7.11.04

O TORRÂOZINHO DE AÇUCAR (Novembro 2000)

No dia em que o governo , num amável movimento consensual , daqueles que passam na televisão e o país gosta , ofereceu às suas crianças uma coisa chamada o “kit patriótico” , (assim mesmo em inglês , a língua do imperialismo , a língua da “pérfida Albion” , dito assim por políticos que recitam todas as manhãs ao pequeno almoço que "a sua pátria é a língua portuguesa “ ) , decidi reler um dos mais magníficos textos escritos em português sobre a pátria . Foi o "kit patriótico" que ofereci a mim mesmo.
É um texto de um estrangeirado , cosmopolita , acusado de não ser um bom português por um oficiante do patriotismo de quatro costados . O estrangeirado era Eça e o patriota Pinheiro Chagas e vem nas Notas Contemporâneas. O texto é uma execução em publico do “brigadeiro Chagas” como poucas existem em qualquer língua, um fabuloso texto irónico , em que cada palavra é afiada como uma agulha e cortante como uma navalha andaluza . É também um dos textos de mais fundo patriotismo , natural , “burguês” como escreve Eça , que se respira como gosto por um pais melhor e funda compreensão das razões porque ele é o que é .
Dei por mim a pensar , concerteza pela moleza dos sentidos que estas coisas da pátria trazem, que triste que era o facto das criancinhas que receberam o "kit patriótico" , nunca irem poder ler esta maravilha que a língua da sua pátria lhes pode dar , porque pura e simplesmente não percebem nada do que lá está escrito . Quem diz as criancinhas futurandas, diz os estudantes do presente e mesmo muitas das criancinhas do próximo passado , que são hoje os professores das que recebem o "kit" .
Vamos ao texto . Intitulado “Brasil e Portugal” e sob forma de um carta a Pinheiro Chagas , foi publicado em 1880 , há 120 anos , na Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro . Não era um texto erudito , mas uma crónica jornalística , antepassado nobre daquilo que nesta página se escreve , ponderadas as enormes diferenças de qualidade e mérito. Nas sua meia dúzia de páginas, fala-se de Sansão , do martírio de S. Estêvão , do padre Manuel de Macedo e do poeta Bocage , do Parnaso , da campanha do Rossilhão , de Arzila , dos carneiros de Panurgo , ou mais exactamente da “fila balante dos carneiros de Panurgo “, de Carlos Magno , o que era imperador , de Michelet, de Ajax , de Cochim e Cananor , das Molucas , da Monarquia de Frei Bernardo de Brito , das batalhas de Sadova e Sédan, , dos “paxás de Constantinopla” , dos “rajás da India” , dos “mandarins de Pequim” , do “bei de Tunis” , de Lançarote do Lago , de Galaad, do Santo Graal , de Belzebu , e das suas incarnaçoes em Darwin , Huxley e Zola , do exilado Ovidio e dos “brandos epigramas de Higino”. Para além disso há as “cãs” , a “verve fumegante” , as “operações cabalísticas” , o “minuete” , e o “in-fólio” , e muito mais que , sem dicionário , é hoje o mesmo que escrever chinês .
Dirão os próceres da nossa educação, para que é preciso tudo isto , palha para os dias de hoje , erudição sem sentido prático. Para que é preciso saber quem é o “bei de Tunis” ? Não é um peça de cutelaria, ou uma aldeia do Club Mediterranée ? E os “rajás da Indía “ sáo sorvetes picantes ? Estão a ver como eu sei ! E isso dos “paxás” náo sáo aqueles preguiçosos do Big Brother reclinados nos sofás ( ia escrever otomanas mas parei a tempo ... ) . E o “in-folio” vem no Kamasutra náo é ? Os “mandarins “ , ah , isso sei o que é , é um fruto que se come nos restaurantes chineses , não é ? Estou tão certo que aposto os 200 contos , a ver se sou milionário...
Lamento . É preciso saber muitas destas coisas , e muitas mais ainda , entre outras razóes , para ler Eça . Bem vistas as coisas , a maioria das referencias de Eça , que hoje parecem alta cultura , eram escolares e comuns na época . Circulavam nos jornais , apareciam nos discursos parlamentares , e serviam para afiar a caneta , como Eça fez sem ter dúvidas se os seus leitores o percebiam . Tinham como fonte a Bíblia , o catecismo , as gravuras de Epinal ( uma espécie de calendários populares que se colocavam no equivalente às oficinas de mecânica , só que em vez de mulheres nuas tinham santos e guerreiros ) , apareciam na primeira página dos tablóides da época como o Petit Journal , vinham das referencias clássicas que se aprendiam no latim da escola , entre as fábulas de Esopo e a Guerra da Gália , vinham da literatice dos salões , dos almanaques , da imprensa , e da memória recente de guerras e de batalhas . Pode-se descontar esta ultima parte , substituindo Sédan por Estalinegrado , que o problema subsiste intacto , porque também não estou a ver muito quem nas escolas saiba colocar a terra no mapa da Rússia .
Rebuscando na minha memória escolar , onde eu aprendi muitas destas coisas , também não encontro nenhuma razão para ter medo que me acusem de pedante por achar normal saber o que era o Parnaso . Na Religião e Moral e no catecismo aprendi os rudimentos da Bíblia , e lembro-me de ter ganho uma sabatina nas aulas porque fiz uma pergunta sobre Nabocodonosor . A condiçáo posta pelo padre era que só se podia perguntar sobre nomes que se soubessem dizer e eu treinei. Quanto ao bei de Tunis acho que foi numa história de piratas e reféns que vinha no Cavaleiro Andante , de onde aliás , em conjunto com Julio Verne , vieram os rajas , paxás , cossacos e mandarins. Mesmo Xenofonte encontrei-o num magnifico livro de leituras oficial do ensino técnico , onde o meu pai era professor , que tinha uma banda desenhada com a história da retirada dos dez mil . Nada de extravagante e podia repetir mil exemplos , que concerteza muita gente também poderá repetir . Até agora , a partir de agora não sei .
Não vale a pena recitarem-me todas as vantagens do ensino de massas , dizerem-me que esta ignorância se nota mais porque hoje o "povo" aparece na televisão e no tempo do Eça os mesmos que agora fazem a escolaridade obrigatória eram socialmente invisíveis a não ser quando se revoltavam , eram analfabetos e emigravam descalços nos porões dos barcos para o Brasil . Mas não é esse o problema , nem aí me enredam . A questão está em saber se para ilusoriamente se dar a todos aquilo que pouco mais é do que uma versão moderna do analfabetismo , - convém lembrar que os padrões mínimos entretanto subiram - , se destruiu o equivalente à elite burguesa e interessada para que Eça escrevia . Se , somado e subtraído tudo , não se está pior com menos gente em termos absolutos e percentuais a ter um mínimo de cultura geral .
Não é de erudição que falo , mas da mais geral das culturas , porque há algo de terrivelmente errado em que cada vez menos gente tenha a capacidade para ler este texto escorreito , divertido , sério , escrito num português maravilhoso . E quem diz este , diz muitos . E continuarmos felizes como o "brigadeiro Chagas" , com as grandezas da história pátria , quer na sua versão salazarista , quer do 25 de Abril , e a minar o futuro dela , com a nossa falta de rigor , disciplina , gosto , atenção e trabalho e dizendo felizes como o "brigadeiro" : "Portugal é pequeno , mas é um torrãozinho de açúcar " .

