18.4.05

MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (Abril 2005)

(1)

1. O PSD tem dentro de si vários “partidos” num só partido. O PS também, mas em menor quantidade, por isso é que o PSD é “o partido mais português de Portugal”, velha classificação que está longe de ser apenas propagandística, mas é também descritiva. Nos últimos dez anos, o PSD tem vindo a perder os “Portugais” que cabiam dentro dele. Mais: tem vindo a perder os “Portugais” mais dinâmicos socialmente, aquilo a que tenho chamado o equivalente moderno dos self made man originais, sem os quais qualquer programa de reformas deixa de ter base partidária e eleitoral de apoio. E isso reflecte-se de uma forma evidente no enquistamento do partido, na degradação do seu património de quadros, na cada vez menor influência social, muito para além das suas vicissitudes eleitorais, talvez até o último indicador que escolheria para retratar tal processo. O problema do PSD é começar a ter só um Portugal ou dois dentro de si e a ser mais um partido do Portugal do passado do que do futuro. Este dilema não será resolvido no Congresso, mas é o dilema que pesará em cima de qualquer liderança que não queira ser transitória, ou pior ainda, ajudar a aprofundar o divórcio entre o PSD e a sociedade portuguesa.

2. Como todos os partidos democráticos o PSD foi construído depois do 25 de Abril por dois factores: um, a resistência ao PCP e ao PREC; outro, no estado e a partir do estado. O primeiro mecanismo de construção, - partidos “feitos” pela resistência ao avanço comunista e radical de 1974-5 - , foi comum ao PSD e ao PS, que também praticamente não existia antes do 25 de Abril. Ambos são o que são por essa característica genética da fundação da nossa democracia, 48 anos de Estado Novo e dois de PREC, que marcou o equilíbrio esquerda-direita para muitos e bons anos. Depois apareceu o “centro” que os ideológos da “esquerda” e da “direita” dizem que não existe, mas, para infelicidade eleitoral de ambos, existe mesmo e “manda”.
E “manda” porque as sociedades ocidentais são suficientemente complexas para não caber nas dicotomias ideológicas de um mundo apenas construído pela combinação da herança da revolução francesa com a revolução industrial. Hoje há outras “revoluções” em curso que viraram a página, entre as quais, a gerada pela “consciência do fim” termo-nuclear, que deve ser repensada no terrorismo apocalíptico, e a existência de novas tecnologias perturbadoras do político, entre as quais a engenharia genética, e aquilo que se chama, um pouco impropriamente, a “revolução mediática”. Em Portugal, uma vez estabilizada a democracia, entramos no mesmo curso político das outras democracias, geramos um “centro” que vota solto, ou menos preso, e que, mais do votar, “comanda” o voto.

3. O segundo factor, - a construção dos partidos pelo estado - , é o mais fácil de descrever: para combater o PCP, o único partido que tinha emergido da ditadura com um aparelho político nacional e que mostrou, desde os primeiros dias depois do 25 de Abril, ter intenções hegemónicas, os partidos democráticos usaram o estado para crescer e se consolidar. Fizeram-no através do exercício do poder político, partidarizando as estruturas da nova democracia para poderem colocar lá os “seus” e não os de Salazar ou do PCP, atribuindo-se privilégios de controlo do espaço público, e garantindo o monopólio da acção política aos partidos de eleitores em detrimento dos partidos de militantes.
Estes mecanismos de controlo, – de que são exemplos os impedimentos a listas de independentes para a Assembleia da República, ou aos eleitores de escolherem a ordem de nomes dentro das listas apresentadas –, já tiveram o seu tempo e hoje devem ser repensados de modo a permitir maior papel dos eleitores nas formas da sua representação. Muitos outros mecanismos que tinham uma função “construtiva” no iniciar da democracia, tem hoje efeitos perversos e geram uma crise da representação.

4. O PSD de Sá Carneiro e dos outros fundadores assentou na sólida formação política que todos eles tinham, com base na doutrina social da Igreja, no conhecimento da social-democracia europeia ao modo alemão e nórdico, e na experiência portuguesa da “ala liberal” do marcelismo. Tinham preocupações com os direitos cívicos, com a pobreza e o atraso da sociedade portuguesa, olhavam para a Europa comunitária como um modelo, e eram “desenvolvimentistas”. Para cumprirem o seu programa precisavam de acabar com as imperfeições democráticas que sobravam do PREC, tendo tido sucesso mais rápido no plano político, e mais lento no plano económico, porque o PS bloqueou, muito mais do que devia, a revisão da parte económica da Constituição. Este processo teve como momentos políticos principais depois de 1976, a vitória da AD, a primeira alternância real do poder democrático; a vitória de Soares na primeira volta das eleições de 1985, contra os restos do basismo de Pintasilgo e o plano comunista de “igualizar”, fragilizando o PS, com a junção de votos PRD e PCP com Zenha; e por fim, a maioria absoluta de Cavaco, tendo como consequência o primeiro governo que defrontou uma sociedade política essencialmente democrática e de economia de mercado. Privatizações e abertura do espaço televisivo, ambos obra de Cavaco, representaram, junto com a entrada na UE, os últimos momentos definidores do contexto actual da nossa política. A partir daí houve desenvolvimentos, não houve mudanças.

5. O PSD foi construído, numa primeira fase, no topo, com quadros que tinham vindo da oposição liberal do regime marcelista, da chamada “ala liberal”, oriundos das listas na fase inicial da transição marcelista, da SEDES, do Expresso, dos círculos católicos ligados à doutrina social da Igreja, e, numa expressão menos significativa, de algumas figuras da oposição republicana e maçónica mais moderada à ditadura. Eram na sua maioria, como era típico da elite política de um país pobre e pouco desenvolvido, advogados e juristas. Na base, o PSD recolheu os restos das estruturas locais da ANP, e começou a recrutar as suas “bases” entre os notáveis e “homens bons” locais, entre os pequenos empresários e comerciantes, na altura alguns dos sectores mais dinâmicos do Portugal do interior. A estes sectores somaram-se emigrantes e retornados, ambos sectores igualmente com grande mobilidade social. Foi esta composição que permitiu a classificação do PSD como partido dos self made man, gente independente do estado, que tomava conta da sua vida e que queria “progredir”. A estes juntaram-se jovens que nas escolas defrontavam a hegemonia comunista e esquerdista, e que, mais tarde, vão começar a fazer variar a composição profissional do partido, com mais engenheiros, mais economistas, mais médicos.

