10.9.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 3 (Setembro 2004)

O QUE É QUE É HOJE NOTÍCIA?

Futebol. Futebol. Futebol, a máquina que nunca para. Jogos de primeira, um noticiário completo. Jogos de segunda, metade do noticiário. Jogos de terceira, um quarto do noticiário. Antes dos jogos, uma semana de declarações e incidentes com as declarações. Barulho, bravado, peito cheio, pedidos de desculpas, insinuações, acusações, “blackouts”, “só entras tu que respeitas o clube”, drama, corrupção, intrigas, etc., etc. “Eu disse isso ontem? Já não me lembro.” Agressões no jogo? Não, “os jogadores vivem o jogo com muita intensidade”. Relatos médicos, constituição das equipas, entra este, sai aquele, aqueloutro está zangado por não entrar, fala o treinador “aqui mando eu”, fala o jogador, “não foi isso que eu disse, são especulações”, etc., etc. Chegada aos jogos, saída dos jogos. Entrevistas à entrada nos dias habituais. Sócios vociferantes, um homem que se chama o “barbas”, Eusébio passeado como mascote. O que comem, o que não comem. Médicos, massagistas, famílias avindas e desavindas. E não se esqueçam, deixem lá estar as bandeirinhas, que a pátria é nos estádios que “se sente”. “Portugal é o estádio da Europa”. Pois é.

Acidentes, grandes e pequenos. Muitos mortos está bem, manda-se uma menina perguntar às pessoas como se sentem. Ou aos familiares dos mortos como é que soube que ia ser familiar dum morto. Acidentes pequenos, quando não há grandes, pergunta-se ao GNR ou ao bombeiro. Procurar a culpa, sempre procurar a culpa.

Atrasos de aviões, ideal para o Verão. Comprou uma viagem barata ao Brasil, ao paraíso de Fidel, à terra do Porfírio Rubirosa (não sabe quem é? Vá estudando que o homem é um Paradigma de políticos), a essa nova qualidade de sítio que são “os resorts”? Pois prepare-se que os aviões também são baratos e o serviço péssimo. Cinco minutos de telejornal, mais um pré-anúncio à cabeça. Grupos de veraneantes estudando o canto mais obscuro do aeroporto, depois de ter ido mil vezes ao “free-shop” experimentar os perfumes. Imensa gente, mulheres, homens, com fitinhas de pano nos pulsos. Que será? Ferro de marcar? Porta vozes espontâneos entre os passageiros não faltam. Toda a gente quer dizer alguma coisa na televisão. Televisão para o escritório, para a repartição de finanças, para o “coffee-point”, onde se discutem as férias do próximo ano.

Tragédias da vida real. Pessoas doentes, acamadas, tristes, que precisam de uma cadeira de rodas, que vivem a um canto do mundo dão sempre uma boa história “de vida” para cativar o público feminino, os velhos, os doentes que estão do outro lado do ecrã. Para além de mais há sempre um benemérito que dá, nos próximos cinco minutos, a cadeira de rodas. Dores, camas pobres mas arranjadas para quando a televisão aparece. Mulheres chorando a pedir uma casinha. Agora, adeus, vamos ao próximo doente.

Tudo o resto, que maçada!

Agora imaginem o que é crescer assim, banhado nesta televisão do Terceiro Mundo, que sabemos ser hoje o principal factor de socialização nas crianças. É possível mais tarde inverter as prioridades do ecrã? Duvido. Como em muitas coisas dependerá da origem social, algumas das mais ricas inverterão a situação e será delas o poder da televisão do futuro.


NÃO HAVERÁ AÍ UMA PEQUENA CONTRADIÇÃO?

Toda a gente que fala dos males do país refere os dilemas da nossa educação, má preparação profissional, baixa qualificação, resultados desastrosos em todos os indicadores decisivos – língua nacional, primeira língua estrangeira, física, matemática – iliteracias diversas, como factor decisivo do nosso atraso. Depois, na economia da nossa discussão pública e do escrutínio da comunicação social, os ministérios-chave (educação, universidade, ciência, formação profissional), esses problemas são tratados como de importância secundária, como se viu na discussão da constituição do governo. Não nos tomamos a sério ou o nosso atraso leva a vermos sem ver.

PESO DA HISTÓRIA

Cada um tem o peso da história que pode suportar. Os portugueses vivem dobrados ao peso dos descobrimentos, os gregos da antiguidade clássica. Os Jogos Olímpicos “modernos” colocam a questão aos gregos, hoje vivendo na memória de um passado glorioso e de um presente suficiente. Somos os mesmos? Os portugueses de hoje são os mesmos que iam com Fernão Mendes Pinto matar chineses e saquear barcos e fazendas? E os gregos são os mesmos das Termópilas ou da retirada dos dez mil? Bem sei que há muito de retórica na pergunta e que a pergunta é traiçoeira. Somos e não somos. É a insegurança do presente que faz a pergunta. A mesma pergunta foi feita no passado, exactamente no momento em que hoje a consideramos desnecessária. Sá de Miranda, fê-la quando via o reino despovoado pela canela, ele também sentindo-se inseguro. Mas, varrida quase toda a retórica, varrida a insegurança, sobra um resíduo de perturbação que ainda dá uma réstia de sentido à pergunta. Eça escreveu um esboço de resposta na Ilustre Casa de Ramires, uma metáfora sobre Portugal, e nalgumas ironias de Fradique Mendes. Se calhar somos o mesmo, a nossa “organização” é que não é a mesma e por isso estamos pior.


AS EXECUÇÕES IRAQUIANAS

Apesar de alguns tímidos protestos ocidentais as execuções de estrangeiros no Iraque não merecem sequer uma manifestação de rua, muito menos uma indignação a sério. Essas estão reservadas para o presidente Bush. Os trabalhadores turcos, os motoristas paquistaneses, os membros de organizações humanitárias, os responsáveis pela ONU, pela UNICEF, pela OMS, os trabalhadores que estão a ajudar o Iraque a ter electricidade e água e serviços básicos, os jornalistas ocidentais, são um alvo fácil e perturbador. Perturbador porque atinge o próprio esforço de estabilização do Iraque e de melhoria das condições de vida, fundamental para a retomada da plena independência e soberania.
Agenda dos assassinos? Simples. A da Al-Qaeda é a que se conhece. A dos rufiões do Baas, militares, burocratas, membros da polícia secreta, é também simples: impedir a todo o custo a democratização do Iraque e fomentar o conflito civil para manter a maioria da população, os xiitas em particular, debaixo de uma ditadura férrea. A tiro, bomba e espada (para decapitar os reféns) pretendem regressar ao poder, para brutalizarem os seus concidadãos, e viverem na corrupção e opulência habitual, temidos pelos vizinhos, colocando os seus filhos nas universidades estrangeiras, comprando Chanel para as esposas, e mobílias de torcidos e tremidos em dourado para as suas casas confortáveis. Vale bem o custo de meia dúzia de dólares a bandos de assassinos para executarem um estrangeiro. São tão nacionalistas como eu sou zulu e, como eu não sou zulu, custa-me ver a imensa indiferença politizada face a estes crimes terroristas nas nossas protegidas costas ocidentais. Vítimas da perversa ideia que não são eles que os mataram, mas sim “nós”, talvez o presidente Bush.

1 Comments:

Blogger Politikus said...

Os tempos mais próximos não vão melhorar, pois tudo indica que o Sr. Bush ficará na Casa Branca por mais 4 anos. Ou seja a guerra vai ser longa, estupida e com motivos vazios...

6:18 da tarde  

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