3.1.05

A CAMPANHA ELEITORAL NO PORTO (Março 2002)

1. A campanha eleitoral no Porto foi, com a de Loures já há muitos anos, a mais interessante em que pude participar. Foi uma campanha atravessada por problemas políticos reais, de carácter nacional, e que esteve longe de ser apenas o eco local de um confronto político nacional.
Dela quero dar aqui um testemunho que sei ser pouco habitual nos políticos portugueses. Falar de uma experiência política muito próxima, vivida por dentro, ainda por cima com interesse de causa, é complicado. Mas há aspectos do que se passou que penso ser importante ficarem registados tanto mais que a cobertura da comunicação social foi errática e distraída. O principal jornal do Porto, o Jornal de Noticias, entendeu que não devia cobrir as campanhas locais, talvez com receio de as ter de comparar, e esteve ausente em parte incerta.
Infelizmente o cinismo militante do comentário jornalístico, que atingiu nesta campanha níveis de arrogância insuportáveis, impede os media de não só ajudarem a compreender o que se passa, como de perceberem diferenças porque é sempre mais cómodo meterem tudo no mesmo saco.


2. O problema do “futebol” que atravessou a campanha, no Porto foi tudo menos uma questão de futebol: foi uma questão de poder político, nua e crua e até exemplar e reveladora nessa nudez e crueza. Em nenhum sítio do pais o mesmo se passou. O incidente com Vilarinho , pelo seu carácter anedótico, tem pouco a ver com o jogo muito mais a sério que se passava no Porto. A questão no Porto era pura e simplesmente a de se saber quem mandava na cidade, se o poder político legitimamente eleito, se um conjunto de poderes fácticos, que incluíam os derrotados das ultimas eleições autárquicas e o establishment que durante mais de dez anos se criou à sua volta. Esse establishment incluía dirigentes desportivos como o Sr. Pinto da Costa, interesses imobiliários poderosos, uma corte de agentes culturais, jornalistas e jornais, e um conjunto de “personalidades” que apareciam a falar pelo Porto e que, por singular coincidência, eram todas apoiantes de Fernando Gomes.
Nestas eleições, conduzindo verdadeiramente a campanha do PS, esteve o Sr. Pinto da Costa, presidente do FC do Porto. O Sr. Pinto da Costa é um demagogo populista típico, pouco educado, que fala alto e grosso, gosta de intimidar e ameaçar os seus adversários, faz ultimatos e chantagens. Na Contra-Informação é sempre acompanhado por uns mastins violentos, vá-se lá saber porquê. Mas , dito tudo isto, o Sr. Pinto da Costa é um adversário muito mais poderoso do que Narciso de Miranda, que, pelo menos, tem o mérito de ser um político eleito. O seu poder vem de não ter pejo de usar o FC do Porto para obter poder político e benesses excessivas, para o clube sem dúvida, mas também para os seus amigos políticos.


3. O FCP não está para o Porto como clubes como Benfica ou o Sporting estão para Lisboa. Transportando o nome da cidade – diferentemente do Boavista e do Salgueiros que tem nomes dos antigos bairros fabris do Porto – o clube é uma instituição profundamente popular, na qual a cidade se identifica quase como quem respira. Uma das minhas memórias de infância, é a de assistir, da casa de Pedroto, (imaginem as voltas que o mundo dá), que era amigo do meu avô materno, a esse acontecimento que atravessava toda a parte oriental da cidade que era a entrada e a saída dos jogos das Antas. Uma multidão de homens ia e vinha colocando milhares de pessoas nas ruas, numa cidade e num tempo em que ver multidões não era comum. Havia um ambiente de festa, então sem a parafernália das bandeiras, cachecóis e chapéus, apenas alegrada pelo som do hino do clube tocado aos berros nos altifalantes do estádio. Era uma festa masculina, visto que as poucas mulheres que iam ao futebol ficavam cá fora nos carros, a ouvir o relato e a fazer crochet. Era uma festa popular, operária, e recordo-me do escuro dos fatos domingueiros sobre o fundo branco dos prédios modernos e nalguns casos modernistas das casas das Antas, zona residencial de gente rica que vivia de costas para o espectáculo incomodo de ver o seu território invadido aos domingos à tarde.