8. Só para termo de comparação, o PS formou-se de forma bastante distinta. O partido tinha um núcleo político e ideológico forjado na oposição, vindo quer de pessoas que eram antigos comunistas, quer de notáveis republicanos e mações. Depois do 25 de Abril, agregou rapidamente funcionários públicos, professores, e elementos das profissões liberais urbanas. Um número escasso de quadros sindicais, dos bancários, dos seguros e dos empregados de escritório, ligaram-se ao PS, assim como certos grupos profissionais como os pescadores. Enquanto no PSD entraram os quadros locais da ANP, no PS entraram personalidades de topo dos governos de ditadura, algumas das quais da Maçonaria. O PS era um partido mais envelhecido que o PSD, com pouca juventude e, de um modo geral, englobando pessoas mais dependentes do estado.

9. Com os anos, e com a estabilização da democracia, os dois partidos foram recebendo outros fluxos. Os antigos esquerdistas entraram para o PS e o PSD, por esta ordem. Alguns jovens da extrema-direita pós-25 de Abril entraram para o PSD. O PS recebeu também quadros comunistas oriundos de sucessivas cisões “renovadoras”. À medida que o comunismo ia perdendo o seu poder de atracção, a maioria dos intelectuais aproximava-se do PS, assim como o sector cada vez mais importante nas cidades da “animação cultural”, enquanto o PSD começava a apelar a economistas e gestores e aos “negócios”, como nunca acontecera até então. Crescendo por cima e por baixo, em quadros e experiência, os dois partidos iam abandonando a precariedade inicial e transformavam-se em grandes partidos nacionais, alternando no poder e … começando a parecer-se, embora as diferenças ainda fossem muitas.

MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (2)


9. O último Congresso do PSD demonstrou à saciedade todos os perigos de implosão do partido, que referi no artigo anterior e, embora tivesse dado um passo no caminho certo, revelou a um observador comprometido, as enormes dificuldades que há que contornar, já não digo para fazer voltar o PSD à governação, mas para manter o papel do partido na vida política portuguesa.

10. Luis Filipe Menezes representou a continuidade da experiência Santana Lopes, sem nenhuma mudança significativa. Os votos que recebeu e a recepção que o Congresso lhe propiciou são um bom exemplo para a reflexão sobre o que está mal no PSD. Os discursos de Menezes foram retoricamente sempre melhores do que os de Marques Mendes, como aliás os de Santana Lopes foram sempre melhores do que qualquer outro dirigente do PSD. Não é isso que está em causa, e nem sequer é preciso salientar que nos Congressos, que têm um aspecto ritual, isso é importante mas não pode ser o decisivo. Só que isto é o que menos o partido precisa, nem de excessos de “alma”, nem de retórica. Precisa de reflexão e de racionalidade para compreender o que se está a passar à sua volta e dentro de si.

11. O próprio facto de a comunicação social ter passado três dias a valorizar esta dicotomia, para acentuar o seu lado espectacular, ou seja, valorizar o estilo de Santana e de Menezes, diz-nos alguma coisa sobre as dificuldades de um retorno à realidade. Tudo isto por uma razão muito simples e sobre a qual ninguém se pergunta: porque razão é que o país e os eleitores, a começar pelos eleitores do PSD, não valorizam por aí além os arroubos sentimentais desses dirigentes? Menezes, que como Santana Lopes é intuitivo, percebeu-o quando gastou todo o seu último discurso a falar da questão da “credibilidade”. É, o problema é a credibilidade e os excessos afectivos não chegam para a mostrar e consolidar, quando se percebe que o que se diz é pouco e errado.
Não admira que Menezes tivesse muitas palmas quando falou sempre como se o PSD estivesse no clímax do seu poder, como se estivesse sólido e maioritário, podendo fazer ao PS todas as farroncas que desejasse, esquecendo a comezinha realidade do partido estar na oposição a uma maioria absoluta do PS para quatro anos e só contar, por um cabelo, para uma maioria constitucional. Se muitos congressistas não querem ver a realidade debil do PSD e preferem alimentar um autismo cego, o partido não se regenerará.


12. O segundo paradigma é o consensualismo e o medo do conflito. Marques Mendes foi censurado pelo único momento em que no Congresso um candidato esteve coerente com a tradição de ruptura do passado, ou seja quando criticou o estado do partido e a responsabilidade primacial de Santana Lopes. (Deixou de lado a de Durão Barroso, cuja fuga a meio de mandato e condicionamento da sucessão o torna co-responsável). Era isto que era habitual num partido que não costumava ter palavras mansas consigo próprio. Até agora.
Aqui os media atacaram Marques Mendes por criticar Santana Lopes, porque, ao fazê-lo, “ia perdendo o Congresso”. Ainda bem que não perdeu, mas se o perdesse teria feito a sua obrigação. Unanimismos falsos e salamaleques em nome da honra da família destroem a política. Nos momentos decisivos, os media estão sempre no seu discurso implícito a favor daquilo que renegam no seu discurso explícito, e é por isso que são muito conservadores. Foram eles que fizerem Santana Lopes (e o desfizeram) e foram eles que iam fazendo Menezes.

13. A reflexão sobre as “imagens” comunicacionais deve continuar a ser feita, porque o Congresso revelou como o paradigma espectacular é dominante na leitura dos media, e como estes mesmos media favorecem o show ao conteúdo. O problema é quando se elimina o espectáculo e se coloca no papel as frases magníficas e se vê que elas significam muito pouco, são incoerentes e remetem para soluções mal pensadas e inaceitáveis. O problema de Santana Lopes era passar-se para o papel o que ele dizia, no meio dos “com todo o respeito”, e com Menezes era a mesma coisa, embora, faça-se justiça, menos.
Se tomássemos a sério o monumental exercício de massagem do ego dos delegados e da “camisola” que foi toda a intervenção de Menezes no Congresso, o PSD deixaria de ser um partido democrático com mecanismos de representação para passar a funcionar em assembleia de democracia directa. Menezes prometeu a todos tal poder, que, se aplicasse o que propõs, não ficaria com nenhum, não lideraria nada no dia seguinte. O partido viveria de sucessivas reuniões de presidentes de secções que decidiriam tudo: deputados, delegados, presidentes das Câmaras, vereadores, políticas.
As suas propostas levariam a tornar a democracia representativa partidária numa democracia directa, o que significa que apenas os mais activos teriam voz, e não seria surpresa, encontrarmos no fim o mesmo partido fechado sobre si mesmo que temos agora. Até a sua proposta de directas, tem que ter condições prévias para não ser manipulada pelo aparelho partidário, a começar pela individualização da militância, acabando com os pagamentos colectivos de quotas e com centenas de falsos militantes inscritos para engordar artificialmente as secções e aumentar o número de delegados, que depois são eleitos por meia dúzia de pessoas.


