DIREITA / ESQUERDA (Outubro 2004)
O último Prós e Contras sobre a dicotomia esquerda / direita revelou a maior das confusões sobre a matéria. Não foi por acaso, porque a distinção tem cada vez menos sentido e gera mais confusões do que clareza. Carlos Encarnação enunciou esses dilemas, atrapalhando a “esquerda” do painel com perguntas simples: a política de Schroeder é de esquerda ou de direita? Blair, é da esquerda ou da direita? Alegre irritava-se com Blair, mas não conseguia dizer a frase “Blair é de direita”. Depois, Lomba, no comentário final, atrapalhou tudo ao tentar viajar no tempo procurando coerências onde elas não existiam e encontrando diferenças que não conseguia explicar. Luís Osório contribuiu também para a confusão, enunciando uma fraternidade entre a esquerda dele e a direita de Lomba, sem ser capaz de tirar as conclusões sobre porque é que ela existia e era aparentemente mais forte do que fraternidade ausente que tinha com a esquerda de Sócrates. O único que estava à vontade era Jaime Nogueira Pinto, que há muito tempo sabe o que é, e conhece a sua história política. Não foi edificante o debate, aliás não foi um debate, foi uma enunciação afectiva das identidades com que cada um se veste e a tentativa de tornar universais essas vestes e nos obrigar a vesti-las, mesmo contra a vontade.
O retorno em força da dicotomia esquerda/direita no discurso político português, que se está a dar nos últimos anos, introduz mais confusão do que clarificação e é por si próprio uma forma de arcaísmo. É muito provinciano e local, porque este retorno às divisões classificativas simples, tem muito a ver com a nossa história política mais recente e isola-nos dos debates mais interessantes que se passam, por exemplo, nos EUA, no Reino Unido, na Itália, em Espanha, onde estas pertenças dicotómicas já não são centrais na vida pública. Acresce, como o estudo que acompanhava o programa e a sondagem que vinha no Público revelavam, que esta acentuação da dicotomia se faz em contra-ciclo e em directa contradição com a perda da sua importância nos eleitores em geral, e na parte da população que é politicamente activa.
As razões portuguesas deste retorno ao simplismo classificatório esquerda / direita são várias e têm a ver com a evolução do sistema político e à sua consolidação vinte anos depois do vinte e cinco de Abril. Nos anos oitenta fecha-se de facto o ciclo revolucionário, como resultado de um conjunto de eventos que inclui o fim do poder militar; a vitória da AD, mostrando a possibilidade da alternância; as sucessivas revisões constitucionais, quer na parte política, quer económica da Constituição, tornando-a adaptada a um estado democrático e a uma economia capitalista; a vitória de Soares nas eleições presidenciais, acabando com os projectos de “socialismo participativo” (Pintasilgo); e de Cavaco Silva, dando origem ao primeiro governo de maioria absoluta. Esta década foi verdadeiramente transformadora e levou a uma progressiva estabilização da alternância política entre o PS e o PSD e ao isolamento dos extremos políticos, principalmente do PCP e da extrema-esquerda. Esse processo simultâneo de “centramento” do PS e PSD, começou a gerar tensões e mudanças nas franjas politicas mais radicais e é aí que recomeça este novo surto identitário da dicotomia esquerda / direita.
Foi à “direita” que tal processo se iniciou, com a assunção por Paulo Portas do PP como “partido de direita”, abandonando o “centrismo”, seguida da entrada em cena do Bloco de Esquerda com a palavra no nome. É significativo que tenham sido dois partidos dos extremos, o PP e o BE, que, numa procura de uma identidade perdida e de outra renovada – o PP queria desfazer-se do CDS e o BE do seu passado trotsquista (PSR) e maoista (UDP) – se voltaram para um património ideológico que, de há muito, revelava desgaste na sua capacidade de interpretação do presente.