4. O FC do Porto conheceu na última década uma fase “gloriosa” da sua vida, com sucessivas vitórias nacionais e internacionais e isso empolgou justamente o Porto. Foi também nesta altura que o Sr. Pinto da Costa esteve na origem de um revivalismo do pior provincianismo nortenho, que é a afirmação do Porto “contra” Lisboa , dos gritos de “vamos queimar Lisboa” e dos ataques aos “mouros” e outras amabilidades do género que ele partilhava com Fernando Gomes. Os dois ajudaram a dar ao Porto uma dimensão provinciana e mesquinha que avilta uma cidade de valores universais, e usaram-na para promover as suas carreiras políticas e o seu poder.
A cada eleição autárquica , percebia-se que durante os anos de gestão socialista do Porto, o Sr. Pinto da Costa foi um dos pilares do poder de Fernando Gomes e Nuno Cardoso. Não importa saber se o fez por convicção política ou por oportunidade, porque no tipo de intervenção política que lhe é característico isso é irrelevante. O que é certo é que o fez e obteve um cheque em branco da edilidade para tudo o que queria fazer. As condições em que Nuno Cardoso ofereceu ao FC do Porto tudo o que podia e não podia, permitindo-lhe fazer um negócio com um grande grupo económico, certamente mais valioso do que o custo do estádio, foi prejudicial ao interesse público da cidade mas revelador das trocas de influência e poder recíprocas.


5. Quando Rui Rio ganhou a Câmara Municipal do Porto de surpresa, todo este establishment não queria acreditar no que lhe acontecera . O efeito de surpresa levou à denegação da realidade, como quando nos anunciam uma doença mortal , a que se segue um enorme aturdimento e um desejo ressentido de vingança. O porta voz desse sentimento e da sua tradução política, acabou por ser nesta campanha eleitoral o Sr. Pinto da Costa.
Passou todo o tempo a fazer pronunciamentos políticos explícitos, muitos dos quais em prime-time televisivo, perante o entusiasmo pouco disfarçado dos jornalistas, que gostam daquele clima de espectáculo e bragadoccio . O Sr. Pinto da Costa não escondeu o apoio ao PS e o combate ao PSD, atacando-me explicitamente a mim e a Rio de sermos tudo e mais alguma coisa. Pronunciou-se contra a realização pelo PSD do comício do dia 9. "Gozou", como dizia gentilmente o Expresso, comigo e com o PSD. Se isto não é política, não sei o que é política.
Fê-lo no limite do que é admissível em democracia. Já se tinham passado as cenas em que uns valentões dos Super Dragões agrediram em matilha comerciantes idosos e senhoras numa contra-manifestação a que as autoridades policiais fecharam todos os olhos. Depois começou por atacar de forma descabelada Rui Rio a quem chamou entre outras coisas “Hitler”, enquanto nas ruas os Super Dragões o chamavam de “esgoto”. No entanto, apesar disso, muitos senhores finos da política, não desdenhavam a companhia dos ditos Dragões .
Instigou a um clima de insulto e violência. A maneira como comentou a tentativa de agressão que ocorrera contra mim, – e eu sou a ultima pessoa que gosta de ser vitima, mas também não tenho feitio para alimentar a impunidade reinante –, era em si mesmo um apelo a novas violências. Os sites da Internet, mostrando bem que o acesso a novas tecnologias não altera a cabeça dos Dragões pós-modernos, enchiam a rede de hate-mail, ecoando o Sr. Pinto da Costa e os amáveis Super Dragões, com o pedido para que da próxima vez fossem mais eficazes e agredissem mesmo.
Os media , como de costume, nos momentos mais críticos passam ao lado, ficam indiferentes e nefelibatas. Não conheço um único editorial de um jornal, todos tão sensíveis em criticar os menores deslizes dos políticos, que se pronunciasse contra estes discursos políticos grosseiros e violentos, e muito menos com o clima anormal de violência e agressividade que eles geravam na cidade. Admito que, a julgar por incidentes anteriores, haja, em particular nos jornais do Porto, puro e simples medo. Que Rio tivesse que andar com escolta policial e houvesse contra mim uma tentativa de agressão, foi muito mais motivo de chacota e minimização contra quem foi vitima do clima de violência instalado do que de criticas aos agressores. Nas habituais colunas de sobe e desce , onde os jornalistas ajustam as suas contas com os políticos, Rio e eu descíamos porque éramos atacados ... Muito melhor comportamento teve o Presidente da República e o Ministro da Administração Interna, que mostraram firmeza nos seus valores democráticos e tomaram a sério o que acontecia no Porto.