14. O papel de Santana Lopes só não foi absurdo porque é mais do que isso: reprovável até ao limite. Não assumiu uma única responsabilidade do que se passou, atirou as culpas para um título de jornal, imediatamente desmentido pelo próprio jornal (nem se pergunta porque é que o efeito de um raríssimo desmentido de um jornal, não funcionou a seu favor, como aconteceu a Bush nas eleições americanas), para um comentador de um programa de debate que passa à noite num canal de cabo, e para um ministro que se propôs como candidato, caso ele perdesse. Só o caso do ministro era grave, mas aí ele não fez nada.
Santana Lopes foi ao Congresso para se vingar, para apoiar Menezes, para fazer chantagem sobre os que o queriam criticar e para, pela sua presença, condicionar o Congresso e o partido. Não me surpreendeu, como não me surpreende nada, que force a candidatura de Lisboa, que force a candidatura presidencial, que faça tudo para que Cavaco perca e Marques Mendes falhe. É isto que significa o “vou andar por aí”.


15. Neste contexto penso que se percebe as minhas objecções ao modo como actuou o “grupo” à volta de António Borges, cujo efeito prático foi bloquear a mais que necessária crítica ao passado imediato, favorecer Menezes e enfraquecer Marques Mendes. A não ser a “marcação do terreno”, ela própria ambígua, a sua acção só reforça a ideia da transitoriedade e pouco ou nada contribui para a renovação que se pretende, acabando por ser muito mais complacente com a deriva populista, de que resultou o péssimo resultado eleitoral, que Marques Mendes. Se quisermos ser directos e usar os “ismos”, mesmo na sua imprecisão, há que ter em conta que o “nogueirismo” resistiu melhor ao “santanismo” do que o “barrosismo” e outros “ismos” de elite. Com raras e honrosas excepções, uma certa elite do partido conviveu melhor com a deriva populista do que o eleitorado social-democrata e muitos militantes que recusavam com vigor, coisas como a campanha negativa e o culto de personalidade do “menino-guerreiro”.

16. É evidente que não está em causa nem as pessoas, nem a qualidade da sua intervenção, nem sequer o seu papel fundamental de trazerem mérito profissional e social reconhecido de fora para dentro do partido, que é para mim o mecanismo fundamental que deve presidir às carreiras políticas. Mas convinha que não existissem dúvidas que se fosse António Borges ou Manuela Ferreira Leite a estarem no papel de Marques Mendes, a tentarem uma ruptura com a “vida” que o partido leva, teriam sido triturados pela mesma máquina que se voltou contra Marques Mendes. Manuela Ferreira Leite seria apontada como a principal responsável pela derrota do partido pela sua política de austeridade e António Borges descrito como “sulista, elitista e liberal” e cristão-novo. A complacência com que foram recebidos é envenenada, como se vê analisando o modo como muitos delegados votaram simultaneamente em Menezes para a liderança do partido e na moção de António Borges.

17. Ora a moção e os discursos que a apoiaram independentemente dos seus méritos individuais e qualificações na sociedade – e são pessoas como essas que o PSD precisa - não demarcavam nada, não só em termos políticos e ideológicos, como na reflexão sobre o partido, não se diferenciando nem em relação a Marques Mendes, e acima de tudo, nem a Menezes e a Santana Lopes. E isso, neste Congresso e nos tempos de hoje, nada muda, conserva.
Se, e este se é importante, este “grupo” (e a verdade, minha querida Manuela, é que se actuou como grupo…) tivesse apresentado uma alternativa política ao programa de Marques Mendes, se contribuísse para identificar o que está mal no partido, não teriam qualquer estado de graça e isso talvez os levasse a compreender os problemas que Marques Mendes tem que defrontar quase sozinho e fragilizado pela sua actuação.
Para a semana, voltaremos a Marques Mendes.

14.4.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 31

É AGORA QUE SE ESTÃO A FAZER AS ASNEIRAS, DEPOIS É QUE ELAS SE MANIFESTAM


Tenho para mim uma regra, que a realidade costuma confirmar, que as grandes asneiras dos governos são normalmente tomadas nos primeiros momentos do exercício de funções. Tenho depois observado outra regra, que vem em pacote com a primeira, que estas asneiras são normalmente invisíveis quando são feitas, só se tornando evidentes quando os seus efeitos entram pelos olhos dentro de toda a gente. A essa observação acrescento outra: uma das razões porque são invisíveis se deve a toda uma panóplia de mecanismos que as protegem do escrutínio que deveriam ter e ou o adiam para o futuro, quando tudo já está entornado, ou as defendem no presente por razões de forma e não de conteúdo. Um destes mecanismos é o chamado “estado de graça”, espécie de tributo que o vício velho de todos os dias pensa que paga à virtude do novo, enquanto é novo. Todos os governos o tiveram, sim mesmo esse em que estão a pensar o teve, só que curto e fugaz, quando um coro de comentários afinava pelo diapasão do “o homem não tem lepra”, “vão ver que ainda nos surpreende”, “não subestimem as suas qualidades”. Os que disseram tudo isto já não se querem lembrar, mas a gente lembra-se por eles.
Os mecanismos comunicacionais ajudam também a este efeito de invisibilidade porque agora é o silêncio e a calma que são a novidade, onde antes era o barulho e a agitação. Vindos do psicodrama da campanha eleitoral, cheios de política até aos cabelos, na verdade cheios de politiquice, a dos políticos e a dos jornalistas, a comunicação ama a novidade antes da substância, que em bom rigor por ela não passa, e dedica-se a protegê-la com todas as forças. Há cumplicidades políticas, mas, no essencial, é o corso-ricorso dos tempos: o actual é aquele em que uns golfinhos aparecem mortos numa praia e são notícia de horário nobre. Será que os golfinhos são imortais e estes a excepção? Se calhar.
Ouço um coro a dizer em fundo: lá está o homem a dizer mal, mas porque é que ele não dá o benefício da dúvida? Conheço o coro contra os comentadores, vindo de outros comentadores, sobre os malefícios da função. Eu já caí nesse erro, no longínquo ano de 1987, acabava de se dar a revolução da primeira maioria absoluta e eu pensava que agora ia ser diferente, que o espírito do tempo ia descansar e tornar-nos outros, que havia um antes e um depois. Escrevi-o no Semanário, então um jornal, e Júdice, e bem, criticou a ingenuidade.
Há uma simples razão para tudo isto: o país em que acordamos a 20 de Fevereiro não é diferente daquele em que adormecemos a 19. Tem os mesmos problemas e, o que é mais grave, tende a não ter soluções, tende a ter adiamento das soluções, tende a ter as mesmas falsas soluções. E isso é o que se está a escolher agora, por estes dias, nos gabinetes do governo e nenhum indício melhor de que é assim do que o alívio com o fim do Pacto de Estabilidade, talvez a única coisa que, de fora para dentro, nos podia induzir a fazer reformas a doer. Deixou de doer lá fora, respiramos outra vez nos nossos tradicionais maus hábitos. Falaremos daqui a uns anos.


