TRAIDORA TRADUÇÃO - A GRANDE PERTURBAÇÃO: A LUXÚRIA (Julho 2004)
Simon Blackburn, Lust, Oxford University Press, 2004
Começa porque nenhuma tradução do título é satisfatória: “Lust”. Um dos pecados mortais, a luxúria, mas é mais do que isso. Pulsão. Desejo. Excesso. Lascívia. Concupiscência. “Convoitise”, em francês, como aparece num desenho de Toulouse-Lautrec. “Deboche”, para o imediatamente pejorativo. As palavras de língua para língua tem tamanhos diferentes, nelas cabem mais ou menos coisas. “Lust” não é só Luxúria, e Simon Blackburn, professor de filosofia em Cambridge, diz-nos isso neste precioso pequeno livro. Bem feito, bem pensado, bem escrito, boa capa.
As palavras são muitas e cumulativas. Luxúria diz uma coisa, desejo outra, concupiscência outra, cada uma trazendo atrás de si uma história de séculos que passou pelos filósofos gregos, Cínicos e Estóicos com destaque, Platão e Aristóteles também, por S. Agostinho e S. Jerónimo, Hume, Kant, Hobbes, Darwin e os “genes egoístas”, pela literatura, Shakespeare e Dorothy Parker, e pela pintura. Blackburn centra-se naturalmente na filosofia, nas ideias, mais do que na literatura e nas artes, mas nalguns casos é da criação estética que vêm os melhores exemplos.
Este livro é uma defesa filosófica da Luxúria face aos seus abundantes detractores, assentando numa tese que o autor vai buscar a Hobbes: a “unidade” que permite que um prazer dos sentidos, – Hobbes fala directamente de “luxúria” não do amor, ou da satisfação sexual –, seja ao mesmo tempo um “prazer da mente”, que consiste na “imaginação do poder que [cada um] têm em agradar”. Blackburn sintetiza assim aquilo a que chama a “unidade hobbesiana”:
“”Eu desejo-te e desejo o teu desejo por mim. Tenho esperança que desejes o meu desejo de ter o teu desejo, e, se as coisas correrem bem, terás. Não há aqui intenções cruzadas, agendas escondidas, erros ou enganos. A luxúria é como fazer música juntos, uma sinfonia comum de prazer e resposta. Existe uma pura reciprocidade.”
Resposta de filosofo, amante da ordem e da perfeição que o “loop” ou o circulo (vicioso neste caso em termos carnais) dá entre o desejante e o desejado. Simples, mas pouco satisfatório em particular se confrontamos a tese hobbesiana com a história tumultuária da Lúxuria que o próprio livro descreve. Esta “unidade” acaba por ser apenas o amor carnal correspondido, uma versão, convenhamos, benévola e optimista dessa grande perturbação que atravessa a história do Ocidente.
Que a resposta hobbesiana de Blackburn é muito “low key” é patente pela leitura do seu livro. É evidente que na nossa história cultural, de atitudes e mentalidades, a pulsão sexual, a fonte da luxúria, é quase unanimemente considerada como um excesso, uma perturbação, uma perversão dos sentidos, uma marca do pecado original, da maldade e imperfeição humana. Homens como S. Tomás de Aquino, apesar de tudo um moderado se o comparamos a S. Agostinho, descrevia o coito marital com expressões tão amáveis (ficam em latim que tem mais força) como immunditia , macula, turpitudo, e ignominia. O objectivo era procriar e nada mais e mesmo isso levantava dúvidas aos padres do deserto e aos defensores absolutos da virgindade e da castidade, na Igreja primitiva.
De Platão a Freud, passando pelos doutores da Igreja, a luxúria se não é fonte de todos os males, é quase. Não é a história mítica de Aristóteles cavalgado (stricto senso) por Filis, pelo jardim adiante, a melhor ilustração da fragilidade humana face à sedução da carne, uma das histórias fundamentais dessa perda de razão que as nossas hormonas, ou genes, ou seja lá o que for, vindo da parte “baixa”, nos fazem ter? Aristóteles dizia a Alexandre que não devia perder tempo com os prazeres que lhe dava Filis. Esta, vingando-se, seduziu o filósofo, obrigando-o a figuras pouco próprias diante dos olhos do discípulo. Duvido que a “unidade hobbesiana” evitasse que Aristóteles faça de burro.
Está tudo aqui e mesmo Blackburn suspeita que, no fundo, volta tudo aqui. Numa humorada introdução, ele explica porque razão não é a melhor escolha para escrever sobre a luxúria, nada mais, nada menos do que por cinco razões: a sua idade, mais propícia a contemplar do que a agir; o seu conforto intimo com o seu género (masculino), o que o desqualifica junto das feministas; ser inglês e ter por isso um “stiff upper lip”, pouco propício para os excessos sobre o qual escreve; o ter que dirigir-se a uma audiência americana , cuja atitude face ao sexo é, para não dizer mais, bizarra; e … ser filosofo, ou seja, ter a mesma profissão de Aristóteles a quem, como se viu, Filis montou (insisto, stricto senso) com facilidade.
Esta introdução é um bom exemplo do modo vivo e irónico como todo o livro é escrito, uma das qualidades de muitos académicos ingleses que falam para um público mais vasto, ao mesmo tempo com rigor e sem se tomarem demasiado a sério. A traduzir absolutamente.
Começa porque nenhuma tradução do título é satisfatória: “Lust”. Um dos pecados mortais, a luxúria, mas é mais do que isso. Pulsão. Desejo. Excesso. Lascívia. Concupiscência. “Convoitise”, em francês, como aparece num desenho de Toulouse-Lautrec. “Deboche”, para o imediatamente pejorativo. As palavras de língua para língua tem tamanhos diferentes, nelas cabem mais ou menos coisas. “Lust” não é só Luxúria, e Simon Blackburn, professor de filosofia em Cambridge, diz-nos isso neste precioso pequeno livro. Bem feito, bem pensado, bem escrito, boa capa.