Simultaneamente com este processo, uma geração mais nova começou a substituir o alinhamento partidário restrito pelo alinhamento ideológico assente na dicotomia esquerda / direita, incorporando tradições e novas correntes que até então nunca tinham tido peso no debate político em Portugal, como é o caso do liberalismo à direita e do chamado alter-mundialismo à esquerda. Este processo acelerou-se, empurrado pelos eventos posteriores ao 11 de Setembro, e a guerra do Iraque, mas ocorreu de forma assimétrica. À direita foram os blogues, um novo meio de afirmação política, que permitiu romper a tradicional dominação pela esquerda do espaço comunicacional, que ajudaram à afirmação de uma geração de jovens intelectuais , que, simpatizando com o PP e o PSD, mais com o primeiro do que com o último, sentia-se mais individualista e liberal do que esses partidos. Na blogosfera foram hegemónicos numa primeira fase e estão agora a transitar para a comunicação social tradicional levando pouco a pouco para o mainstream da vida política uma sensibilidade conservadora e liberal que aí não tinha tradição.
A assimetria vem do facto do Bloco de Esquerda, pela sua herança de organizações e grupos, ter sido capaz de absorver a juventude de esquerda, permitindo-lhe a curto prazo uma expressão política mais orgânica. Por outro lado, como o Bloco beneficia da activa simpatia no sistema comunicacional, nunca necessitou de forma tão crucial de formas alternativas como os blogues. Embora tenham aí uma presença activa, esta reflecte mais a agenda da vida política exterior, do que uma marca própria na blogosfera.
Pouco a pouco, a impregnação destas categorias dicotómicas esquerda / direita, foi entrando nos partidos da alternância “central”, num processo contra-natura em relação ao posicionamento e ao discurso político que lhes garantia o eleitorado para ganhar eleições. Esta contradição manifestou-se agudamente no recente debate interior do PS, onde a acentuação da identidade ideológica tradicional entrou em choque não apenas com o pragmatismo eleitoral (como dizia Alegre), mas com a possibilidade da governabilidade (como Gama enunciou no único discurso consistente do Congresso). Um processo de impregnação que só se compreende por crises das lideranças fortes que tinham crescido no “centro” do espectro político, como Cavaco e mais tarde Guterres. Esse processo deu-se principalmente no PS, culminando no confronto político recente Alegre - Sócrates, e no PSD, mais lentamente no início, e depois acelerado pela coligação com o PP.
Estamos pois todos hoje outra vez a falar da esquerda e da direita, como se tal dissesse alguma coisa sobre o que somos e o que queremos.
2
Se eu quiser fazer um catálogo rudimentar do estado da utilização da dicotomia esquerda / direita, ela pode ser resumida em três tipos de uso: um filosófico, outro histórico-identitário e outro meramente proclamatório. Os dois primeiros usos têm sentido, mas com precauções, que o uso proclamatório deixa de lado. Neste último caso, aquele em que a dicotomia esquerda / direita é habitualmente utilizada nos dias de hoje em Portugal, a sua capacidade heurística, a sua capacidade para produzir sentido na aplicação ao real, é escassa, e na maioria dos casos, mesmo enganadora. Volto ao tema inicial: usar como método de classificação, enunciação e proclamação a distinção esquerda / direita nada nos diz sobre o mundo a não ser alinha-lo de forma simplista, que só pode favorecer o extremismo político. O preço é a desertificação do pensamento criador que nos impede de ver o que é novo na complexidade dos nossos dias.
(Faço de passagem uma nota para evitar confusões: o “centro” não é o lugar de intersecção da esquerda com a direita e vice-versa. Escrevo sobre isto há muito tempo e nunca o pensei assim, nem penso que haja qualquer utilidade em acrescentar um “centro” à dicotomia. A três é igual a dois, porque não é esse o problema. Há quase vinte anos, escrevi que o “novo centro” que estava a aparecer em Portugal entre 1985-7, não era um lugar politicamente geométrico, uma espécie de encarnação do “bloco central”, mas sim o efeito da emergência de um novo tipo de eleitorado, que vota pelos resultados e pela percepção do mérito, umas vezes no PS outra no PSD. Foi a emergência desse eleitorado que subverteu um sistema eleitoral destinado a obrigar a coligações, permitindo as maiorias absolutas, a de Cavaco e aquela que Guterres esteve no limiar de alcançar. Quer a bipolarização, quer a alternância devem muito a esse “novo centro”.)
Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda-direita. O uso que identifiquei como filosófico, é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja um optimismo antropológico; outra, a ideia que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja um pessimismo antropológico.
Mas, mesmo a este nível de essencialidade, ou se quisermos de pureza e radicalidade argumentativa, em que o sinal separador (o /) parece ter mais sentido, encontramo-nos com problemas que tornam menos nítida a dicotomia. Um, é que a dicotomia antropológica comunica bem com algumas ciências humanas, na política, na sociologia, nas teorias da cultura, e nalgumas teorias da história, mas já não se manifesta com a mesma nitidez no domínio das ciências da natureza ou da criação estética. Ou seja, a distinção antropológica pode-nos ajudar a perceber Maquiavel, ou Hobbes, ou Burke, ou Rousseau, ou Napoleão, ou Lenine, ou Mussolini (com Hitler já não é tão fácil), o welfare state ou a ditadura do proletariado, mas é completamente impossível de aplicar à ciência, como se verificou no debate soviético sobre a genética, ou à literatura. Pound era fascista, mas, quando escreveu o seu poema contra a usura, a sua poesia é de direita ou de esquerda? Kafka percebeu o mundo concentracionário e burocrático muito antes de ninguém, mas o Processo é de direita ou de esquerda, é uma procura de ordem ou desordem? E Wagner e a sua música? E Proust?
Pode-se argumentar, contra o que digo, que o uso da dicotomia se limita ao terreno da política e da história e que é abusivo querer aplica-la à ciência e à criação literária e artística. Só que o carácter holístico da distinção esquerda / direita conduz inevitavelmente à sua utilização para além da política. As tentativas de fazer uma arte ou uma ciência “proletária” ou “progressista”, não foram uma perversão estalinista. Elas estão presentes como uma natural vontade de extensão, de perfeição, de uma dicotomia percebida como estruturadora do humano.
Outro problema é que a dicotomia esquerda / direita tem inevitavelmente em si uma teoria da história finalista, que transporta um sentido moral desigualmente representado nos dois lados da dicotomia. Um dos lados é moralmente superior ao outro. Veja-se como nenhum dos defensores da dicotomia prescinde de atribuir uma maior densidade moral ao seu lado do par, já para não falar de lhe atribuir um qualquer teleologia, ou destino manifesto.
Foi esta história que Fukuyama, analisando a crise do hegelianismo como teoria da história central no comunismo, disse que tinha acabado e acabou. Pode voltar, mas hoje está morta e enterrada e esta é uma das razões da crise heurística da dicotomia esquerda / direita. Se não conseguimos encontrar sentido manifesto na história, como é que o pessimismo ou o optimismo antropológico podem gerar uma explicação política global que estruture a acção política, sem a “certeza” da respectiva validade interpretativa? Só se a acção política for entendida como “experimental” na prática e civilizacional na ideia.
Voltaremos aqui depois de falar da dicotomia esquerda / direita como tradição identitária e como discurso proclamatório, duas formas muito próximas de a usar e as mais comuns no discurso político.
(Continua)
O último Prós e Contras sobre a dicotomia esquerda / direita revelou a maior das confusões sobre a matéria. Não foi por acaso, porque a distinção tem cada vez menos sentido e gera mais confusões do que clareza. Carlos Encarnação enunciou esses dilemas, atrapalhando a “esquerda” do painel com perguntas simples: a política de Schroeder é de esquerda ou de direita? Blair, é da esquerda ou da direita? Alegre irritava-se com Blair, mas não conseguia dizer a frase “Blair é de direita”. Depois, Lomba, no comentário final, atrapalhou tudo ao tentar viajar no tempo procurando coerências onde elas não existiam e encontrando diferenças que não conseguia explicar. Luís Osório contribuiu também para a confusão, enunciando uma fraternidade entre a esquerda dele e a direita de Lomba, sem ser capaz de tirar as conclusões sobre porque é que ela existia e era aparentemente mais forte do que fraternidade ausente que tinha com a esquerda de Sócrates. O único que estava à vontade era Jaime Nogueira Pinto, que há muito tempo sabe o que é, e conhece a sua história política. Não foi edificante o debate, aliás não foi um debate, foi uma enunciação afectiva das identidades com que cada um se veste e a tentativa de tornar universais essas vestes e nos obrigar a vesti-las, mesmo contra a vontade.