FIM DO PEC, PRINCIPIO DE COISA NENHUMA 1

Toda a história do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) é exemplar do que é a União Europeia dos dias de hoje. O PEC foi um complemento natural da moeda única e destinava-se a defende-la dos malefícios da inflação induzida pelo aumento do défice, que se esperava fosse a prática habitual dos países mal comportados, nomeadamente, Portugal e a Grécia. O PEC teve nos alemães os seus grandes defensores porque, com o fim do marco sólido e a sua troca com um euro que ainda não se sabia o que ia ser, eles queriam todas as garantias que não passavam de melhor para pior. A ironia da história foi que países como Portugal, contra o qual o Pacto foi feito, se esforçaram por cumprir o défice e a Alemanha e a França o deitaram fora pelas mesmas exactas razões contra as quais ele foi concebido: para proteger o “modelo social”, para combater o desemprego através dos gastos públicos em nome do “crescimento”. A simultaneidade do fim efectivo do Pacto com a recusa da directiva sobre a liberalização dos serviços retrata melhor do que tudo o estado da velha Europa: encostada a um canto, cada vez menos competitiva, defensiva do que tem hoje e hipotecando o amanhã.

FIM DO PEC, PRINCIPIO DE COISA NENHUMA 2


Tudo no Pacto e na sua história hipócrita é pouco virtuoso e ninguém verdadeiramente o defende, quase sempre pelas mesmas razões: os estados não querem ser limitados a gastar, os governos querem ganhar eleições ou pelo menos não as perder. No entanto, para Portugal, o Pacto tinha uma virtude: a tentativa, mesmo embrionária, de cumprir o Pacto empobrecia o estado e obrigava-o a prazo a ter que se reformar. Barroso inicialmente incorporou-a, ao escolher Ferreira Leite, depois hesitou; Lopes deitou-a pela borda fora na primeira oportunidade, e Sócrates transformou o seu abandono definitivo numa política virtuosa. Sempre o disse e repeti, é saudável o sufoco financeiro do estado porque obriga a prazo a ter que haver reformas que, sem uma forte pressão ou um estado de aguda necessidade, nunca se farão. O estado e o governo estrebuchavam por todo o lado, tentavam todos os paliativos e más soluções: tentavam aumentar as receitas a todo o custo, tentavam poupar onde não deviam para gastar onde também não deviam, faziam mil e um artifícios para nos enganarem, tudo para não tocar nas despesas que sustentavam o seu poder, a sua glória e a sua ineficiência. Mas lá chegaria o dia…
Agora já não chega, vamos voltar a uma espécie de “Fundo Social Europeu II”, chamado “choque tecnológico”. Mil licenciados vão inaugura-lo em nome da “modernização” das empresas, mas na realidade em nome do combate ao desemprego com o dinheiro público. Já há dinheiro outra vez, começaram os vícios.


A TRADUZIR: GELO

Onde está a “ultima fronteira”? Dentro ou fora, longe ou perto, alto ou baixo, no ar, no mar ou em terra? Verdadeiramente não me importa, porque me contento com pouco e, para o pouco com que me contento, a Antártida chega. Nunca lá fui e está no meu programa de vida ir. Não é que não tentasse, embora sem sucesso. Quando recebi um ou outro convite de países para fazer visitas e me disseram “escolha onde quer ir”, a minha primeira resposta foi “à base Amundsen-Scott não me importava de ir, ou à McMurdo talvez…”, ou “pode ser SANAE IV… ou Marion se não for possível”…Não podia ser. Um pouco incomodados lá me explicavam que, enfim, a Antártida não é bem território nacional e que o acesso às bases é difícil e as prioridades são para cientistas. Tretas, claro. Porque as bases dos diferentes países estão localizadas na parte do território que reivindicam – veja-se o Chile e a Argentina – e muitas tem militares e funções militares. À falta de ir, vou lendo sobre a Antártida e este livro de Stephen L. Pyne é do melhor que há. E sobre a Antártida há coisas muito boas.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 30


