6.11.04

LAGARTIXA E O JACARÉ 10 (Outubro 2004)

MARCELO, SÓCRATES, SANTANA E GUTERRES


Porque razão o governo foi muito mais sensível ás críticas de Marcelo do que às de Sócrates? Porque é que as críticas de hoje de Sócrates não têm o mesmo efeito das de ontem de Marcelo? Porque razão foi estratégico para o governo obter, como obteve, o objectivo de o calar perante o seu milhão de audiência, mesmo com todos os custos inerentes, numa operação com saldo positivo para o governo? Porque razão as críticas de Sócrates são “moles”, e atiram ao lado (como a história da “legitimidade” do governo), e as de Marcelo põem o governo possesso e aos berros?
A primeira e óbvia razão é que as críticas que vêm de perto, do Mesmo, afectam mais do que as do Outro. As do Outro são do Outro, que se presume fazer críticas. Este é um aspecto importante, mas não o mais decisivo. O que tornava as críticas de Marcelo mais incomodas para o governo é que elas eram o reverso dos elogios de antes a Barroso. Elas vinham da memória do que foi o PSD de antes de Junho de 2004, e eram coerentes com o discurso político que o partido e muitos portugueses tinham durante o governo de Barroso, que Marcelo apoiava em dois ou três aspectos estratégicos, os mais importantes, como a política da “obsessão do défice”. (Já em política externa Marcelo estava mais próximo de Lopes do que de Barroso, por isso o que dizia era inócuo.)
O discurso sobre o défice não era uma conversa ocasional, nem Manuela Ferreira Leite uma ministra de transição. Pensava-se. O discurso do défice, a celebre “obsessão”, era a principal fonte de legitimação política de Barroso, que ganhou as eleições em grande parte porque o PS as perdeu com o descalabro das contas públicas. A ideia de rigor e austeridade como política a médio prazo, como política estrutural que iria posteriormente conduzir, mais do que conduzir, obrigar, à reforma do Estado tinha-se interiorizado em todos os sectores da vida pública. Mais do que isso: os portugueses compreendiam essa política e, mesmo contra o seu bolso, percebiam a sua necessidade. Este era o aspecto mais sólido da credibilidade do PSD e do seu governo.
Não é pois por acaso que a fúria do Primeiro-ministro, transmitida pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares, teve como pretexto uma comparação com o governo de Guterres a propósito da “ponte”, ou seja de uma manifestação de laxismo típica do passado que sempre se tinha criticado. Eu percebo a fúria: é que o governo com que Santana Lopes pode e deve ser comparado é mesmo o de Guterres, e isto estoura com a credibilidade e legitimação de um governo PSD. O ambiente é o mesmo, o facilitismo e as promessas são as mesmas, o fim da “obsessão pelo défice” aponta para o mesmo despesismo, a representação dos interesses no governo é idêntica, o desejo do controlo da comunicação social é o mesmo, a ausência de reformas (salvam-se as que foram herdadas na saúde e na habitação do governo anterior) é a mesma, a vontade de governar para a popularidade é a mesma. O maior crime é mostrar que o rei vai nu, que já estamos outra vez em festa conjuntural e não em dificuldades estruturais.
Como Sócrates não pode dizer isto, e fica encravado com um orçamento que não pode criticar porque segue a lógica do seu mentor Guterres, os que o dizem (Marcelo, em primeiro lugar, e à sua dimensão, este vosso autor) são os que fazem mais mossa e o alvo a abater. Com o PS pode o governo bem.

A PASTA DE DENTES QUE REGRESSA AO TUBO

A frase mais significativa da intervenção do Primeiro-ministro no tempo de antena foi: "Não dêem importância ao ruído que vai à nossa volta". Este é talvez o mais comum lamento de qualquer político, todos o fazem, todos o fizeram e todos o farão. É também o mais inútil de todos os lamentos, porque o “ruído” é o mundo exterior, é aquilo que os físicos designam por entropia. Sempre disse que os políticos deviam ter no seu gabinete, colocada na parede, uma frase de Max Weber que, parafraseando, diz “todos os políticos devem saber que a maioria das suas acções tem os efeitos exactamente contrários ao pretendido”. É isto o ruído, a vida lá fora.
Sem ruído, como o Primeiro-ministro deseja, as leis da física não se aplicariam dentro das fronteiras de Portugal, e a excepção, ou, como diriam os matemáticos, a “singularidade”, teria o epicentro no gabinete do primeiro-ministro, o local onde, como é obvio , não haveria qualquer ruído. Também seria o sítio onde a pasta de dentes regressa mais facilmente ao tubo do que sai dele, o calor volta aos caloríferos para aquecer de novo, as moléculas de perfume voltam ao frasco obedientes, as meninas e os rapazes regressam rapidamente do mundo do Balzac à adolescência e à infância. Ninguém cresce, ninguém se gasta, ninguém precisa de dormir a sesta. Não há ruído, só informação e dedicação.
A malta ruidosa do Monty Python devia gostar de ver o espectáculo de tal gabinete. Melhor do que o Ministério do “silly walking”.


