19.11.04

OS QUE MANDAM E OS QUE OBEDECEM (Janeiro 2003)

Há que clarificar para o comum dos portugueses as origens e as razões do actual debate institucional na UE , e do significado de propostas como as feitas pela França e Alemanha nas passadas semanas. Bem sei que isto é como falar da estrela Siriús, paradigma da distância, mas convém perceber-se que o que vai ser decidido nestas semanas pode vir a ser imposto aos portugueses.

Era necessário mudar o quadro institucional da UE devido ao alargamento ? À primeira vista tudo parecia indicar que sim : passando de 15 para 25 membros a UE poderia ter problemas de "eficácia" no seu funcionamento . Este foi o argumento principal que serviu de pretexto para o lançamento de uma série de propostas sobre a arquitectura institucional da Europa , que tiveram um período áureo quando todos os primeiros ministros europeus iam a uma universidade propor um grande plano para a Europa do futuro . Depois veio a Cimeira de Nice e o primeiro banho de água fria sobre esses grandes planos - juntos, numa reunião decisiva, os chefes de governo deixaram todos os planos no vestiário das universidades e passaram três noites a discutir votos , ou melhor , quem tem mais votos , porque é que eu tenho menos que tu , se ele tem mais votos eu também tenho que ter, etc . E, subitamente, todos os argumentos de "eficácia" deram origem a um sistema medido ao milímetro em função dos interesses nacionais respectivos e muito mais complicado do que era antes. No entanto, sobrava uma enorme má consciência - a maioria dos membros do Conselho sabia a enorme diferença que havia entre a barganha das posições de Nice e as proclamações retóricas do ano anterior e resolveram então criar uma organização , ou melhor um "processo" , que contribuísse para um novo tratado da UE fomentando "um grande debate europeu" . Essa organização, ao modelo do modo como fora preparada a Carta dos Direitos Fundamentais , seria uma Convenção agrupando deputados nacionais , eurodeputados e representantes dos governos .

Voltemos atrás, antes de ir para a Convenção outra vez . O argumento de "eficácia" em política é sempre suspeito e neste caso muito mais . De facto ele já fora utilizado para combater o alargamento em que Espanha , Portugal e Grécia acederam à CEE . No entanto , a experiência mostrou que quinze países , cada um tendo em potência e em plena igualdade o direito de veto , não fora impeditivo da construção da União , nem mesmo dos passos mais decisivos que esta dera desde os anos 50-60 , o tratado de Maastricht e a criação da moeda única . Se quisermos , a aparente ineficácia de uma instituição complicada revelava-se particularmente eficaz para conseguir uma coisa que nenhuma engenharia institucional daria : o sentimento de pertença em igualdade de circunstâncias e poderes virtuais a uma comunidade feita de interesse comum.

Foi isto que começou a ser rompido em Nice , quando se abriu a porta a coligações maioritárias e minoritárias de países e votos , formando blocos uns contra os outros , ou seja passará a haver vencedores e vencidos e é só esperar pelos inevitáveis efeitos dissolventes desse processo .Na verdade , a motivação escondida das noitadas de Nice , como aliás de muita retórica institucional , é um prosaico receio do alargamento , um medo que os países do alargamento , alguns dos quais todos sabem não estar preparados para aceder à União , viessem a alterar os esquemas de poder estabelecidos ou a exigir condições de paridade que os quinze não estão dispostos a dar , em particular no âmbito da agricultura e da livre circulação de pessoas .

