MEMÓRIAS DA "LEITURA" (Dezembro 1994)
Há uma semana, a livraria "Leitura" do Porto realizou aquilo que era um seu velho sonho: consegiu "explodir" o seu espaço na esquina da Rua de Ceuta para o lado e libertar-se da impossibilidade física de crescer que a "aprisionava" há muitos anos. Este fait-divers da vida livreira portuense pode parecer irrelevante para os lisboetas, que são a maioria dos leitores do Diário de Notícias, mas a "Leitura" é um caso sui generis da história cultural portuguesa, e uma parte da minha biografia. E a esta não se pode escapar.
Se as livrarias tivessem um olhar, ou uma "alma", certamente que o olho da "Leitura" me acompanha há demasiado tempo com severidade, complacência e ironia - como é suposto ser o "olhar" do "espírito do tempo", o mesmo que espreita de dentro do triângulo, ou no espaço em branco dessas letras simples, escritas num cursivo escolar, como aquelas que são as do velho "reclame" da Rua de Ceuta. E esse "olhar" viu-me demasiadas vezes para eu não sentir o seu peso, uma leve sensação de que se está a ser avaliado. Isto era antes da televisão popular, era outro mundo.
Escrevi em 1968, annus mirabilis, para a "Divulgação", o antigo nome da "Leitura", o meu primeiro texto para um catálogo de exposição de pintura, fazendo uma improvável relação entre Rilke e a Commedia, entre Arlequim e as rochas de Duíno. Tudo a pretexto de uma exposição da Rosa, cuja fotografia belíssima, com um ar perfeitamente grego, aparecia ao lado do texto, tudo decorado com um cinzento suave que fazia parte das cores de que as pessoas gostavam antes da vinda do Arquitecto Taveira. Sépia, mauve, um leve ocre... Depois fiz mais catálogos para exposições do Batarda e do Mouga, escrevi sobre o Ângelo e o Zé Rodrigues, mas este foi o primeiro e o primeiro conta sempre.
Mas o mundo dos amáveis ocres estava a acabar depressa de mais. Aliás não estou bem certo que alguma vez tivesse existido, porque talvez na época não olhássemos para essas cores com o ar vagamente blasé e intelectualmente decorativo que temos hoje. Caminhavamos para a política pura, dura e radical que acabava por ser o único caminho ético possível. Eis-nos pois de 1968 a 1970 em ritmo acelerado para nos tornarmos "guardas vermelhos" e eis que a "Leitura" (então "Divulgação") resolveu contribuir poderosamente para a "demarcação entre nós e o inimigo": traz cá, em plena "liberalização" marcelista, Yevgeny Yevtushenko.
Hoje deve ser bizarro imaginar a excitação da vinda da terra das estepes, do escritor russo, digo "soviético", mas foi na época um petit scandale. Primeiro, porque a vinda de Yevtushenko era claramente uma concessão pensada do regime marcelista para mostrar o "degelo" do salazarismo; segundo, porque o escritor era um crítico do estalinismo e um símbolo da literatura soviética nos limites da crítica "consentida" ao regime; terceiro e mais fundamental, porque exactamente pelo que disse atrás, Yevtushenko era o representante máximo da "traição" da URSS, o "revisionismo" encarnado. Yevtushenko ajudou à festa - chegou a Lisboa, passeou-se com o establishement literário do PCP e dos seus compagnons de route e depois anunciou ao Diário de Lisboa que queria visitar Fátima para ver as massas rezar. A crise passou de petit scandale para grande escândalo e até o PCP, que devia conhecer alguma coisa das dificuldades de erradicar da alma russa o pathos religioso, ficou incomodado.
Como o maoismo estava então ainda em grande parte por organizar e era mais uma revolta cultural do que uma ortodoxia com regras, um grupo de pessoas, no qual me incluía, resolveu ir fazer umas "provocações" ao "revisionista", ou seja, armar uma arruaça ao Yevtushenko e aos seus mentores lisboetas. O local da cena foi a "Divulgação" de Lisboa, irmã da do Porto, e a materialização das provocações foi levar a uma sessão de autógrafos alguns livros pouco inconvenientes para o "poeta" assinar: a Bíblia, as Citações do Presidente Mao Tsé Tung, - das Editions du Seuil e não as chinesas que eram perigosas de mais -, e uns livros claramente "reaccionários". O resultado foi o previsível: Yevtushenko espantado começou a perceber que alguma coisa não estava certa e recusou os autógrafos, houve algum burburinho e eu, mais o Alexandre de Oliveira, penso que o José Bernardo (em vésperas de se tornar o "oportunista Tiago") e uns surrealistas lisboetas, fomos postos na rua pelo Carlos Porto.
