10.9.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 2 (Setembro 2004)

O VAZIO DO SOCIALISMO REAL

É difícil imaginar uma discussão com tão pouco interesse como a que atravessa o PS. Alegre, Sócrates e Soares andam à volta de meia dúzia de lugares comuns do “socialismo”, tentando encontrar uma geografia adequada – mais ao centro, mais à esquerda, mais moderno, mais novo, mais charmoso – para colocar candidatos, não dizendo absolutamente nada sobre o Portugal que eles remotamente pretendem governar.
A verdade é que a sociedade mediática vive desta despolitização, dando-nos em troca a valorização da imagem, ou seja, da persona que os candidatos apresentam no espectáculo da vida pública. Aí, Soares é claramente o prejudicado e, apesar das suas qualidades pessoais, que as tem, aparece apenas como chefe de uma facção interna a querer espaço para o seu grupo. Os outros dois, Alegre e Sócrates, polarizam a competição, o velho e o novo, o antiquado e o moderno, o de esquerda e o de direita, tudo coisas que ajudam muito os jornalistas a organizar a cabeça deles, pelo método da simplificação, e a nossa, pelo método da sucção.
Alegre, quando fica solto nas entrevistas, dá a perceber que é uma pessoa com princípio, meio e fim. Ali está um tipo, com vida, que já viu muita coisa, que tem gostos e leituras e não precisa de “deixar cair nomes” para mostrar que é culto. Às vezes deixa-se enroupar nos fatos de “consciência crítica” que lhe tecem, amigos e adversários, e gosta de ser a “voz da liberdade”, proclamando – porque Alegre tem duas maneiras de falar, uma normal, outra, tribunícia – coisas certas, exageros e asneiras insensatas. Tem péssimas ideias sobre o “socialismo”, mas desiludam-se os que pensam que é só ele que as tem. Os media dizem, contra ele, que é velho, mas nesse insulto há mais ressentimento contra a sua espessura do que qualquer verdadeiro argumento. Porque, no fundo das coisas, Alegre gosta de pescar o seu peixinho, na solidão das águas. E, na solidão das águas, tenho a certeza que pensa consigo mesmo coisas mais sensatas e moderadas, porque os homens com vida são assim e ele de plástico não é. De todos é talvez o que menos se escolheria a si próprio e melhor saberia escolher os outros.
Tinha uma opinião positiva sobre Sócrates ministro, em particular por causa do conflito à volta da incineração de resíduos. Ainda hoje penso que tinha razão, e os ecologistas do meu partido, que o combateram, não fizeram senão adiar o problema sem o resolver, agravando-o. Mas perdi muito dessa ideia quando o vi nos debates com Santana Lopes: vaidoso, melífluo, redondo, a tentar estar de bem com Deus (do PS) e com o Diabo (à frente dele). Estava, como hoje se diz, a “posicionar-se”. A célebre entrevista ao Expresso revelou-o com toda a crueldade, e os remendos aos remendos que têm sido as suas intervenções públicas mostram o enorme vazio das suas opiniões.
Quem pense que as ideias de Sócrates, a sua versão deslavada do mesmo “socialismo” de Alegre, são melhores para Portugal, só pode ter amnésia. O governo do seu mentor, o engenheiro Guterres, foi o que pior fez ao país nas últimas décadas, sem ter o ónus da ortodoxia de esquerda de Alegre.
Socialismo por socialismo, nos últimos anos, o deslavado custou-nos mais caro. Pessoa por pessoa, Alegre tem muitas vantagens. Ideias por ideias, venha o Diabo e escolha. E se calhar vem.


A FRASE REVELADORA - O Medo Do Primeiro-Ministro

"Não tive medo de dizer o que sempre me pareceu mais correcto, mesmo indo contra a maioria; não tive medo de ficar só quando os outros alinhavam por caminhos mais fáceis; não tive medo de desafios e de combater por aquilo em que acreditava".
Santana Lopes, Carta aos Militantes do PSD

Porque é que o Primeiro-ministro tem uma obsessão com o medo? Explico-me: porque razão é que ele, na sua actual encarnação governamental e nas anteriores encarnações como candidato partidário e a várias eleições, está sempre a dizer que não tem medo? Penso que em nenhuma entrevista ele deixou de dizer que não tinha medo, e centenas dessas declarações estão disponíveis.