Há no entanto outra razão para não aceitarmos o argumento da "eficácia" Na verdade , há problemas de "eficácia" na UE só que com uma raiz bem diversa das pretensas dificuldades institucionais de funcionar a vinte cinco. Eles radicam na continuada falta de vontade política dos governos para defrontar questões como a da política agrícola comum . Ora isso nenhuma reforma institucional vai resolver , porque envolve interesses nacionais de grandes estados que não estão dispostos a por em causa as suas clientelas eleitorais , como é o caso da França e da sua dependência política de uma agricultura fortemente subsidiada . O que aconteceu na ultima década , num período em que campeou uma geração de dirigentes europeus , cheios de belas palavras mas incapazes de actuar e de resolver os problemas , é que em directa proporção à sua demagogia europeísta , se reforçar os interesses nacionais dos grandes países em detrimento do impulso europeu . Foi nesta década também que a Comissão se enfraqueceu e o Conselho se reforçou. Exactamente ao contrário das intenções iniciais dos fundadores da Europa.

Voltemos agora à Convenção . A Convenção é também um resultado de um processo institucional que prima pela confusão e pela indefinição de poderes e responsabilidades . Em primeiro lugar , em bom rigor , ela não deveria existir dado que a instituição naturalmente vocacionada para cumprir o papel que foi atribuído à Convenção , era o Parlamento Europeu . Eleito directamente por todos os cidadãos europeus , ele tinha uma legitimidade virtual certamente muito maior do que um ressamblement de deputados nacionais escolhidos por quotas que deixavam de fora correntes políticas importantes , funcionários superiores dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros , e algumas personalidades avulsas escolhidas pelos governos . Ninguém verdadeiramente responde pelo seu mandato "convencional " e por isso também ninguém se sente aí representado . Quem é que decide quais são as posições dos membros portugueses da Convenção ? Ninguém , ou melhor , eles próprios em função das opiniões pessoais de cada um .

O problema da legitimidade política democrática da Convenção é real , e isso revela-se na sua incapacidade de cumprir uma parte do seu mandato : promover um grande debate europeu sobre a futuro da União . A meio dos trabalhos da Convenção já se percebeu que não há debate nenhum , a não ser o que já havia e que envolve uma pequena elite , e toda uma série de grupos de pressão que vivem à volta do establishment europeu e que existem em muitos casos à volta dos subsídios e dos empregos europeus . Aliás era natural que assim acontecesse porque nunca há debates políticos que não sejam associados a escolher políticas e ao voto, e se há coisa que os governos e a Convenção não querem é que haja referendos nem reforço dos poderes dos parlamentos nacionais sobre as grandes questões europeias.

Acresce que ninguém sabe qual o âmbito e valor dos trabalhos da Convenção , que agrupa no seu seio os mais convictos federalistas europeus que querem uma Constituição e uns Estados Unidos da Europa , com representantes dos governos que querem o que os seus primeiros-ministros vão acabar por decidir . E é por isso que iniciativas como a dos governos francês e alemão revelam toda a perversidade deste processo - havendo uma Convenção em curso no qual estão representados , aparecem a fazer propostas públicas que especificamente são do âmbito da Convenção , colocando-a ou sobre o seu diktat ou remetendo-a para uma penosa irrelevância . Os homens e mulheres da Convenção lá estão diligentemente a arquitectar uma Constituição europeia e vem os senhores Chirac e Schroeder dizer-lhes como é que vai ficar o resultado final . Porque , ninguém realisticamente imagina o "motor franco-alemão" a fazer estas propostas públicas para depois a Convenção vir a decidir-se por uma outra solução distinta e contraditória .
Infelizmente este estado de coisas - confusão institucional, falta de vontade política, adiamento dos problemas reais e permanente criação de falsos problemas - soma-se a outras tendências perigosas para o futuro do projecto europeu, no qual avulta uma crescente tentativa de alinhar a Europa com uma política terceiro mundista anti-americana.

Para contrariar estas tendências, o melhor seria permanecer fiel às lições dos construtores da Europa: reforçar a legitimidade democrática dos processos, usar a prudência e progredir por "pequenos passos". Discutir muito na base do enquadramento institucional presente, explorar as suas virtualidades e combater o perigo que a proposta franco-alemã enuncia: que haja uma Europa em que uns mandam e outros obedecem. Essa Europa não é de Schuman, Jean Monnet, e Gasperi.