CRIME, VIOLÊNCIA, RAÇA, SEXO, CULTURA E NAÇÃO



A ideia politicamente correcta de que não se deve nomear a cor, nacionalidade (no caso de emigrantes) ou qualquer outro pormenor que possa ser considerado racista, sexista, ou xenófobo, nas notícias dos crimes, é só e apenas isso: politicamente correcta. Na prática, censura-nos uma informação que devíamos ter: a relação entre a criminalidade e os factores sociais e culturais onde ela encontra raízes. Nos crimes não há (não deve haver) desresponsabilização individual por razões “sociais” e muito menos “explicações” colectivas que desvalorizem o acto criminoso, e é insensato pensar que não há ”meios” de cultura favoráveis que incluem hoje a cor da pele, a idade, os padrões de consumo “cultural”, e o “ambiente”, a ecologia dos sítios. É veA rade para os lavradores que matam por águas e marcos do terreno; para os perdidos do mundo dos escritórios e da função pública que matam por ciúmes; para os mil e um “espertos” de todas as economias fora do fisco, sempre na linha entre a corrupção activa e passiva; para os ciganos, eternos vendedores e compradores de tudo que se compra e vende; para as máfias da emigração, que exportam métodos expeditos de “protecção” e punição; e para os desenraizados violentos dos subúrbios negros e, a prazo, islâmicos.
As recentes mortes de polícias não foram obra de “bandos de pretos”, mas uniram no assassinato duas realidades do crime: a nova criminalidade violenta e agressiva dos bandos de negros de segunda geração, ou seja portugueses filhos da primeira geração de emigrantes das nossas antigas colónias de África, e o submundo da “noite” do subúrbio, bares, casas de alterne, prostituição, tráfico de tudo, drogas e armas, economia paralela, ainda dominantemente caucasiano branco, ainda dominantemente português, embora a nova emigração do leste lhe dê um braço armado mais pesado.
Em ambos os casos as explicações “sociais” são mais que conhecidas, em particular para a nova criminalidade violenta ligada a grupos de jovens negros: vida de gueto, segunda geração sem a vontade de integração dos pais, sem a subserviência da emigração que veio da miséria absoluta e aceitava tudo, sentindo o racismo da sociedade branca como ninguém e respondendo-lhe com uma procura de identidade no crime e na violência. Muito centro comercial, muito filme americano, muito rap, muito jogo de vídeo, nenhuma escolarização, e, na cabeça, a violência como afirmação de força e identidade. É um problema sério cuja versão light se encontra todos os dias nos bandos que habitam o Colombo e outros centros comerciais, ou em que miúdos assaltam miúdos à porta de tudo o que é escola.
Depois há os grandes negócios clandestinos de sempre, a prostituição, a droga, as armas (este em crescendo), e todo um mundo de oportunidades na “indústria da noite”, a dos ricos e a dos pobres. Uma nova riqueza consumista, dinheiro mal ganho por todo o lado, no “estado social”, na economia clandestina da construção civil, nos jeitos e “biscates”, nas lojas que nascem e desaparecem sem que ninguém as perceba, na lavagem de muito dinheiro, tudo isto atraí uma competição sem tréguas, onde habitam personagens não muito distintas das da “Quinta das Celebridades”, quer as vindas de Cascais quer as da Brandoa.
Aqui Portugal mudou e muito e precisa de o compreender sem ser aos sobressaltos televisivos de cada crime. Precisa de outros polícias, outros magistrados e, num ou noutro caso, de novos procedimentos adoptados a uma realidade mais cruel. Mas precisa também de outras escolas e outros subúrbios, porque estes, feitos pela ilegalidade consentida de autarcas e governantes, vieram do crime e da pobreza e perpetuam o crime e a insegurança.


“CHOQUE TECNOLÓGICO” E “ESTRATÉGIA DE LISBOA”


A ênfase do governo num “choque tecnológico” é uma opção política que merece ser discutida por mais do que o título progressista nos iluda. Há sobre esta matéria duas maneiras de ver a tecnologia na sua relação com a economia, no fundo, do “choque tecnológico”: uma, a americana, outra a europeia. Já para não confundir as coisas acrescentando a indiana, a singapureana (que subsume a chinesa) e a japonesa que está em decadência no Japão, mas floresce em Taiwan e na Coreia.
Anunciada com grande fanfarra por Guterres, e criada quase pela mesma equipa que nos dá hoje o “choque tecnológico”, a “estratégia de Lisboa” era o sinal de partida da competição económica da Europa com os EUA. Deveria transformar, numa década, a Europa na economia mais competitiva do mundo, e ser medida por métodos de avaliação. Essa medição, talvez a única coisa benéfica que sobrou, mostra o completo falhanço da “estratégia de Lisboa” – a Europa atrasou-se e muito dos EUA. A meio caminho do prazo estabelecido, muitos dirigentes europeus não se coíbem de a criticar abertamente apontando para razões estruturais na própria concepção dessa “estratégia” e que estarão por detrás do seu fracasso.
Entre essas razões estará a rigidez do chamado “modelo social europeu”, a falta de espírito empresarial nos sectores chave da investigação, nas universidades e entre os jovens e a enorme dependência do estado e dos seus monopólios actuais ou deixados de herança nas privatizações, nos sectores das novas tecnologias. Se a isso acrescentarmos o papel crucial que tem na economia e investigação americanas os avultados investimentos militares, percebemos a diferença entre a mobilidade americana e a rigidez europeia. O debate sobre a “directiva Bolkenstein”, recusada quase liminarmente por países como a França, é só mais uma verificação da “closed shop” europeia.
O “choque tecnológico” de Sócrates é uma herança da “estratégia de Lisboa” com todas as suas ambiguidades: apela ao investimento privado, mas depende acima de tudo do investimento público. Dificilmente se vê como num país que trata o “caso Bombardier” como se esta fosse uma empresa nacionalizada, onde as universidades como a de Coimbra, que tem vagamente relações com o sector privado, se acham já “mercantilizadas”, onde ser funcionário público é uma aspiração que move milhares de jovens, onde fazer uma empresa é igual a abrir uma loja de roupa ou um bar ou um cabeleireiro, se pode ir mais longe do que tecer estratégias de resistência e de recuo, de velhas sociedades perdidas no seu pequeno conforto imediato e incapazes de assegurar sequer a reprodução desse conforto.


A CRENÇA NA INDIGNAÇÃO E NA VERGONHA


Também já a tive, mas perdi-a. Não é preciso ir mais longe e ver Fátima Felgueiras na televisão a falar de alto, como se fossemos nós que lhe devemos alguma coisa e não ela às leis do seu país e, presumivelmente, ao bom uso dos dinheiros públicos; ou lendo mil e umas entrevistas assinalando “regressos” de pessoas acusadas de histórias por esclarecer que continuam a ficar por esclarecer e continuam a ser populares e desejadas, logo desculpadas. Este limbo de impunidade, já o pensei, na minha inocência, que provocava a ira popular. Hoje desconfio muito dessa falsa indignação e vergonha, porque, nos momentos cruciais, os “populares” mostram uma esplendorosa complacência com os prevaricadores.
Fátima Felgueiras tratada na televisão como vítima da justiça, negociando os seus directos, atirando-nos com a sua condição de “perseguida”, recebe não indignação, mas um encolher de ombros quando não um apoio explicito. Vai-se a Felgueiras, à terra, e vê-se esse esplendor da complacência. Aliado ao medo. Pudera. É de ter.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 29