As palavras são muitas e cumulativas. Luxúria diz uma coisa, desejo outra, concupiscência outra, cada uma trazendo atrás de si uma história de séculos que passou pelos filósofos gregos, Cínicos e Estóicos com destaque, Platão e Aristóteles também, por S. Agostinho e S. Jerónimo, Hume, Kant, Hobbes, Darwin e os “genes egoístas”, pela literatura, Shakespeare e Dorothy Parker, e pela pintura. Blackburn centra-se naturalmente na filosofia, nas ideias, mais do que na literatura e nas artes, mas nalguns casos é da criação estética que vêm os melhores exemplos.
Este livro é uma defesa filosófica da Luxúria face aos seus abundantes detractores, assentando numa tese que o autor vai buscar a Hobbes: a “unidade” que permite que um prazer dos sentidos, – Hobbes fala directamente de “luxúria” não do amor, ou da satisfação sexual –, seja ao mesmo tempo um “prazer da mente”, que consiste na “imaginação do poder que [cada um] têm em agradar”. Blackburn sintetiza assim aquilo a que chama a “unidade hobbesiana”:
“”Eu desejo-te e desejo o teu desejo por mim. Tenho esperança que desejes o meu desejo de ter o teu desejo, e, se as coisas correrem bem, terás. Não há aqui intenções cruzadas, agendas escondidas, erros ou enganos. A luxúria é como fazer música juntos, uma sinfonia comum de prazer e resposta. Existe uma pura reciprocidade.”
Resposta de filosofo, amante da ordem e da perfeição que o “loop” ou o circulo (vicioso neste caso em termos carnais) dá entre o desejante e o desejado. Simples, mas pouco satisfatório em particular se confrontamos a tese hobbesiana com a história tumultuária da Lúxuria que o próprio livro descreve. Esta “unidade” acaba por ser apenas o amor carnal correspondido, uma versão, convenhamos, benévola e optimista dessa grande perturbação que atravessa a história do Ocidente.
Que a resposta hobbesiana de Blackburn é muito “low key” é patente pela leitura do seu livro. É evidente que na nossa história cultural, de atitudes e mentalidades, a pulsão sexual, a fonte da luxúria, é quase unanimemente considerada como um excesso, uma perturbação, uma perversão dos sentidos, uma marca do pecado original, da maldade e imperfeição humana. Homens como S. Tomás de Aquino, apesar de tudo um moderado se o comparamos a S. Agostinho, descrevia o coito marital com expressões tão amáveis (ficam em latim que tem mais força) como immunditia , macula, turpitudo, e ignominia. O objectivo era procriar e nada mais e mesmo isso levantava dúvidas aos padres do deserto e aos defensores absolutos da virgindade e da castidade, na Igreja primitiva.
De Platão a Freud, passando pelos doutores da Igreja, a luxúria se não é fonte de todos os males, é quase. Não é a história mítica de Aristóteles cavalgado (stricto senso) por Filis, pelo jardim adiante, a melhor ilustração da fragilidade humana face à sedução da carne, uma das histórias fundamentais dessa perda de razão que as nossas hormonas, ou genes, ou seja lá o que for, vindo da parte “baixa”, nos fazem ter? Aristóteles dizia a Alexandre que não devia perder tempo com os prazeres que lhe dava Filis. Esta, vingando-se, seduziu o filósofo, obrigando-o a figuras pouco próprias diante dos olhos do discípulo. Duvido que a “unidade hobbesiana” evitasse que Aristóteles faça de burro.
Está tudo aqui e mesmo Blackburn suspeita que, no fundo, volta tudo aqui. Numa humorada introdução, ele explica porque razão não é a melhor escolha para escrever sobre a luxúria, nada mais, nada menos do que por cinco razões: a sua idade, mais propícia a contemplar do que a agir; o seu conforto intimo com o seu género (masculino), o que o desqualifica junto das feministas; ser inglês e ter por isso um “stiff upper lip”, pouco propício para os excessos sobre o qual escreve; o ter que dirigir-se a uma audiência americana , cuja atitude face ao sexo é, para não dizer mais, bizarra; e … ser filosofo, ou seja, ter a mesma profissão de Aristóteles a quem, como se viu, Filis montou (insisto, stricto senso) com facilidade.
Esta introdução é um bom exemplo do modo vivo e irónico como todo o livro é escrito, uma das qualidades de muitos académicos ingleses que falam para um público mais vasto, ao mesmo tempo com rigor e sem se tomarem demasiado a sério. A traduzir absolutamente.
5 Comments:
O EXCESSO designado pela palavra LUST (aliás ela própria semanticamente «excessiva»), acoplado embora a um pecado mortal particular, define sobretudo a forma geral de todos eles - os 7 de certo modo virtudes (aristotelicamente, disposições para a justa medida) convertidas pelo excesso em vício. Talvez os PECADOS (dos) MORTAIS (rigorosamente FALTAS QUE SÃO EXCESSOS) correspondam afinal a virtudes divinas...
E todavia até os deuses gregos, joguetes como nós da HYBRIS, «pecavam por excesso»! Mas esses, claro, eram humanos, demasiado humanos...
A luxúria, o culto do prazer e do desejo pela fusão da mente com os sentidos, está para o sexo como a culinária requintada está para a alimentação.
Sabem-no e cultivam-no os orientais, como se mostra no livro de cozinha "Kama Sutra".
Porque, obviamente, não sofreram a influência da Bíblia e suas "implementações" sociais: judaísmo, cristianismo, islamismo, e ainda que o não assumindo, o comunismo.
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