4.10.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 5 (Setembro 2004)

PORQUE É QUE É MAU ABANDONAR A “OBSESSÃO” DO DÉFICE

No dia em que se percebeu o que aí vinha, escrevi que era só uma questão de tempo até que se deitasse pela borda fora o pouco que se tinha adquirido. Depois disso muito se discutiu sobre se o governo de Santana Lopes iria ser mais ou menos despesista. A escolha de Bagão Félix para as Finanças foi saudada como um sinal de que ele funcionaria como um avalista para que não houvesse despesismo, contrariando as pulsões eleitorais conhecidas do Primeiro-ministro.
Havia, é certo, sinais contraditórios: todas as declarações do Primeiro-ministro implicavam sempre mais despesa, mas Bagão Felix aparecia depois a contraria-las e o Primeiro-Ministro, que ouve bem e depressa, lá fazia as suas rectificações. Mas do resíduo desta confusão, iam pouco a pouco ficando promessas. Ia-se ver a força do avalista. Depois da comunicação de há dias e da clara admissão que o défice de 3% pode ser ultrapassado, depois da retórica do rigor servir no fundo para justificar a ruptura com a “obsessão” do governo Barroso – Manuela Ferreira Leite, já se percebeu, como muitas vezes acontece na história, que será o avalista Bagão Félix que assinará as contas das despesas que uma enorme multidão dependurada no estado pretende fazer. Não será ostensivo, não será muitas vezes evidente, não será nunca o suficiente, mas a ruptura com o rigor será ele, Bagão Félix, o avalista do despesismo, que a fará. Já a fez, já a está a fazer.
O que nós precisamos é de uma longa cura de falta de dinheiro no estado, de “obsessão” pelo défice, pelo equilíbrio das contas públicas, ou seja pela adequação entre o dinheiro que se tem e o que se gasta. Não é uma questão de contabilista, nem é uma questão de economista, é uma questão de política. Política pura que é mau aliás deixar a economistas. Um estado que vive rarefeito de dinheiro é mais propício a reformas, a procurar soluções para poupar, a deslocar o pouco dinheiro que há para tentar gastar melhor. É uma questão de “ambiente” e a política de Manuel Ferreira Leite melhorava o “ambiente” e forçava-nos, mais cedo do que tarde, a reformar. Não garantia as reformas, mas tornava-as mais urgentes. O “ambiente” é pouco? Não. O “ambiente” é tudo.
O que eu queria era um governo com os cordões apertados na bolsa por um exigente e capaz tesoureiro, e depois um grupo conhecedor, inovador e corajoso, a procurar que o pouco dinheiro que havia fosse aumentado nas receitas e diminuído nas despesas. Cada vez me convenço mais que um governo destes é quase impossível em Portugal, porque em Portugal não há médio prazo, como se vê. Sai Durão Barroso – Ferreira Leite, entra Santana Lopes – Bagão Félix e tudo muda.
Em Portugal, enquanto o estado gastar mais do que ganha, não há reformas possíveis, nem a sociedade parasitária do estado se vê obrigada a soltar-se dele. Há demasiados subsídios, possibilidades de subsídios, dinheiros públicos, acesso a dinheiros públicos, para que uma sociedade de um país pobre se solte do estado. Há demasiado dinheiro no estado para que haja um verdadeiro esforço para melhorar os serviços. Há dinheiro a mais e não dinheiro a menos, logo gasta-se mal e hipoteca-se o futuro.
O “ambiente” mudou para o lado da despesa, é apenas uma questão de tempo até ela começar a pesar de novo. Ouviremos Bagão Félix mais vezes a explicar-nos porque é difícil controlar o défice, mas nunca a dizer-nos que será cada vez mais difícil fazê-lo porque ele deixou de ter essa “obsessão” de o controlar.


FAÇO CONFERÊNCIAS DE IMPRENSA, LOGO EXISTO

Tenho de há muito a tese que a explicação mais simples para um evento bizarro é normalmente a melhor. As teses conspirativas, ou muito elaboradas, em que se diz isto para fazer passar aquilo, em que se diz preto porque se quer branco, afirmando isto dou um sinal para aquilo, têm para mim dois óbices fundamentais: não resultam na esmagadora maioria dos casos, e depois, em Portugal, nada de muito complicado funciona.
A bizarra conferência de imprensa do Ministro do Ambiente Nobre Guedes, com a sua grandiloquência grave, cheia de acusações de negligência criminosa, sem outro resultado que a criação de outras comissões e inquéritos, cheia de potencial cizânia interministerial, e interpartidária, seguida de reprimenda e diminuição de competências, pode ter as mais complicadas das interpretações. Fico-me por uma muito simples. O Ministro do Ambiente nada conhece de Ambiente, mais do que isso, pouco lhe interessa o Ambiente. O Ministro do Ambiente interessa-se pela sua pessoa, e pelo seu grupo partidário, para o que precisa de existir, ser, mostrar que manda, que faz alguma coisa. A solução mais simples é a conferência de imprensa e um pretexto. O desastre do oleoduto de Leça foi o pretexto. O resultado foi exactamente o contrário das intenções do seu autor. Se lesse Weber percebia porquê.


TRAIDORA TRADUÇÃO - MORTE E MEMÓRIA

Catherine Merridale, Night of Stone, Death and Memory in Russia, Londres, Granta Books, 2000

A Rússia está outra vez a mover-se para zonas perigosas. Numa sociedade cuja democracia e fragilíssima e acantonada em escassos sectores da vida pública, a Presidência de Putin está a caminhar claramente para uma autocracia.
A Rússia devia ser um país que toda a gente que profere um sussurro que seja sobre a história contemporânea, deveria ser obrigada a estudar a fundo, e este livro deveria fazer parte desse estudo. Porque na Rússia o particular é o universal, e na sua história viva, nas pessoas vivas, está uma tal dose de sofrimento e memória, que remete para toda uma história do humano, sem paralelo no ocidente. Os russos lembram-se da II Guerra Mundial, de forma diferente dos ingleses, americanos e alemães. Os russos lembram-se, com uma memória da história, não como um sentimento do presente. O seu sofrimento foi “antigo”, teve uma dimensão trágica que mostra que os povos podem sofrer por igual (o sofrimento é muito igual para os que sofrem), mas a memória do sofrimento é diferente. Se acrescentarmos a essa memória da guerra a do Gulag, os milhões de vida devorados, as populações deslocadas, as aldeias atravessadas pelo medo absoluto, temos aí uma história única. O massacre de Beslan inseriu-se nessa história – memória da dor sem paralelo noutro povo, depositada em particular nas mulheres, nas mães russas. Ouviremos falar cada vez mais da Rússia e isso é mau sinal.