6. Apesar deste clima pouco saudável o PS e o PP colaram-se de imediato ao Sr. Pinto da Costa . O candidato do PP foi-lhe prestar vassalagem num almoço devidamente propagandeado e , em plena campanha eleitoral, deu "instruções" publicamente aos membros do PP com funções na CM do Porto para votarem contra Rui Rio, apesar de haver uma coligação PSD-PP . Com amigos destes não são precisos inimigos.
O PS fez mais – sustentou toda a sua campanha no Porto no discurso do dirigente do clube e moldou a sua actividade à esperança que estes incidentes fossem o milagre que esperavam para ganhar as eleições. Na bancada de honra dos jogos de futebol durante a campanha, um Alberto Martins aéreo e intimidado, era passeado por Orlando Gaspar ao lado do Sr. Pinto da Costa como se fossem membros de uma corte gravitando à volta do rei. Quando do jogo com o Panathinaikos , o Sr. Pinto da Costa anunciou aos quatro ventos que convidava todos os cabeças de lista no Porto para irem ver o jogo, exceptuando-me a mim, e todos obedientemente lá foram como se estas situações fossem a coisa mais normal do mundo.
Depois houve a manifestação dos Super Dragões que teve como orador principal o antigo Presidente socialista da Câmara Municipal do Porto Nuno Cardoso e na qual dirigentes do PS e do PP se passeavam de cachecol azul felizes e contentes. Um ou dois inocentes úteis do PSD faziam a mesma coisa . Os jornais do Porto diziam que “importantes personalidades” da cidade lá iriam estar e davam como exemplo Pedro Batista. Estamos conversados.
Na cidade foi distribuído amplamente um panfleto assinado pelo PS , com o símbolo e o logotipo do PS e no papel habitual do PS , e não anónimo como depois se veio a dizer , no qual se pedia ipsis verbis aos "portistas" para "castigarem" o PSD, os "inimigos do Futebol Clube do Porto", votando PS. Dois dias depois, ao ser confrontado com esse panfleto , o PS veio negar a sua autoria , não esquecendo no entanto de explicar que o panfleto era inútil até porque a “identificação” entre os adeptos do FC do Porto e o PS já estava feita, como dizia José Saraiva. Ao mesmo tempo nunca explicaram porque tinham uma completa indiferença em esclarecer quem teria usado indevidamente o seu símbolo, o seu papel e o seu logotipo . Que se saiba, numa questão tão grave como seria a falsificação de um comunicado partidário, o natural era que o PS fizesse uma queixa para determinar os autores da falsificação. Até hoje.
Estávamos pois em plena guerra civil.


A CAMPANHA ELEITORAL NO PORTO (2)

7. A situação no PSD no Porto também não era fácil. Havia divisões públicas entre as diferentes concelhias do PSD e a Distrital e o modo como tinham ocorrido as recentes eleições autárquicas e a posterior eleição do Presidente da Junta Metropolitana tinham deixado feridas que ainda estavam abertas.
Elas aprofundaram-se mais quando, numa fase inicial do conflito, no Porto, Luís Filipe Menezes contribuiu para isolar ainda mais Rui Rio, numa atitude mal recebida em todo o PSD. Muitos militantes podiam até estar convencidos que Rio estava a actuar mal, mas sabiam que era um “deles” que estava a ser atacado e reagiam instintivamente contra a campanha hostil que lhe era feita. Porém, muitos mais do que se poderia pensar, estavam com Rio por razões substantivas, porque concordavam com a sua defesa do interesse público da cidade face à herança da administração ruinosa do PS.
No entanto, passado este momento inicial, todos remaram para o mesmo lado, a começar por Luís Filipe Menezes que lutou por um bom resultado no Porto e tem mérito na sua obtenção. A verdade é que o comportamento da Distrital do Porto durante a campanha foi leal e dedicado e nunca nela, sob minha condução pessoal e com o apoio dos meus companheiros de lista, faltou a solidariedade activa a Rui Rio, que o momento exigia sem ambiguidades. Pena foi que um pequeno grupo, por irredutível oposição a Luís Filipe Menezes, se tivesse marginalizado da campanha e acabasse na noite das eleições num hotel, esquecendo-se que a solidariedade tem sempre dois lados. Quem arrostou com os momentos difíceis da campanha e estava a responder pelos resultados estava no local institucional próprio, a sede da Distrital, e era lá que deviam todos estar, Rui Rio incluído.

