14.7.04

UM PARTIDO DE SENHORITOS (Assembleia da República, Outubro 1994)



(Fragmentos)

Estamos hoje a debater a moção de censura apresentada pelo CDS/PP que deu, com essa apresentação, uma tardia mas justa razão política ao PSD. De facto, o CDS/PP ao apresentar a moção de censura deu razão aos argumentos políticos do PSD a saber: que é a Assembleia da República a sede para o debate e o confronto político plural entre os partidos, e que o tipo de críticas globais e sistemáticas que o CDS/PP fazia ao Governo e ao PSD implicava a consequência de uma moção de censura instrumento potencial para provocar a queda do Governo.

Verdade seja dita que só com relutância o fez por se ter colocado no seu flirt com o Presidente da República num beco sem saída, a si e ao Presidente da República, depois do PSD o ter desafiado a trazer o debate político para a sede parlamentar o que punha em causa a tese que o CDS queria alimentar de que a Assembleia estava bloqueada.

As bravatas recentes do Dr. Manuel Monteiro, para quem todo o mundo a começar pelo Primeiro Ministro e a acabar pela Assembleia, estão rojados a seus pés, quase a pedir desculpa por existirem, destinam se exactamente a esconder isto mesmo: o CDS/PP apresentou a moção de censura porque não tinha outra alternativa e porque não podia continuar mais o perigoso conúbio que mantinha com a actuação oposicionista do Presidente da República, sem pôr em causa a imagem de ambos.

As peripécias que rodearam a apresentação desta moção e o conteúdo da mesma são por tudo isto uma oportunidade ideal para se compreender o que faz e o que quer o CDS/PP, ou melhor, a parte do nome da coisa CDS/PP que é acrescento da coisa o PP e que nada quer ou tem a ver com a coisa em si o CDS. Aliás, muito significativamente, nos papéis recentes do CDS/PP, a parte do nome que é CDS fica se apenas pelas iniciais da sigla, enquanto que Partido Popular aparece sempre por extenso. O PP tem vergonha do CDS.

De facto, chamar a uma parte do CDS "Partido Popular" é um daqueles usos dos adjectivos de que falava G. Orwell para designar exactamente o contrário daquilo que se é, (como a República Democrática Alemã, que não era nem "república", nem "democrática", e muito menos "alemã").

Do mesmo modo, o "popular" é bem pouco popular, a meio caminho entre um arremedo de uma cópia tardia do nome do PPD e a vontade de se rever naquilo que na Espanha de Garcia Lorca se chamaria um "partido de señoritos". É um partido "popular" entre aspas , a que falta o povo e, a que falta acima de tudo, a expressão dos interesses, aspirações e necessidades, do povo, o mesmo povo que a gente suspeita que, em privado, no PP se considera a "canalha", a velha "canalha" assustadora da Revolução Francesa com que este tipo de direita radical e ultramontana sempre conviveu muito mal.

O CDS é hoje um partido sem história, sem memória, sem referências e gaba-se disso. Os seus dirigentes pensam que há nisto mérito porque lhes dá uma liberdade de acção que é conveniente à ligeireza das suas posições mas tem o péssimo resultado de pensarem que estão livres para dizerem tudo o que lhes vem à cabeça e para não aceitarem responsabilidades por nada. Têm o complexo de Adão: pensam que o mundo começou com eles e, embora não o digam, pensam também que, como se diz no Apocalipse, quando no lugar de Armagedão, a taça cheia da ira de Deus se quebrar e surgir uma nova maioria do PSD, o mundo também acabará em simultâneo com eles. Encolherão os ombros e olharão para a "canalha" com desdém porque acham que esta não os merece e desaparecerão para o seu mundo de interesses privados a que chamam abusivamente "sociedade civil".