O REINO DA SELVAJARIA

O país ciclicamente mostra uma parte de si mesmo, o reino da selvajaria, o atraso miserável dos nossos costumes, com a colaboração activa das melhores forças vivas da nação, com destaque para a comunicação social. Sim. O futebol, esse manancial de bons costumes e educação cívica revelou-se em toda a pujança, no seu esplendor de murros e pontapés, insultos e nomes chamados à mãe, à mulher e à irmã de qualquer dirigente desportivo. O megafone gigantesco das televisões, rádios e jornais desportivos, tablóides e de referência, mergulhou no brilho e na elegância do momento, para recolher o magnifico exemplo de virtudes cívicas da “bola”.
Nos outros países também é assim, dizem os desculpadores do costume. Quero lá saber, eu não vivo nos “outros países”, vivo no meu, onde a selvajaria do futebol vai muito para além dos imbecis amestrados das claques e tem dignidade de estado. Nunca a voz me doa a dizer isto.

MAR CÃO

A morte no mar é uma morte antiga, uma morte ancestral, uma morte que mexe na nossa memória de povo que já foi de marinheiros e pescadores. Nas vilas e cidades da costa, onde subsistem as últimas comunidades de pescadores, ela lá vem, todos os anos, com o seu gadanho, ceifar uns homens e uns miúdos que ganham a vida sempre no limite do perigo. Lembrar-lhes do poder do mar, da frágil fronteira que cada barco tem com um fundo escuro e verde e branco e azul, belo de fora, belo de longe, terrível de perto. Mata os homens e deixa as mulheres de negro, com raiva ao mar. Mar cão.

3 Comments:

Blogger António Viriato said...

Este 10º texto da série A Lagartixa e o Jacaré está particularmente bem elaborado, tão bem, que me rouba a afoiteza de sobre ele tecer comentários.

Contudo, fazendo um esforço para ultrapassar a inibição, aduzirei as seguintes considerações :

1- Sócrates parece estar a perder fôlego, apesar de o PS continuar a subir nas sondagens, quase só por demérito do Governo, da maneira que os causídicos designam por enriquecimento sem causa. É o PS premiado quase só pela mera existência, por estar presente, mesmo sem fazer nada, nem apresentar propostas credíveis, inovadoras ou motivadoras do eleitorado. Confessou Sócrates, agora, piamente, que nunca tinha pensado que as concentrações de interesses de Empresas, supostamente sociedades anónimas, mas de quotas douradas estatais, viessem a criar situações de promiscuidade e tráfego político, como a que presentemente se verifica, com as consequências já conhecidas, na TVI, anulando Marcelo e, no DN, expurgando F. Lima. Promete Sócrates nunca mais repetir tamanhas malfeitorias no futuro e, nós, piamente também, acreditamos.

2- A contradição da enunciação de desejos impossíveis de se realizarem, por parte do nosso Primeiro-Ministro, ao pedir que ignoremos o ruído que envolve os actos do Governo, está bem observada, ainda que a analogia com o conceito físico de Entropia não se mostre adequada, tanto mais que a política hoje, em Portugal, se desenvolve num meio muito distante de poder ser considerado um sistema isolado, se alguma vez o foi.

3- O futebol, a par do abundante lixo televisivo, tornou-se hoje no grande factor de alienação das sociedades modernas, sobretudo em Portugal, onde o fenómeno atingiu dimensões aterradoras, pela permanente ocupação dos espaços noticiosos, tornando perversa e trágica a comparação com o que se imputava ao regime no tempo de Salazar-Caetano. Como aqui a Democracia ultrapassou a Ditadura em alienação estonteante, com um folclore boçal e agressivo nunca antes visto! E, dizer isto, não é desculpar a Ditadura, mas responsabilizar a Democracia, confrontando-a com a sua acção inesperadamente embrutecedora. Com a agravante de agora o futebol atrair camadas, supostamente mais alfabetizadas, até cultas, monopolizando-lhes o pensamento, que, assim, não encontra aplicação mais nobilitante.

4- Por último, o que no texto vai dito do mar encerra uma grande verdade e aí está bem espelhada a terrível tragédia daqueles que para ganharem a vida a arriscam diariamente numa confrontação desigual, nela consumindo toda a sua bravura e energia, por vezes de forma fatal, derradeira.

Portugal, que tanto deve da sua notoriedade histórica ao mar, está quase moribundo no sector, sem companhias de navegação, com portos mal geridos, com uma frota pesqueira diminuída, com recursos piscícolas ameaçados, num contexto de desalento, verdadeiramente acabrunhante, se pensarmos no que sucedeu com a Agricultura e no que vai acontecendo com a desindustrialização do país.

Ideias inovadoras, inteligência, imaginação e coragem para as promover, competência para as executar, eis o que nos falta no presente. E não vale culpar os antecedentes : os da Democracia, da Ditadura, da 1ª República ou da Monarquia, cujos erros já não têm emenda, nem penalização possível.

Seremos capazes de uma efectiva regeneração ?

4:12 da manhã  
Blogger NuMa said...

Porque também gosta, eis uma passagem da serie Sim, senhor ministro que se adequa ao que se tem passado ultimamente:

Sir Humphrey: "Well, we can always try to persuade them [the BBC] to withdraw programs voluntarily, once they realize that transmission is not in the public interest."
Jim Hacker: "Well, it is not in my interest. And I represent the public, so it is not in the public interest."
Sir Humphrey: "That's a novel argument. We haven't tried that on them before."

6:32 da tarde  
Blogger Arnaldo Icaro said...

você é uma merdas

8:21 da tarde  

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