7.11.04

O ASSALTO AO INDIVÍDUO (Novembro 2000)

Há na discussão latente sobre os diferentes sigilos profissionais, dos médicos e advogados, e em muitos aspectos das leis fiscais que o governo e a esquerda querem aprovar, um aspecto particularmente malsão: o do contínuo reforço dos poderes do Estado para interferir na esfera privada dos cidadãos. Os motivos invocados são normalmente os melhores – a luta contra o tráfego de droga, o branqueamento de dinheiro, os interesses de terceiros ameaçados de ser infectados por doenças como a SIDA, a fraude fiscal – mas eu serei o último a ser convencido pela bondade das intenções, em relação às perversões que delas resultam. Em particular num país como Portugal, onde não há uma cultura cívica da defesa dos direitos e a administração se comporta com arrogância face ao cidadão, e é burocrática e prepotente.
O que me preocupa é a flacidez da resposta da sociedade a uma contínua erosão das liberdades civis e dos direitos individuais, a um assalto ao individualismo, numa sociedade em que estes valores nunca foram muito fortes. Anuncia-se que em matéria fiscal é suposto inverter-se o ónus da prova, é o contribuinte que tem que provar a origem e a legalidade dos seus rendimentos, não o Estado que tem que provar que ele mente nas suas declarações. Pode ser popular, pode ser eficaz em termos fiscais, mas é particularmente perigoso como generalização de uma atitude no qual o Estado se atribui o poder de dizer por meios administrativos que alguém é culpado. Isto, insisto, num país em que os direitos do cidadão face à administração são escassos, não são respeitados e esta tem uma mentalidade de omnipotência e desrespeito, e em que instrumentos de mediação, como os tribunais, não funcionam nem bem nem a tempo.
O sigilo dos médicos é outro exemplo. Quando é que começa e quando é que acaba, quando é que é legítimo obrigar os médicos a denunciar os doentes que têm SIDA e podem infectar outros, em nome de um interesse colectivo? À primeira vista parece razoável que isso se passe, mas basta que uma epidemia assuma maiores dimensões, reais ou imaginadas, para que não se esteja longe dos sidatórios que Fidel de Castro queria fazer em Cuba.
O mesmo acontece, com a facilidade com que um boato entra na informação corrente, nem que seja como "informação" sobre o boato. Numa altura em que os telejornais televisivos são cada vez menos informação, mas sim uma mistura de entretimento e publicidade para outros programas da estação que são tratados por jornalistas, como sendo matéria informativa do mesmo tipo da que se encontra no resto das notícias, as condições para a violação da privacidade são cada vez maiores. Será que a GNR e a PSP que se prestam a andar com jornalistas à procura de crimes em directo, informam aos que são interpelados por qualquer motivo - inocentes segundo a lei - que ninguém pode nessas ocasiões ser filmado sem autorização, ou está-se a criar o hábito de ser defrontado ao mesmo tempo pela polícia e pelas câmaras, num único acto de autoridade?
A pressão sobre a privacidade, a liberdade civil e a individualidade, reduz estes valores a direitos dos "mais ricos", e dos "mais fortes". O segredo, a descrição, a reserva, a acantonam-se cada vez mais junto do poder e reforçam esse poder, diminuindo a democracia. Não é segredo para ninguém que os verdadeiramente ricos não se expõem, e os verdadeiramente poderosos não têm as suas decisões escrutinadas pela "transparência". A forma como se tomam as grandes decisões em Portugal não são conhecidas da opinião pública, que se concentra nos políticos e em particular nos deputados, cujo poder é cada vez menor, num efeito de ilusão em que muitos estão interessados e em que muitos ingenuamente colaboram.
O comportamento da sociedade portuguesa faz lembrar o Big Brother e não é por acaso. O Big Brother é uma experiência social com cobaias humanas, "editada" para efeitos de entretimento, ou seja, algo que é proibido aos cientistas sociais fazerem. Mas isso não significa que não se possa aprender com o Big Brother, e muito. E uma das coisas que se aprende com clareza é que os que estão presos num enquadramento totalitário,– a casa é uma prisão, ou um asilo psiquiátrico, com o seu sistema de regras que não vemos na televisão, como seja parar para mudar as pilhas dos microfones de 5 em 5 horas –, tendem a punir a individualidade. Os que estão fora, a "audiência", tende a premiar a vítima, ou seja, actua pelo politicamente correcto. Estas atitudes não são contraditórias, são complementares.
As duas lógicas são um retrato social dos nossos dias portugueses: o governo, que se sente cada vez mais como os presos do Big Brother, responde reforçando as regras da prisão, e passando por cima dos direitos em nome da publicidade, e da recolha de dinheiro para as despesas. Com esse dinheiro, dá aos portugueses o equivalente à junk food que se come na casa do Big Brother. A audiência, nos seus fluxos de simpatia e antipatia é condicionada pela inveja e pelo ressentimento social. E quem tem poder não se vê, anda atrás dos espelhos vestido de negro para que o seu vago reflexo nas paredes não se perceba. Eles transportam, escondido por detrás das paredes, o olho colectivo dos nossos dias: uma câmara de televisão. Atrás dos vidros não há transparência porque há poder. O resultado é o assalto ao indivíduo, à individualidade, valores bem pouco apreciados em Portugal.