TEMOS GOVERNO


Agora que temos governo é que vai fiar mais fino. O país vai –se ajustando a uma desejada normalidade, passada a opera bufa (ver palavra) dos últimos meses. O retorno à normalidade é um mérito e, honra seja feita a Sócrates, foi reforçada por decisões do Primeiro-ministro como a de impor silêncio e a de reduzir as cerimónias a um mínimo, poupando-nos à fila de boys do “bloco central” a mostrarem-se no beija-mão. Bom estilo, sem dúvida. A questão está em saber se esta contenção tem como principal motivo limitar o desgaste e os danos de eventuais “trapalhadas”, ou encobre a ausência de políticas reformadoras.
Ver-se-á no futuro muito próximo, onde mais adiamentos são impossíveis, até porque o governo tem a virtuosa espada de Damocles do controle do défice em cima da cabeça. Benfazeja espada! E aqui já há um sinal negativo: a escolha de um “facto político” (ver palavra) para o discurso de posse – a venda de medicamentos comuns fora das farmácias. Não é que não concorde com a medida, e não concorde com o seu sentido subliminar de recado aos lobis farmacêuticos, os mais visíveis dos lobis nacionais. Tudo isso está bem, só que a escolha desta medida para o discurso obedece apenas a uma estrita lógica comunicacional, a dos célebres “factos políticos”, e não tem dimensão nem relevância para ser a única coisa que lembramos do discurso de posse. A economia, as finanças, o emprego, a educação, onde defrontamos problemas mais de fundo e onde a responsabilidade do governo é maior, e se decide sobre o escasso dinheiro, é que deveriam constar do discurso da posse. Desconfie-se sempre de medidas que são grátis para o estado, ou em poder ou em dinheiro, quando são estas as únicas bandeiras levantadas por um governo.
Por tudo isto, seria muito mau sinal se o governo tivesse estado de graça (ver palavra), porque isso significaria que não estava a fazer nada. Não há uma única medida das necessárias que não implique controvérsia e dinheiro ou poder. Essas é que medem a governação e essas exigem a máxima discussão e o natural confronto de opiniões, até porque tendem a ter um lado “ideológico”. O facto do governo iniciar as suas funções praticamente sem oposição exige, mais que nunca, que não o deixemos em paz.


OPERA BUFA


Veneza, que sabe destas coisas mais a dormir que nós acordados, dedicava três teatros à ópera séria, três à comédia e dois à ópera bufa. Nem suportavam outra dose, mesmo eles que criaram a comédia, que viviam entre “enamorados”, “doutores”, “capitães” e essa figura tão da nossa paisagem, o Pantalone. Mas, vista da ópera bufa, a comedia era pacífica, apesar do seu ruído, apesar da confusão.
Esta história do volta / não volta à Câmara de Lisboa que Santana Lopes alimentou não tem um único motivo que possa ser considerado útil, já para não dizer nobre ou elevado. Quinze dias para tomar uma decisão, mantida em segredo até passar do prazo para gerar especulações, só pode significar coisas pouco dignificantes. A menos má de todo é esta pulsão pela ópera bufa, em que se enterra tudo numa política de egoísmo que à volta só gera terra queimada. Como se houvesse uma vontade de punir todos, uma sede de vingança contra o PSD, que se vê assim mais longe de ganhar a Câmara, contra os seus vereadores e o Presidente substituto, Carmona Rodrigues, tratado indignamente, e contra os munícipes de Lisboa, como se fossem os culpados colectivos de terem destruído a ambição do “menino guerreiro”.


“FACTO POLÍTICO”

Ou seja, uma invenção verbal, uma frase, uma proposta, uma intenção, cujo único objectivo é funcionar como buraco negro para o debate e assim concentrar a atenção e reforçar as distracções. Sócrates, como a esmagadora maioria das pessoas da sua idade que se interessam por política, formou-se nesta escola que teve Marcelo como o criador e pontífice, e o Expresso como a sua encíclica e permanente Osservatore Romano. Mas os tempos já não estão muito para uma governação pela “factologia política”, e o Expresso é cada vez menos influente. Aliás suspeito também que não será da escola rival, a do Independente , ainda mais em cinzas, que surgirá a alternativa. A tabloidização da imprensa tenderá a engolir todo esse passado dos “factos políticos” versus “escândalos punitivos”, herdando de forma desigual mais a segunda escola do que a primeira.
Como será? Não sei. Mas sei como se pode fazer a pergunta: como se reconstituirá o pathos político num momento de normalização, longo demais para a nossa pressa e os nossos hábitos?


ESTADO DE GRAÇA


O meu programa escrito e não escrito é impedir o chamado estado de graça dos socialistas, ficam os leitores prevenidos. Talvez não tenha sucesso, mas não deixarei de tentar. Suspeito aliás que essa invenção da “graça” me parece bem pouco democrática: a política numa democracia é para dividir e não para unir, e “consensos” e respeitinhos temos nós a mais.
Veja-se um exemplo: as nossas elites europeístas querem despachar a questão do referendo, ou não o fazendo, ou fazendo-o a reboque de uma votação que o torne inócuo, colando-o a uma outra votação que o desvalorize.
Seja como for prefiro que ele se faça e, por isso, aceito a sua simultaneidade com outra eleição. Só que me parece melhor junta-lo à eleição presidencial, mais propícia a uma discussão mais global e menos paroquial da questão europeia. Contra mim falo, que defenderei o “não” no referendo e sei que Cavaco Silva, se for candidato presidencial, será um activo defensor do “sim”. Mas era mais coerente essa simultaneidade. Juntá-lo às autárquicas mantém um pouco da tradição de pequeno truque que nos últimos anos tem acompanhado as questões europeias: garantem-se os eleitores a reboque para um voto que não mobiliza ninguém, e reduz-se o debate ao mínimo sobre a Europa, que não estou a ver interessar a ninguém por essa altura. Como no fim de contas se trata apenas de uma diferença de poucos meses, vale a pena pressionar para que as coisas se façam com um resto de dignidade: nas presidenciais ainda há um espaço mínimo para o debate sobre a Europa, nas autárquicas, não.

