sensata, materializar-se este cenário de ficção cientifica.
Não estamos ainda aí, mas é para aí que aponta a mera existência de uma Constituição europeia. Mil e uma destas perguntas podem ser feitas, com a mesma incomodidade. Por isso, talvez valesse mais a pena centrar os esforços no que já temos, vindo dos Tratados de Maastricht e Amesterdão, e começar a mostrar vontade política de resolver os problemas actuais, reais e prementes: a Política Agrícola Comum, o financiamento da União, a Força da Reacção Rápida, a questão da Turquia, etc, etc. Tudo o resto é um manto diafano de ilusão, ou de fuga em frente.