FEITO PELO "CAVALEIRO ANDANTE" (Outubro 2002)
Talvez por ter sido consumidor compulsivo das histórias aos quadradinhos (que hoje se chamam pomposamente "banda desenhada" ), pertencendo talvez à última geração que ainda as leu sem qualquer sofisticação, como puro entretenimento, tenho a sensação de que essas peripécias aventurosas contribuiriam activamente para "empedrenir" o lado de perpétuo adolescente com que alguns homens ficam.
Quando continuei, depois, a ler histórias aos quadradinhos por outras razões, nunca tirei delas a mesma emoção original que vinha da leitura certa na idade certa, talvez a mais rica maneira de aprender. Por isso, quando, mais tarde, li o Corto Maltese por exemplo, e olhava para aquela piazetta escondida de Veneza, com o seu poço trabalhado, ou para as violências exóticas do Barão Ungern, ou para as deambulações das escunas alemãs pelo Pacífico, eu reconhecia um mundo que os livros, ou as pinturas já me davam de melhor forma. Aquelas personagens da Commedia eu conhecia-as dos quadros de Canaletto, e as histórias do barão empalador, perdido nas estepes e desertos da Mongólia, dos livros de Hopkirk, e o Pacífico alemão... da flatelia. Os selos das Marianas com o iate imperial, o "Hohenzollern", pareciam-me mais reais, e ao mesmo tempo mais estranhos, na sua face visível da história perdida das colónias alemãs. O mesmo se passava com os selos levantinos ou mesmo como esses intrigantes quatro selos portugueses do Quionga. Já então lia as histórias aos quadradinhos como "banda desenhada" e a "banda desenhada" como literatura, e, como literatura, os livros eram melhores.
Agora, esse mundo inicial onde desde a primeira revista que coleccionei, a Flecha, em que "Clorofila", presumo que uma toupeira, ou um hamster, (na altura isso era irrelevante) lutava contra um bando de ratos negros, está cá dentro puro e intacto. Lembro-me do "Reizinho" ou do "Principe Valente" a cores nas páginas do Primeiro de Janeiro , mas lembro-me acima de tudo, do Cavaleiro Andante. Eu já lia tudo em que podia por as mãos, o Flecha, o Condor, o Falcão, os livros do Sandokan, mas o Cavaleiro Andante tinha uma coisa impar, as histórias de E.P. Jacobs, a Marca Amarela, o Mistério da Grande Pirâmide, o Enigma da Atlântida.
Eu saia de casa a meio da tarde, quarta ou quinta feira já não me recordo, para ir à tabacaria do fundo da rua saber se já tinha chegado o último número , e depois descer a rua Fernandes Tomás para ir a outra tabacaria, e depois às bancas junto da Brasileira, para acabar invariavelmente na Estação de S. Bento á espera que chegasse o comboio de Lisboa que trazia o Cavaleiro Andante. E esperava o que fosse preciso e depois fazia o longo caminho de regresso com a preciosa revista, que já vinha a ler pela rua. Tudo por uma única página, um pequeno fragmento das aventuras do Professor Mortimer e do capitão Blake, saídos dos clubes de Londres e do MI5, para fazer uma viagem ao centro da terra entrando por uma caverna dos Açores e encontrando uma espécie de império bizantino subterrâneo tecnologicamente avançado, mas onde os governantes tinham o título de "Basileus". Uma única página, às vezes duas por semana, justificava toda esta impaciência.
Havia no Cavaleiro Andante muitas mais histórias e eu lia-as todas. Mas o Tintim nunca me entusiasmou e dele só me recordo de algumas imagens como aquela em que os gangsters de Chicago o ameaçam de atirar por um alçapão para as águas do lago, ou da cena do eclipse e algumas imagens do foguetão que vai à Lua. Mas, nas histórias de Blake e Mortimer, tudo desaguava: o Julio Verne pelo qual tinha idêntico entusiasmo, e a ficção ciêntifica da colecção Argonauta de que li sem falha os primeiros 100 volumes e muitos dos seguintes.
Leitor compulsivo, feeding the monster, houve anos em que devo ter ido á Biblioteca do Porto, em S. Lázaro, todos os dias em que esteve aberta. Começava pela Hemeroteca, o grande salão cheio de luz, onde meia dúzia de colecções encadernadas de histórias aos quadradinhos estavam sempre no balcão do fundo. Os primeiros que chegavam escolhiam, os outros liam o que sobrava. Depois, no mesmo dia, subia as escadas para a sala de leitura de cima, muito mais escura, onde por debaixo do retrato de D. Luis e dos milhares de livros que Alexandre Herculano tinha trazido de carro de bois dos conventos, se sentava a fauna muito especial dos frequentadores diários da biblioteca. Do lado direito, ouvia o som abafado dos eléctricos; do lado esquerdo, o barulho das pombas no claustro e, no Verão, quando as janelas se abriam, o barulho da água na fonte. Até cheguei a ler dois volumes da colecção Argonauta por dia. Como? Sei lá!
Depois, pouco a pouco, acabou o Cavaleiro Andante e nada o substituiu, diminuiu o tempo na Hemeroteca para aumentar no andar de cima, e a Argonauta foi cedendo às colecções dos Livros do Brasil e veio o Admirável Mundo Novo, o Moby Dick, a Montanha Mágica. Quando chegou O Mito de Sisifo, já estava noutra, já era outro.
Seria? Hoje, muitos Moby Dick, depois, suspeito que bastante menos do que, a gente pensa para nós próprios...
6 Comments:
Também fui feito pelo Cavaleiro Andante.
E ocorre-me que talvez tenha sido aí que se me criaram os modelos de heróis, de justos e de defensores dos fracos, que mais tarde procurei imitar, como única forma de ter uma vida com sentido.
Ilusoriamente, já se vê.
Mas hoje, em que já não se ensinam modelos de heróis às crianças, e em que os maiores dão o exemplo da deserção, que se poderá esperar da futura geração? Como se poderá pedir-lhes que se sacrifiquem hoje por um amanhã melhor? Já nem digo para os fracos, mas até mesmo para eles próprios...
"Conheceram-me pouco depois de ter aparecido neste mundo. Jogámos à bola no magnífico Largo de Castela e na feira do mês. Disputámos corridas bem cronometradas no interior do belíssimo jardim junto da Câmara, já desaparecido. Esfolaram-me e foram esfolados ao King no Avenida e no Parque da vila. Enfrentaram-me ao bilhar no Central e no Grémio do Comércio. Tal como eu, esperaram pelo Mundo de Aventuras e pelo Condor Popular e, se eram bem comportados, chegaram a ler o Cavaleiro Andante.
Tiveram o privilégio de ouvir os Animals, os Beatles, os Stones, os Bee Gees e os Moody Blues exactamente no momento em que as suas músicas surgiram. Acompanharam-me para quebrar a solidão nas noites de Ourém onde o maior ruído era o que provinha dos Mééé de inocentes carneirinhos ali para os lados da casa do sr. Lúcio.
..."
Caro JPP, apesar de tudo, parece que temos algo em comum lá para esse passado que nos é inesquecível.
Recordo tudo isso na Crónica de Distintos Oureenses ou no Blogue de Ourém.
Vá lá, por favor...
Continuas excelente:)
Jangadas que inutilizas no medo,
A salvação o destino prescinde,
Lançado na água, esperando o torpedo
Ou a alma purificada que o alinde;
E entre personagens do teu robledo
Nenhuma encontras que teu escuro finde.
E enforcas Narciso, toda a auto-estima
Sobre o fado, se o hoje não anima.
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