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CONTRA OS NOSSOS INTERESSES E A CAMINHO DA IRRELEVÂNCIA

O “caso” do governo com a escolha de Freitas do Amaral é mesmo um caso e deve ser tomado a sério. O “caso” não é a ida de Freitas do Amaral para o governo socialista, nem a sua legitimidade, sem ser apoucado ou diminuído na sua integridade, por ter mudado de campo político. O “caso” está em que se Freitas do Amaral quer ser levado a sério pelas suas ideias e posições quanto àquilo que o levou a apoiar o PS nestas eleições, não tem sentido não o levar a sério nas posições que tem tomado nos últimos tempos em matéria de política externa. Ora, se tomarmos a sério a substância e mesmo a tão importante forma dessas opiniões, elas significam uma profunda inversão da nossa política externa em relação a aspectos do nosso tradicional posicionamento internacional. (Deixo de lado que Freitas do Amaral é também um federalista europeu com posições muito mais avançadas na defesa desse federalismo do que os federalistas envergonhados que abundam no PS e no PSD).
Ora não adianta esconder que a política que se fará no mundo, e nos sítios mais quentes do mundo, a começar pelo Médio Oriente, será a política definida pelos americanos da administração Bush, porque mal ou bem, é ela o motor das alterações políticas na região, do road map, à retirada síria do Líbano. Aquilo mesmo que parece hoje ser uma conversão dos EUA ao “multilateralismo” europeu, materializado nas visitas de Bush e Rice, é muito mais um desenvolvimento normal, e normalmente corrigido, do quadro de pressupostos que levaram os EUA à intervenção iraquiana. Os europeus que sabem, sabem muito bem que é assim, embora para se justificarem nas suas cedências as atribuam ao outro.
As posições de Freitas do Amaral, coerentes com as de Mário Soares, se forem tomadas à letra como acção governativa irão conduzir Portugal não só para a ultra-periferia do seu sistema atlântico de alianças, que ainda ninguém explicou porque é que deixou de servir os nossos interesses, e para um vazio diplomático que também já não serve aos interesses europeus. É do interesse da Europa aproximar-se dos EUA até porque sem o fazer será irrelevante em áreas vitais para existir diplomaticamente como o Médio Oriente. Ora um ministro dos negócios virulentamente anti-Bush está condenado a ser um anacronismo e a empurrar-nos para a irrelevância. Como aconteceu com a Espanha de Zapatero, que conta muito menos do que a de Aznar em quase tudo.


OS GAROTOS QUE BRINCAM COM A MEMÓRIA PORQUE A NÃO TEM NEM QUEREM TER

Poucas vezes vi o porta-voz do PS tão certeiro, no uso da sua qualidade de “portador” de uma voz, como quando classificou a atitude da direcção actual do PP de enviar o retrato de Freitas do Amaral para a sede do PS: “garotice” disse ele e disse muito bem. A palavra faz-nos lembrar uma característica do PP desde que Portas e Monteiro mataram o CDS, o partido é dirigido por jovens adultos arrogantes, indelicados, mal-educados e radicais, “garotos” em suma. Não é só de agora, já vem de há muito, nós é que estamos muito esquecidos do que o CDS era e o PP é. Não admira, o ofício principal dos garotos é destruir a memória, porque a memória ata e eles querem ter as mãos livres, e a memória ensina e eles acham que já nasceram ensinados, porque a memória obriga a pensar e eles só acreditam nas intuições rápidas dos “animais” políticos. É um estilo.


A IRÓNICA VITÓRIA DA JSD

Noutros tempos as vitórias da JSD costumavam ser medidas pelo seu grupo parlamentar. Agora como ele é inexistente, talvez valha a pena fazer uma introspecção sobre o seu papel no “santanismo” triunfante do passado e decadente no presente. Mas a ironia destas coisas é que ela é a verdadeira triunfadora simbólica das últimas eleições assumindo funções de verdadeiro “colo” para três dos dirigentes dos cinco partidos parlamentares, que fizeram escola nas “juventudes”: Santana Lopes, et pour cause, Sócrates e Portas antigos militantes da JSD. Talvez por isso, Jerónimo de Sousa aparecesse aos portugueses como a única pessoa normal, com o lastro da experiência de uma vida normal, sem ter nascido político de carreira, nem assessor ministerial, e vivido na alcatifa protegida da política profissional e do estado.


PACTO DE ESTABILIDADE

Toda a história do que vai mal na Europa pode vir a ser contada à volta do Pacto de Estabilidade. Exigido por alemães para ameaçar e punir Portugal e a Grécia nos seus maus hábitos orçamentais e para defender no euro a herança do marco; violado pelos franceses com jactância para defender o “seu” emprego e pelos alemães e portugueses por incompetência governamental; re-violado, se tal é possível, por franceses e alemães que se arrogaram o direito de exigir não serem sancionados por um acordo que tinham assinado quando pensavam que era para os outros; tri-violado quando os mesmos franceses e alemães impuseram à Comissão Prodi a inconsequência da sua violação e assim a tornaram ainda mais frágil; vai agora ser alterado pela grandiloquência arrogante de Chirac, com o “chanceler” ao lado, porque convém aos seus governos para que haja “crescimento”, ou seja, para o estado gastar mais e se ganharem eleições. Sempre unidos, sempre cegos, a quererem convencer-nos que os males da Europa estão no Pacto e não no “modelo social europeu” que os défices estão a pagar hipotecando o futuro.


SETA PARA A FRENTE, SETA PARA TRÁS

A cada vez mais clara diferença de velocidade de futuro entre os EUA e a Europa perpassava como uma epifania na conferência organizada pelo Presidente da República e dirigida por Manuel Castells. Os americanos falavam do crescimento do acesso sem fios à Internet e mostravam os mapas da cobertura que ia da Califórnia rica às reservas de índios, “americanos nativos” como se diz, parte da América pobre. Apareciam os exemplos e eles vinham de milhares de pequenas companhias, algumas com pouco mais de mil assinantes que serviam a sua comunidade, introduzindo inovações tecnológicas importantes que iam saindo das célebres garagens de onde também saiu a Apple e o MSDOS. No wireless as caixas de batatas fritas falsas da Pringle foram as primeiras antenas. Qual é a abissal diferença que entra pelos olhos dentro? O “espírito do capitalismo”, o espírito empresarial que impregna tudo, jovens que lêem o Popular Mechanics, universitários com talento, investidores argutos com imaginação na ponta do seu dinheiro e claro… todos ganham. Na Europa, fala-se de “novas tecnologias” e é o estado ou os gigantescos filhos dos monopólios do estado que contam. Estavam todos na sala a ver o mundo novo passar longe e depressa.
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E AGORA JOSÉ?