Depois o tempo foi passando, deu-se o 25 de Abril e quando voltei ao mundo dos vivos voltei também à "Leitura", dia após dia, depois cada vez mais espaçadamente, à medida que outra política, agora mais impura embora igualmente dura, me ia fazendo trair as ruas do Porto, a Foz, os alfarrabistas do Largo Montpellier, as encostas da Corticeira, o jardim de S. Lázaro...
Se as livrarias tivessem um olhar, ou uma "alma", certamente que o olho da "Leitura" me acompanha há demasiado tempo com severidade, complacência e ironia - como é suposto ser o "olhar" do "espírito do tempo", o mesmo que espreita de dentro do triângulo, ou no espaço em branco dessas letras simples, escritas num cursivo escolar, como aquelas que são as do velho "reclame" da Rua de Ceuta. E esse "olhar" viu-me demasiadas vezes para eu não sentir o seu peso, uma leve sensação de que se está a ser avaliado. Isto era antes da televisão popular, era outro mundo.
Escrevi em 1968, annus mirabilis, para a "Divulgação", o antigo nome da "Leitura", o meu primeiro texto para um catálogo de exposição de pintura, fazendo uma improvável relação entre Rilke e a Commedia, entre Arlequim e as rochas de Duíno. Tudo a pretexto de uma exposição da Rosa, cuja fotografia belíssima, com um ar perfeitamente grego, aparecia ao lado do texto, tudo decorado com um cinzento suave que fazia parte das cores de que as pessoas gostavam antes da vinda do Arquitecto Taveira. Sépia, mauve, um leve ocre... Depois fiz mais catálogos para exposições do Batarda e do Mouga, escrevi sobre o Ângelo e o Zé Rodrigues, mas este foi o primeiro e o primeiro conta sempre.
Mas o mundo dos amáveis ocres estava a acabar depressa de mais. Aliás não estou bem certo que alguma vez tivesse existido, porque talvez na época não olhássemos para essas cores com o ar vagamente blasé e intelectualmente decorativo que temos hoje. Caminhavamos para a política pura, dura e radical que acabava por ser o único caminho ético possível. Eis-nos pois de 1968 a 1970 em ritmo acelerado para nos tornarmos "guardas vermelhos" e eis que a "Leitura" (então "Divulgação") resolveu contribuir poderosamente para a "demarcação entre nós e o inimigo": traz cá, em plena "liberalização" marcelista, Yevgeny Yevtushenko.
Hoje deve ser bizarro imaginar a excitação da vinda da terra das estepes, do escritor russo, digo "soviético", mas foi na época um petit scandale. Primeiro, porque a vinda de Yevtushenko era claramente uma concessão pensada do regime marcelista para mostrar o "degelo" do salazarismo; segundo, porque o escritor era um crítico do estalinismo e um símbolo da literatura soviética nos limites da crítica "consentida" ao regime; terceiro e mais fundamental, porque exactamente pelo que disse atrás, Yevtushenko era o representante máximo da "traição" da URSS, o "revisionismo" encarnado. Yevtushenko ajudou à festa - chegou a Lisboa, passeou-se com o establishement literário do PCP e dos seus compagnons de route e depois anunciou ao Diário de Lisboa que queria visitar Fátima para ver as massas rezar. A crise passou de petit scandale para grande escândalo e até o PCP, que devia conhecer alguma coisa das dificuldades de erradicar da alma russa o pathos religioso, ficou incomodado.
Como o maoismo estava então ainda em grande parte por organizar e era mais uma revolta cultural do que uma ortodoxia com regras, um grupo de pessoas, no qual me incluía, resolveu ir fazer umas "provocações" ao "revisionista", ou seja, armar uma arruaça ao Yevtushenko e aos seus mentores lisboetas. O local da cena foi a "Divulgação" de Lisboa, irmã da do Porto, e a materialização das provocações foi levar a uma sessão de autógrafos alguns livros pouco inconvenientes para o "poeta" assinar: a Bíblia, as Citações do Presidente Mao Tsé Tung, - das Editions du Seuil e não as chinesas que eram perigosas de mais -, e uns livros claramente "reaccionários". O resultado foi o previsível: Yevtushenko espantado começou a perceber que alguma coisa não estava certa e recusou os autógrafos, houve algum burburinho e eu, mais o Alexandre de Oliveira, penso que o José Bernardo (em vésperas de se tornar o "oportunista Tiago") e uns surrealistas lisboetas, fomos postos na rua pelo Carlos Porto.
Depois o tempo foi passando, deu-se o 25 de Abril e quando voltei ao mundo dos vivos voltei também à "Leitura", dia após dia, depois cada vez mais espaçadamente, à medida que outra política, agora mais impura embora igualmente dura, me ia fazendo trair as ruas do Porto, a Foz, os alfarrabistas do Largo Montpellier, as encostas da Corticeira, o jardim de S. Lázaro...
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