1 Comments:

Blogger António Viriato said...

Muito a propósito vem este texto com a evocação de uma magnífica peça literária do nosso distinto Eça, mestre de mestres, na escrita e no pensamento, para quem ainda hoje o sabe apreciar. Cada vez mais o apreciaremos com saudade, com tristeza mesmo, porque vamos notando a enorme, a incomensurável distância que já dele nos separa, no desamor com que tratamos a Língua, que ele excelsamente cultivava, no desinteresse com que tratamos as disciplinas que lhe permitiam discretear com elegância e profundidade os variados temas que escolhia para as suas reflexões, crónicas de imprensa quotidiana que fossem, nelas sempre brilhava o seu aguçado génio de escritor e o toque do esteta apurado que ele sempre foi.

Muitos desdenhosamente lhes chamavam a ele e a alguns seus amigos dilectos, vencidos da vida, por não terem feito vingar os ideais por que se bateram na mocidade e se haverem, aparentemente, conformado com a córnea mediocridade reinante, usufruindo, como bons epicuristas, os gozos acessíveis da vida. A esses Eça respondia com altivez : - «Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirava.»

É deveras impressionante a densidade cultural do texto queiroziano aqui evocado, mas, até há poucas décadas, com maior ou menor familiaridade, ele podia ser decifrado, entendido e apreciado pelas gerações de estudantes que entravam na Universidade. Todas aquelas referências constituíam o substrato cultural do jovem universitário, porque o Liceu, o Ensino Secundário, lho facultavam. Compare-se com a actual situação e veja-se se progredimos ou retrocedemos. Não falemos de excepções, mas de médias gerais.

E, se isto é assim nas disciplinas humanísticas, que dizer então da situação nas científicas ?

Começa a ser preocupante o balanço que se faz destes últimos trinta anos ...

É tempo de, sem complexos nem fantasmas, encararmos a realidade, imputando responsabilidades a quem as devemos imputar, incluindo a nós próprios, que para isto algo contribuímos também, com certeza.

E como reverter a situação ?

11:09 da tarde  

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