O “José” dos políticos é difícil de definir. No fundo, os portugueses não são o mesmo José: há “Josés” yuppies, e “Josés” trolhas, há “Josés” betos e “Josés” da passa, há “Josés” que são “Marias”, metade dos portugueses são “Marias” que o nosso machismo inclui-as na pergunta dos “Josés”, há “Josés” funcionários e “Josés” desempregados. Por aí adiante.
Que querem estes “Josés” todos? Coisas diferentes, contraditórias e hostis entre si. Contrariamente aos que, de há muito, anunciaram a sua morte, a velha “luta de classes” continua a existir. Não se faz ao modo que Karl Marx enunciou, mas ao modo que Balzac, Tolstoi, Ibsen, Kafka , entre outros, descreveram. Invejas, ressentimentos, apaziguamentos, revoltas, curiosidades, ambições, dinheiro, falta dele, a terrinha dos pais ou o apartamento em Massamá, medos e seguranças, makes the world go around. Esta dinâmica, às vezes apenas uma mecânica, do mundo faz-se por uma miríade de desejos e expectativas, nem todos gloriosos, nem todos socialmente aceitáveis nem enunciáveis, nem todos bons, nem todos perversos. Mas faz-se. Move-se, embora muitas vezes para trás.
Para um jovem empresário que queira fazer uma empresa ex-novo a burocracia é o seu inimigo. Gostaria de chegar a um Centro de Formalidades das Empresas e sair de lá com o que precisa no mesmo dia. Mas se viver na província, ou, se mesmo em Lisboa, tiver que lidar com algumas burocracias firmemente estabelecidas, prepara-se para um longo calvário. Do outro lado, está uma miríade de funcionários que nunca tiveram preparação, nem tem as literacias para atenderem com eficiência quem ocorre às repartições. Estão habituados a mandar no seu pequeno cacifo, e a atrasar ou acelerar, a informar, ou a desinformar, a aceitar a pequena corrupção da empresa que oferece o serviço de tratar dos papéis e que tem sempre melhor tratamento do que os indivíduos que ousam aparecer sozinhos. Depois, este “jovem empresário” é um tipo ideal weberiano, que quase não existe. Os que existem são na maioria “velhos”, mesmo quando novos, espertos, conhecendo e praticando todos os truques do ofício de sobreviver num mundo de cunhas e corrupção de que eles se queixam, mas que alimentam e, pior, reproduzem na sua própria actividade: “quer factura?”, uma das frases mais ouvidas em Portugal. A sociedade alimenta-se de milhares de pequenos conflitos, de milhares de interesses desavindos, e para que uns ganhem outros perdem.
Em Portugal é tudo muito pequeno, somos todos primos uns dos outros e o espaço e os bens escasseiam. Esta é uma visão pessimista de intelectual? Não é: todos os inquéritos sociológicos revelam a falta de mobilidade profissional, social, geográfica dos portugueses, a sua preferência pelo que está e o seu medo de mudar, particularmente se a mudança incluir uma avaliação do seu mérito. É este também o nosso atraso – vimos de muita pobreza e achamos que o remedeio medíocre já é demasiado bom para nos darmos ao trabalho de arriscar a mudar. Não admira por isso que os “Josés” que querem mudar e arriscar sejam escassíssimos e os “Josés” que querem manter o pouco que têm, apenas gastarem mais sem comprometerem o garantismo do que tem (quase sempre do estado) e sem muito trabalho, abundam. E votam, em função dos riscos e seguranças que retratam o seu modo de vida. A inércia é a regra, a mudança é a excepção.



PROCESSAR SALDANHA SANCHES OU ASSUMIR O COMBATE CONTRA A CORRUPÇÃO NAS AUTARQUIAS?

Esta é uma típica pergunta retórica, porque todos sabemos que ninguém enunciou este dilema, a começar pelo sujeito invisível da frase, a Associação Nacional de Municípios. O que Saldanha Sanches disse não precisa de qualquer comprovativo: já desde a antiga Alta Autoridade Contra a Corrupção, cujos ficheiros confidenciais estão convenientemente guardados no arquivo morto, até aos inquéritos policiais conhecidos de hoje e aos processos realizados e a realizar, que a corrupção é um problema gravíssimo das autarquias. Quando um autarca toma a iniciativa de querer limpar a sua casa, como Rui Rio fez na Câmara do Porto, para além de todas as dificuldades e obstáculos, acabam por aparecer os casos de corrupção. É também a experiência de muita gente e por isso não é “acusação” nenhuma que precise de ser provada. Se depois o nosso sistema judicial não actua como deve, é todo um outro problema.
Se os autarcas estão preocupados com a sua “imagem” seria bom que experimentassem conduzir eles próprios esse combate contra a corrupção, cujos meandros tem obrigação de conhecer melhor que ninguém.


E O NOSSO REFERENDO À CONSTITUIÇÃO EUROPEIA QUANDO É QUE É?


Os espanhóis fizeram já o referendo à Constituição Europeia e os seus resultados são reveladores. Votar sim é politicamente correcto e agrupa todos os partidos do poder, socialistas e populares. Logo que, nas respostas, houvesse uma maioria de sins não espanta. Mas o desinteresse e a indiferença foram os verdadeiros vencedores. O cidadão comum, aquele para quem a Constituição diz apelar, mostra escasso interesse num texto que vê como inócuo (os que o vêm como perigoso votaram não) e irrelevante. Acham que o poder é o poder e ele virá ao de cima, com Constituição ou sem ela, e se for preciso contra ela. E ponto.
Mas há um sinal preocupante no caso espanhol, que também se verifica em Portugal sem grandes alardes: a chamada “propaganda institucional” a favor do sim, feita com dinheiros europeus ou do estado. Ora sendo a aprovação da Constituição uma questão de decisão política livre dos portugueses convinha não esquecer que as instituições não devem ter lado antes de um voto que não devem querer condicionar. É por isso que a inauguração de um mural sobre a Carta dos Direitos Fundamentais, um documento que não é vinculativo face à lei portuguesa, só pode ser propaganda. E já agora, está tudo esquecido de que existe um compromisso de referendo e que convinha sabermos quando é, para não se criar mais uma vez uma situação de facto, antes de ser de jure.


DICIONÁRIO DE FILOSOFIA PORTUGUESA

Como muita gente formada nos anos sessenta, a mera junção do substantivo “filosofia” ao adjectivo “portuguesa” levantava logo as piores das suspeições. Suspeições políticas, porque a “filosofia portuguesa” era vista como um produto ideológico reaccionário entre o Integralismo lusitano e o regime salazarista, e suspeição de interesse, porque alguns dos seus autores escreviam num estilo obscuro e ilegível para o comum dos mortais, mesmo sendo filósofos. Havia também um nacionalismo predestinado, como se o Quinto Império fosse uma realidade ôntica. E tudo parecia comentário, do comentário, do comentário, fechado, isolado, provinciano e voltado para si mesmo, longe das grandes portas abertas dos filósofos do século XX.
Se bem que houvesse razões para estes preconceitos, eram de facto preconceitos e muita ignorância à mistura. Não é que a “filosofia portuguesa” tivesse a genialidade que os membros da sua escola, lhe atribuíam, mas merecia ser melhor conhecida e estudada. Vale por isso a pena o Dicionário de Filosofia Portuguesa de Pinharanda Gomes, que a D.Quixote publicou. Como os dicionários não são para ler de fio a pavio, comecem por exemplo por “Paremiologia”, ou seja o estudo dos provérbios para ter um sabor da “filosofia portuguesa”.