De facto, uma das coisas que caracteriza a actual direcção do PP é um consistente ataque e desvalorização da Assembleia da República, usando todos os clichés clássicos do anti parlamentarismo, muito em voga na velha direita da "ordem nova" dos anos 20 e na "nova direita" dos anos 70. E esse ataque é feito porque é esta Assembleia, nas suas qualidades e defeitos, que melhor representa a soberania popular: precária, desigual, pouco elitista para o "fino" gosto do PP, contraditória e plural, como é feito o tecido do país, o Portugal dos portugueses.

No meio disto tudo, a moção de censura parece um breve hiato numa lamentável prática anti parlamentar em que o PP se tem especializado. Parece mas não é.

Após a sua apresentação, logo a Assembleia é atacada pela sistemática menorizarão que é feita do próprio Grupo Parlamentar do CDS. Tratados eles também de "sanguessugas" na acusação genérica do Dr. Manuel Monteiro, atacados também por estarem em "férias" e não trabalharem, sujeitos a todas as invectivas contra aquilo que se chama a "classe política" por parte desse típico membro da "classe política" que é o Dr. Monteiro.

À margem de qualquer papel significativo no "novo" PP, os deputados do CDS, que ontem nas palavras do seu representante na sessão solene saudaram esta Assembleia, concerteza para se demarcarem dos excessos anti parlamentares da actual direcção do partido, são rebaixados na sua condição de parlamentares e de homens políticos, e assistiram primeiro à subalternização do parlamento através do desnecessário apelo intervencionista ao Presidente e depois: aceitando que fosse fora do Parlamento e à revelia dos seus deputados, que fossem conduzidos todos os actos relevantes de um processo que é intrinsecamente parlamentar e "pertença" deles mesmos deputados do CDS.

(…)

Começa por ser uma política disfarçada, escondida, ocultada nos seus fins e objectivos. Do mesmo modo que o PCP não pode nomear a sua política verdadeira, que consiste na tomada revolucionária do poder político , também o CDS/PP não o pode fazer porque detrás de todas aquelas grandes palavras está uma realidade comezinha e pouco brilhante: o CDS/PP quer que o PSD perca a maioria de governo que hoje tem, para, na convulsão dessa perda, afastar da vida política o Prof. Cavaco Silva e ter a oportunidade de impor uma aliança com um PSD enfraquecido que se tornaria refém de um pequeníssimo CDS/PP. Quer ver acabar o PSD maioritário, quer ver afastado Cavaco Silva que elegeu como inimigo principal, quer um PSD para aliado porque sabe que precisa dos seus votos que o CDS/PP sabe nunca ir ter , mas quer subordinado a uma frágil coligação em que o partido mais pequeno mande. O PSD traria os votos, o CDS/PP exerceria o poder.

Todas as grandes palavras do CDS/PP servem só para esconder isto e é contra isto que o PSD tem que combater, porque o projecto político do PSD não pode ser hipotecado ao de um pequeno partido no extremo da direita e a um grupo de dirigentes políticos exaltados, que faz política subordinada aos editoriais do director de um jornal, que não conhece o país e que está obcecado por uma vontade de poder sem grandeza nem dimensão.

O que dissemos atrás revela uma das características mais negativas da actual política do CDS/PP e que consiste precisamente em esconder e disfarçar as suas verdadeiras posições políticas por detrás de arrogantes proclamações morais. Este teatro da indignação moral a que o Dr. Monteiro dá a voz e o corpo todos os dias, tem o duplo efeito de degradar a acção e o debate político, e de abastardar o papel dos valores quer na acção política colectiva, quer no ethos individual, onde estes têm outro lugar e outra fala.

Esconder a política por detrás de proclamações morais é sempre uma má política e uma péssima ética. Ao conduzir uma política com uma linguagem feita de proclamações morais, o CDS/PP impede que as suas posições políticas sejam debatidas no mesmo plano de todas as outras, instituindo assim uma dicotomia entre "nós", os puros, os da "fortaleza das convicções" como, sem o senso de ridículo, se auto classifica o Dr. Monteiro e os "outros" os incompetentes, os inaptos, os corruptos, os traidores, os vende pátrias, etc, etc. Esta é uma linguagem que, na simplicidade do seu preto e branco, é estruturalmente repressiva.