Há várias razões. Uma, retórica: ao dizer que não tem medo, está a dizer que é corajoso, e o Primeiro-ministro é notório por se auto-elogiar em tudo o que diz. O seu discurso não é sobre a polis, mas é sobre ele próprio. Depois, pode-se sempre considerar a expressão um exorcismo: quem tem medo precisa de repetir sempre que não tem. É uma encantação, mais do que uma afirmação.
Há pelo menos um medo que ele deveria ter, acima de qualquer outro: como dizem os americanos, "you live by the press, and you die by the press” - “vives pela imprensa, morres pela imprensa”. E desse medo nem os guarda-costas das costas, nem os guarda-costas da imagem, os assessores da dita, o podem proteger.


Titã : um planeta a sério

[Imagem]

Aqui está um planeta a sério e não um qualquer calhau rolante, daqueles que são multidão nos céus. Grande, maior que Mercúrio, e depois estas cores (exageradas para as vermos melhor) não enganam: atmosfera! Ali estão gases familiares, daqueles perto da vida. Perto apenas, porque pode não haver vida nenhuma. Mas perto é já muito, porque conhecendo Titã conhecemos melhor a terra primitiva, a nossa sopa orgânica primordial. Se tudo correr bem, em Janeiro do próximo ano, lá pousará uma sonda para ver melhor de que massa somos feitos. Neste momento em que escrevo, acabou de desligar um dos foguetes para corrigir a trajectória. Tudo bem.


TRAIDORA TRADUÇÃO – A mentira dentro da cidade

Há um pequeno livro de Pierre Vidal-Naquet chamado Le Miroir Brisé e com subtítulo “ a tragédia ateniense e a política”, de tradução obrigatória. Não chega a cem páginas, este ensaio sobre o teatro grego e as suas implicações políticas, mas quase tudo está lá puro e limpo, nas discussões atenienses sobre a cultura, a sociedade e a política. A actualidade dos problemas é total e fazíamos bem em aprender com os gregos a colocá-los na sua simplicidade original.
Num célebre diálogo comentado por Vidal-Naquet, a partir da biografia do legislador Sólon feita por Plutarco, cita-se esta troca de opiniões a propósito dos espectáculos de teatro:

Sólon - “Não é uma vergonha, (…) dizer tantas mentiras diante dos espectadores?”

Thespis, o seu interlocutor, responde que não. Não há problema nenhum nisso, porque, no fundo, se trata de um jogo. Sólon ficou furioso, bateu com o seu cajado no chão, e disse:

“Se honramos esta espécie de jogo, nós o encontraremos muito em breve nas convenções que nos ligam”


Ou seja, se aceitamos a mentira ficcional, como é que depois a combatemos no espaço público da cidade, na sociedade, nos negócios, na política? O problema de Sólon está no cerne da sociedade mediática dos nossos dias, onde o espectáculo (a mentira, a ficção) dissolveu a tal ponto todos os outros tecidos sociais (as “convenções que nos ligam”) que cada vez mais a ilusão e a realidade se confundem e, em caso de dúvida, manda a ilusão. Até que a realidade nos aparece como uma parede. Sólida.

1 Comments:

Blogger timshel said...

Permita-me que, enquanto maníaco de Steinbeck, coloque aqui, a propósito da parte final do seu post ("TRAIDORA TRADUÇÃO – A mentira dentro da cidade") um pequeno excerto de um dos seus livros:

"Creio que a diferença entre um conto e uma mentira reside no facto de o conto apenas utilizar as ciladas e as aparências da realidade para captar o interesse do auditor, enquanto que a mentira não passa de um meio de fuga ou de proveito. Se nos cingirmos a esta definição, um homem que escreve histórias é um mentiroso — se obtiver um proveito apreciável, evidentemente."
("A Leste do Paraíso", John Steinbeck, tradução de João Belchior Viegas, "Livros do Brasil", pag. 87, Vol. I)

9:31 da manhã  

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