O retorno em força da dicotomia esquerda/direita no discurso político português, que se está a dar nos últimos anos, introduz mais confusão do que clarificação e é por si próprio uma forma de arcaísmo. É muito provinciano e local, porque este retorno às divisões classificativas simples, tem muito a ver com a nossa história política mais recente e isola-nos dos debates mais interessantes que se passam, por exemplo, nos EUA, no Reino Unido, na Itália, em Espanha, onde estas pertenças dicotómicas já não são centrais na vida pública. Acresce, como o estudo que acompanhava o programa e a sondagem que vinha no Público revelavam, que esta acentuação da dicotomia se faz em contra-ciclo e em directa contradição com a perda da sua importância nos eleitores em geral, e na parte da população que é politicamente activa.
As razões portuguesas deste retorno ao simplismo classificatório esquerda / direita são várias e têm a ver com a evolução do sistema político e à sua consolidação vinte anos depois do vinte e cinco de Abril. Nos anos oitenta fecha-se de facto o ciclo revolucionário, como resultado de um conjunto de eventos que inclui o fim do poder militar; a vitória da AD, mostrando a possibilidade da alternância; as sucessivas revisões constitucionais, quer na parte política, quer económica da Constituição, tornando-a adaptada a um estado democrático e a uma economia capitalista; a vitória de Soares nas eleições presidenciais, acabando com os projectos de “socialismo participativo” (Pintasilgo); e de Cavaco Silva, dando origem ao primeiro governo de maioria absoluta. Esta década foi verdadeiramente transformadora e levou a uma progressiva estabilização da alternância política entre o PS e o PSD e ao isolamento dos extremos políticos, principalmente do PCP e da extrema-esquerda. Esse processo simultâneo de “centramento” do PS e PSD, começou a gerar tensões e mudanças nas franjas politicas mais radicais e é aí que recomeça este novo surto identitário da dicotomia esquerda / direita.
Foi à “direita” que tal processo se iniciou, com a assunção por Paulo Portas do PP como “partido de direita”, abandonando o “centrismo”, seguida da entrada em cena do Bloco de Esquerda com a palavra no nome. É significativo que tenham sido dois partidos dos extremos, o PP e o BE, que, numa procura de uma identidade perdida e de outra renovada – o PP queria desfazer-se do CDS e o BE do seu passado trotsquista (PSR) e maoista (UDP) – se voltaram para um património ideológico que, de há muito, revelava desgaste na sua capacidade de interpretação do presente.
Simultaneamente com este processo, uma geração mais nova começou a substituir o alinhamento partidário restrito pelo alinhamento ideológico assente na dicotomia esquerda / direita, incorporando tradições e novas correntes que até então nunca tinham tido peso no debate político em Portugal, como é o caso do liberalismo à direita e do chamado alter-mundialismo à esquerda. Este processo acelerou-se, empurrado pelos eventos posteriores ao 11 de Setembro, e a guerra do Iraque, mas ocorreu de forma assimétrica. À direita foram os blogues, um novo meio de afirmação política, que permitiu romper a tradicional dominação pela esquerda do espaço comunicacional, que ajudaram à afirmação de uma geração de jovens intelectuais , que, simpatizando com o PP e o PSD, mais com o primeiro do que com o último, sentia-se mais individualista e liberal do que esses partidos. Na blogosfera foram hegemónicos numa primeira fase e estão agora a transitar para a comunicação social tradicional levando pouco a pouco para o mainstream da vida política uma sensibilidade conservadora e liberal que aí não tinha tradição.
A assimetria vem do facto do Bloco de Esquerda, pela sua herança de organizações e grupos, ter sido capaz de absorver a juventude de esquerda, permitindo-lhe a curto prazo uma expressão política mais orgânica. Por outro lado, como o Bloco beneficia da activa simpatia no sistema comunicacional, nunca necessitou de forma tão crucial de formas alternativas como os blogues. Embora tenham aí uma presença activa, esta reflecte mais a agenda da vida política exterior, do que uma marca própria na blogosfera.