Este tipo de linguagem pretensamente moral assume assim um carácter totalitário, próximo da "língua de madeira" que os comunistas falam, tornando absolutas e inquestionáveis posições que são de um partido, que como as de todo e qualquer partido, são parciais e representam escolhas, e opções tão legítimas como quaisquer outras, mas de nenhum modo eticamente superiores, como quase sempre se apresentam. Esconder que este é o carácter da linguagem política em democracia e substituí la por invectivas morais sobre os bons e os maus é destruir o espaço do debate público, a igualdade da escolha que se coloca ao último julgador: o povo e o primado das leis.

A enorme arrogância do CDS/PP, patente nas mais pequenas declarações, patente nos tiques e nos truques da linguagem, na falsa e estudada indignação dos seus dirigentes, é pois um mecanismo de ocultação, no fundo uma pequena táctica politiqueira ao serviço de posições tão precárias, circunstanciais, dependentes de interesses e idiossincrasias, egoísmos e ideais como quaisquer outras.

(…)

A arrogância do CDS/PP não tem apenas como alvo o PSD e o Governo, mas tudo o que é actividade política e todos os partidos. Na apresentação daquilo e que chamou a "verdadeira" moção de censura, o Dr. Monteiro dirigiu se aos partidos de oposição em perfeito estilo intimidatório quer aos da "oposição mole" como ele chama ao PS quer aos "agitadores da rua" como ele chama ao PCP. Disse lhes que o CDS/PP já tivera com a moção de censura, "significativas vitórias", entre as quais ter obrigado os partidos da oposição a votarem a moção de censura a reboque do CDS. E ameaçou os: "parece que já se resignaram (o PS e o PCP) a votarem a moção de censura. O país já sabe que nem o PS nem o PCP são alternativa: mas só faltava que votassem ao lado do governo" (...) "votando a favor da moção de censura, reconhecem que o CDS/PP lidera a oposição". Reparem bem no tom das palavras: "só faltava que..."

Tenho a convicção de que muito do que nesta intervenção se afirmou corresponde àquilo que muitos deputados da oposição gostariam de ter dito ao CDS/PP.

Esperamos pois que os partidos da oposição ainda tenham algum sentido de dignidade e sejam capazes de manter a autonomia da sua acção política sob pena de se tornarem cúmplices do Dr. Monteiro. Espero que não aceitem ser assim tratados, porque da nossa parte não o aceitamos. Connosco não falam assim.

Por nossa parte recusamos a iniciativa do CDS. Somos um partido com experiência de Estado e de governo, com experiência de acção política, com um programa claro e objectivos definidos. Acima de tudo somos um partido a quem o povo português deu a confiança para governar e a quem nos apresentamos em 1995 para ser avaliados, não nos confundimos com um partido que usa e abusa de um tom de exaltação tribunícia, de arrogância e intolerância, e que transporta consigo a marca inconfundível das margens da vida política. Deixemo-lo continuar a lá estar.



2 Comments:

Blogger Unknown said...

Uma excelente ideia este blogue, JPP, onde podemos ler as pérolas do passado!
Só hoje cá entrei, infelizment.
Os meus púb(l)icos parabéns pela iniciativa.

10:32 da tarde  
Blogger R2D2 said...

Estava à espera que surgisse um abrupto secundário após o "tenho que retomar os textos que escrevi há uns anos" dito na Quadratura. Apesar de nem sempre concordar com o que diz, felicitei-me por afinal não ser, aparentemente, o único a achar que as palavras proferidas pelo Alberto João eram um verdadeiro atentado à democracia ou que quer que seja um regime democrático.
Já agora: que é feito do artigo de hoje, 15/07/2004, no Público? Férias?

9:46 da tarde  

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