14.4.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 27

E AGORA JOSÉ?

O “José” dos políticos é difícil de definir. No fundo, os portugueses não são o mesmo José: há “Josés” yuppies, e “Josés” trolhas, há “Josés” betos e “Josés” da passa, há “Josés” que são “Marias”, metade dos portugueses são “Marias” que o nosso machismo inclui-as na pergunta dos “Josés”, há “Josés” funcionários e “Josés” desempregados. Por aí adiante.
Que querem estes “Josés” todos? Coisas diferentes, contraditórias e hostis entre si. Contrariamente aos que, de há muito, anunciaram a sua morte, a velha “luta de classes” continua a existir. Não se faz ao modo que Karl Marx enunciou, mas ao modo que Balzac, Tolstoi, Ibsen, Kafka , entre outros, descreveram. Invejas, ressentimentos, apaziguamentos, revoltas, curiosidades, ambições, dinheiro, falta dele, a terrinha dos pais ou o apartamento em Massamá, medos e seguranças, makes the world go around. Esta dinâmica, às vezes apenas uma mecânica, do mundo faz-se por uma miríade de desejos e expectativas, nem todos gloriosos, nem todos socialmente aceitáveis nem enunciáveis, nem todos bons, nem todos perversos. Mas faz-se. Move-se, embora muitas vezes para trás.
Para um jovem empresário que queira fazer uma empresa ex-novo a burocracia é o seu inimigo. Gostaria de chegar a um Centro de Formalidades das Empresas e sair de lá com o que precisa no mesmo dia. Mas se viver na província, ou, se mesmo em Lisboa, tiver que lidar com algumas burocracias firmemente estabelecidas, prepara-se para um longo calvário. Do outro lado, está uma miríade de funcionários que nunca tiveram preparação, nem tem as literacias para atenderem com eficiência quem ocorre às repartições. Estão habituados a mandar no seu pequeno cacifo, e a atrasar ou acelerar, a informar, ou a desinformar, a aceitar a pequena corrupção da empresa que oferece o serviço de tratar dos papéis e que tem sempre melhor tratamento do que os indivíduos que ousam aparecer sozinhos. Depois, este “jovem empresário” é um tipo ideal weberiano, que quase não existe. Os que existem são na maioria “velhos”, mesmo quando novos, espertos, conhecendo e praticando todos os truques do ofício de sobreviver num mundo de cunhas e corrupção de que eles se queixam, mas que alimentam e, pior, reproduzem na sua própria actividade: “quer factura?”, uma das frases mais ouvidas em Portugal. A sociedade alimenta-se de milhares de pequenos conflitos, de milhares de interesses desavindos, e para que uns ganhem outros perdem.
Em Portugal é tudo muito pequeno, somos todos primos uns dos outros e o espaço e os bens escasseiam. Esta é uma visão pessimista de intelectual? Não é: todos os inquéritos sociológicos revelam a falta de mobilidade profissional, social, geográfica dos portugueses, a sua preferência pelo que está e o seu medo de mudar, particularmente se a mudança incluir uma avaliação do seu mérito. É este também o nosso atraso – vimos de muita pobreza e achamos que o remedeio medíocre já é demasiado bom para nos darmos ao trabalho de arriscar a mudar. Não admira por isso que os “Josés” que querem mudar e arriscar sejam escassíssimos e os “Josés” que querem manter o pouco que têm, apenas gastarem mais sem comprometerem o garantismo do que tem (quase sempre do estado) e sem muito trabalho, abundam. E votam, em função dos riscos e seguranças que retratam o seu modo de vida. A inércia é a regra, a mudança é a excepção.



PROCESSAR SALDANHA SANCHES OU ASSUMIR O COMBATE CONTRA A CORRUPÇÃO NAS AUTARQUIAS?

Esta é uma típica pergunta retórica, porque todos sabemos que ninguém enunciou este dilema, a começar pelo sujeito invisível da frase, a Associação Nacional de Municípios. O que Saldanha Sanches disse não precisa de qualquer comprovativo: já desde a antiga Alta Autoridade Contra a Corrupção, cujos ficheiros confidenciais estão convenientemente guardados no arquivo morto, até aos inquéritos policiais conhecidos de hoje e aos processos realizados e a realizar, que a corrupção é um problema gravíssimo das autarquias. Quando um autarca toma a iniciativa de querer limpar a sua casa, como Rui Rio fez na Câmara do Porto, para além de todas as dificuldades e obstáculos, acabam por aparecer os casos de corrupção. É também a experiência de muita gente e por isso não é “acusação” nenhuma que precise de ser provada. Se depois o nosso sistema judicial não actua como deve, é todo um outro problema.
Se os autarcas estão preocupados com a sua “imagem” seria bom que experimentassem conduzir eles próprios esse combate contra a corrupção, cujos meandros tem obrigação de conhecer melhor que ninguém.


E O NOSSO REFERENDO À CONSTITUIÇÃO EUROPEIA QUANDO É QUE É?


Os espanhóis fizeram já o referendo à Constituição Europeia e os seus resultados são reveladores. Votar sim é politicamente correcto e agrupa todos os partidos do poder, socialistas e populares. Logo que, nas respostas, houvesse uma maioria de sins não espanta. Mas o desinteresse e a indiferença foram os verdadeiros vencedores. O cidadão comum, aquele para quem a Constituição diz apelar, mostra escasso interesse num texto que vê como inócuo (os que o vêm como perigoso votaram não) e irrelevante. Acham que o poder é o poder e ele virá ao de cima, com Constituição ou sem ela, e se for preciso contra ela. E ponto.
Mas há um sinal preocupante no caso espanhol, que também se verifica em Portugal sem grandes alardes: a chamada “propaganda institucional” a favor do sim, feita com dinheiros europeus ou do estado. Ora sendo a aprovação da Constituição uma questão de decisão política livre dos portugueses convinha não esquecer que as instituições não devem ter lado antes de um voto que não devem querer condicionar. É por isso que a inauguração de um mural sobre a Carta dos Direitos Fundamentais, um documento que não é vinculativo face à lei portuguesa, só pode ser propaganda. E já agora, está tudo esquecido de que existe um compromisso de referendo e que convinha sabermos quando é, para não se criar mais uma vez uma situação de facto, antes de ser de jure.


DICIONÁRIO DE FILOSOFIA PORTUGUESA

Como muita gente formada nos anos sessenta, a mera junção do substantivo “filosofia” ao adjectivo “portuguesa” levantava logo as piores das suspeições. Suspeições políticas, porque a “filosofia portuguesa” era vista como um produto ideológico reaccionário entre o Integralismo lusitano e o regime salazarista, e suspeição de interesse, porque alguns dos seus autores escreviam num estilo obscuro e ilegível para o comum dos mortais, mesmo sendo filósofos. Havia também um nacionalismo predestinado, como se o Quinto Império fosse uma realidade ôntica. E tudo parecia comentário, do comentário, do comentário, fechado, isolado, provinciano e voltado para si mesmo, longe das grandes portas abertas dos filósofos do século XX.
Se bem que houvesse razões para estes preconceitos, eram de facto preconceitos e muita ignorância à mistura. Não é que a “filosofia portuguesa” tivesse a genialidade que os membros da sua escola, lhe atribuíam, mas merecia ser melhor conhecida e estudada. Vale por isso a pena o Dicionário de Filosofia Portuguesa de Pinharanda Gomes, que a D.Quixote publicou. Como os dicionários não são para ler de fio a pavio, comecem por exemplo por “Paremiologia”, ou seja o estudo dos provérbios para ter um sabor da “filosofia portuguesa”.