24.7.04

VIVER NA TWILIGHT ZONE (Outubro 2001)

A minha mais antiga recordação da televisão foi a das imagens do foguetão que ia lançar o primeiro satélite dos EUA, e que subiu uns metros, para depois descair esses mesmos metros e mergulhar numa enorme explosão. Já era televisão do melhor que havia - sangue (combustível neste caso), suor e lágrimas. Lembro-me de ver estas imagens numa cave de uma loja de electrodomésticos, onde os amigos e clientes do dono vinham à noite sentar-se numa sala escura diante do pequeno ecrã a preto e branco olhando para essa raríssima novidade - uma televisão. Sem ninguém se aperceber estava a começar uma nova era da sociabilidade.

Mais tarde lembro-me de ver a primeira série televisiva que recordo, a Highway Patrol , em casa do Júlio Machado Vaz e, mais tarde ainda, a série que me fixou como consumidor de televisão para sempre: a Twilight Zone. Ainda a vi nas circunstâncias comunais em que então se via televisão - em casa de um vizinho que tinha o precioso aparelho e que convidava as famílias à volta para a celebração do acto litúrgico de ver o mundo quotidiano, sem estar limitado às "actualidades" do cinema. Percebi, desde o primeiro episódio da Twilight Zone, que aquelas pequenas histórias de meia-hora me iriam mudar, fixando-me nas tramas de um mundo complexo, intrigante e assustador.

Eu era também um leitor voraz da ficção científica, um químico e físico amador, interessado por mil e uma coisa, coleccionava pedras, fazia um herbário, juntava cuidadosamente as gotas de mercúrio dos termómetros partidos, usava lentes para estudo dos efeitos de óptica e tirava a pólvora dos "estalinhos" do Carnaval na esperança de construir um foguete que não me fizesse a partida de subir uns metros e cair no chão. Bem tentei, mas nunca consegui. Estava por isso mais que maduro para a Twilight Zone. A gente pensa que é feita por Homero, mas a Twilight Zone, ou o Cavaleiro Andante acabam por ter maior papel.

Um a um, em cada episódio, eu aprendia uma "dimensão" nova da imaginação, no modo como as histórias pegavam num homem comum, num homem qualquer, nos anónimos na multidão anónima e jogava com as suas expectativas, os seus desejos, os seus sonhos, a vida que queriam ter levado e a que levavam, o prémio aos justos e o castigo aos maus - tudo numa dimensão intemporal, "crepuscular", às vezes irónica, onde o tempo e espaço se entrecruzavam, onde tudo no fundo era tão provável como parecia improvável.

Fiel à época em que foi pensada, escrita e realizada, a Twilight Zone vivia quase sempre de um sentimento só: o medo. O medo de ficar sozinho num planeta deserto noutra galáxia, o medo de estar condenado como Sisifo a repetir os mesmos gestos, acumulando apenas a memória dos mesmos gestos anteriores por toda a eternidade, o medo de acordar todos os dias na cela dos condenados à morte e ser executado da mesma maneira dia após dia, o medo de que o que nos parecia familiar, talvez não fosse tanto assim, o medo dos monstros, o medo das máquinas, o medo do fim do mundo, o medo do que não se entendia, o medo da infância nos adultos, o medo de crescer na infância, o medo do medo. Via-se a Twilight Zone e tirava-se um curso sobre o medo.

Para os leitores de ficção científica desses anos, o medo era também um hóspede habitual dos livros da "Argonauta" sobre formas idênticas àquelas com que ele habitava na Twilight Zone. Longe estava o optimismo de Júlio Verne, agora crescia o pessimismo. O que dera a toda esta literatura um impulso inicial fora o medo da guerra nuclear, que gerara desde o verde Godzilla que esmagava cidades japonesas, à "coisa" que se metamorfoseava, perdida nos gelos da Antártida, como uma mensagem antiga do nosso terrível destino. Nessas ficções representava-se o novo terror da época quando se podia prever que, na esquina seguinte, no minuto seguinte, iríamos ser confrontados com o "doomsday", o dia do juízo final.

É por tudo isto que as pessoas educadas na Twilight Zone e na colecção "Argonauta" sabem demasiado bem o que significa a visão cada vez mais comum dos homens em trajo espacial branco a tomar banhos de lixívia e a transportar caixas marcadas "biohazard". Leram e viram muitas histórias destas e reconhecem o padrão. Por isso quando se diz que o mundo mudou, na verdade não mudou tanto como isso.

Os medos são tão antigos como a humanidade - em Edgar Allen Poe estão quase todos os medos "fantásticos" dos dias de hoje. O que mudou foi outra coisa: foi o período de sono da razão dos últimos anos, o período em que se pensava que os grandes medos tinham acabado, o período em que as novas gerações europeias (e em parte as americanas), nascidas depois da II Guerra Mundial, achavam que essa coisa de guerras tinham acabado ou existiam apenas nos sítios longínquos do subdesenvolvimento.

Anos e anos de desleixo e conforto europeu, em tudo semelhante às delícias de Cápua que derrotaram Roma, levaram a desarmar exércitos e vontades, a pensar que a economia era tudo e o Estado, o velho Estado que nos sacrifica para nos proteger, tinha acabado. Adormecidos pelos governantes do marketing, acordamos agora com o bang dos aviões e o esvoaçar dos esporos. Agora vivemos dentro da Twilight Zone.