8. A campanha com esta ecologia prometia ser turbulenta. As pressões eram muitas e as tensões também, mas isso fazia com que as decisões que tinham que ser tomadas - e houve decisões - traduziam o que é a política, acima da mera gestão de interesses. Pode-se passar anos e anos sem momentos destes mas houve na campanha do Porto, essa paixão pelo combate político a sério, de princípios e valores pelo que se pensa ser o bem público sem cedência à facilidade.
No momento mais difícil da campanha, os dias imediatamente anteriores e posteriores à manifestação dos Super Dragões, o clima adensava-se. Contrariamente ao que tinha afirmado desde o inicio da campanha, que era minha convicção que o apelo clubistico no Porto não teria efeitos e, se os tivesse, seriam contraproducentes para quem o quisesse cavalgar, alguém na campanha nacional do PSD resolveu pôr nos jornais que havia “muita preocupação” com o que se estava a passar no Porto, dando assim uma manifestação de fraqueza cujos efeitos eram muito mais devastadores do que uma política de firmeza. Como é óbvio, aos adversários do PSD isso cheirou a tibieza e começaram a explorá-la.
Por isso, quando acompanhei Rui Rio no edifício da Câmara Municipal durante o período em que decorria a manifestação dos Super Dragões sabia que estávamos muito mais sozinhos do que devíamos estar e que quase actuávamos por conta própria, no limite de um risco e responsabilidade demasiado pesados. Houve quem lembrasse que se se perdesse a maioria absoluta ou mesmo as eleições a culpa era nossa.

9. Tendo visto a manifestação dos Super Dragões, com o PS e o PP à ilharga, com os meus próprios olhos, e sabendo muito bem o que era naquele local uma “grande” manifestação – estivera lá com Mário Soares em 1986 e a diferença entrava pelos olhos dentro – apercebia-me que não estavam mais de 1500 pessoas, número aliás da avaliação policial. Nos jornais do Porto, embandeirava-se em arco repetindo-se propagandisticamente o número de 5000 manifestantes dado pelos seus organizadores. Porém, quem a tinha organizado sabia muito bem que a “grande” manifestação contra Rio e o PSD falhara e isso explica o tom de acrescida violência e agressividade que se verificou nos dias imediatamente seguintes.
O clima só começou a mudar quando da volta de Durão Barroso, comigo, Menezes e Rio pelas ruas do Porto. Não porque acredite que manifestações demasiado protegidas pela militância partidária sejam em si só muito significativas em termos de votos, mas porque se quebrava a ideia que as ruas nos estavam vedadas e que as intimidações davam resultado. Na noite em que houve a tentativa de agressão, uma das primeiras invectivas que me foi dirigida em português vernáculo foi: "vamos f... o comício". A realização do comício ajudou assim a mostrar que a violência e a intimidação eram postas na ordem e isso acalmou os ânimos.

10. Os resultados do distrito do Porto são conhecidos. Embora haja uma vitória tangencial do PS por 1% , a verdade é que o PS sofreu importantes perdas seja qual for o ângulo porque se analise os números dos votos. Perdeu dois deputados, enquanto o PSD ganhou três. Perdeu milhares de votos e passou de 47,98 % para 41,24 %. O PSD teve uma subida de 32,67 % para 39,98 %. Se olharmos o distrito, o PSD ganhou em sítios tão emblemáticos como Felgueiras.
O PSD ganhou voto urbano de forma consolidada e subiu sempre muito e o PS desceu também muito e se houve um efeito do "futebol" ele foi puramente residual. Talvez nos custasse o 1 % que precisávamos para ultrapassar o PS, mas sabíamos também que ganhávamos votos pela nossa atitude em muitos outros sítios do país. Por isso nos soube tão bem, na noite de 17 de Março, ter vencido com a razão este combate político.


11. As lições desta campanha são importantes para o sistema político português. Nela se passou uma espécie de 2a volta das autárquicas no Porto, que Rui Rio também venceu. Nas legislativas de 2002 terminou finalmente a batalha autárquica do Porto, com um Presidente mais legitimado e reforçado, e com todos os poderes ligados ao establishment do PS, como o Sr. Pinto da Costa, fragilizados na sua tentativa de mandarem na cidade, por cima dos votos dos portuenses. Estão pois criadas agora condições para que se resolva a contento dos interesses legítimos do FC do Porto e da cidade, a questão do estádio.
Ao mesmo tempo, esta campanha foi um prenúncio das dificuldades que o governo do PSD vai encontrar se tiver a coragem de defrontar os interesses poderosos que cresceram encostados ao PS e à sua gestão ruinosa. Quando há despesismo, alguém ganha e muita gente ganhou excessivamente e por isso vai-se dar mal com o corte nas despesas e o rigor das contas.
Mas a campanha mostrou também que é a firmeza, mesmo nos momentos que parecem mais difíceis, a única atitude que dá frutos. A grande operação "futebolística" do Porto falhou por isso mesmo.