Pouco a pouco, a impregnação destas categorias dicotómicas esquerda / direita, foi entrando nos partidos da alternância “central”, num processo contra-natura em relação ao posicionamento e ao discurso político que lhes garantia o eleitorado para ganhar eleições. Esta contradição manifestou-se agudamente no recente debate interior do PS, onde a acentuação da identidade ideológica tradicional entrou em choque não apenas com o pragmatismo eleitoral (como dizia Alegre), mas com a possibilidade da governabilidade (como Gama enunciou no único discurso consistente do Congresso). Um processo de impregnação que só se compreende por crises das lideranças fortes que tinham crescido no “centro” do espectro político, como Cavaco e mais tarde Guterres. Esse processo deu-se principalmente no PS, culminando no confronto político recente Alegre - Sócrates, e no PSD, mais lentamente no início, e depois acelerado pela coligação com o PP.
Estamos pois todos hoje outra vez a falar da esquerda e da direita, como se tal dissesse alguma coisa sobre o que somos e o que queremos.
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Se eu quiser fazer um catálogo rudimentar do estado da utilização da dicotomia esquerda / direita, ela pode ser resumida em três tipos de uso: um filosófico, outro histórico-identitário e outro meramente proclamatório. Os dois primeiros usos têm sentido, mas com precauções, que o uso proclamatório deixa de lado. Neste último caso, aquele em que a dicotomia esquerda / direita é habitualmente utilizada nos dias de hoje em Portugal, a sua capacidade heurística, a sua capacidade para produzir sentido na aplicação ao real, é escassa, e na maioria dos casos, mesmo enganadora. Volto ao tema inicial: usar como método de classificação, enunciação e proclamação a distinção esquerda / direita nada nos diz sobre o mundo a não ser alinha-lo de forma simplista, que só pode favorecer o extremismo político. O preço é a desertificação do pensamento criador que nos impede de ver o que é novo na complexidade dos nossos dias.
(Faço de passagem uma nota para evitar confusões: o “centro” não é o lugar de intersecção da esquerda com a direita e vice-versa. Escrevo sobre isto há muito tempo e nunca o pensei assim, nem penso que haja qualquer utilidade em acrescentar um “centro” à dicotomia. A três é igual a dois, porque não é esse o problema. Há quase vinte anos, escrevi que o “novo centro” que estava a aparecer em Portugal entre 1985-7, não era um lugar politicamente geométrico, uma espécie de encarnação do “bloco central”, mas sim o efeito da emergência de um novo tipo de eleitorado, que vota pelos resultados e pela percepção do mérito, umas vezes no PS outra no PSD. Foi a emergência desse eleitorado que subverteu um sistema eleitoral destinado a obrigar a coligações, permitindo as maiorias absolutas, a de Cavaco e aquela que Guterres esteve no limiar de alcançar. Quer a bipolarização, quer a alternância devem muito a esse “novo centro”.)
Voltemos de novo aos usos da dicotomia esquerda-direita. O uso que identifiquei como filosófico, é mais propriamente assente num modo antropológico diferente de distinguir duas visões do homem: uma, a da bondade original, pervertida pela sociedade, ou seja um optimismo antropológico; outra, a ideia que a natureza selvagem do homem implica instituições assentes na ordem e na autoridade que o moderem nos seus instintos primários como condição para haver sociedade, ou seja um pessimismo antropológico.
Mas, mesmo a este nível de essencialidade, ou se quisermos de pureza e radicalidade argumentativa, em que o sinal separador (o /) parece ter mais sentido, encontramo-nos com problemas que tornam menos nítida a dicotomia. Um, é que a dicotomia antropológica comunica bem com algumas ciências humanas, na política, na sociologia, nas teorias da cultura, e nalgumas teorias da história, mas já não se manifesta com a mesma nitidez no domínio das ciências da natureza ou da criação estética. Ou seja, a distinção antropológica pode-nos ajudar a perceber Maquiavel, ou Hobbes, ou Burke, ou Rousseau, ou Napoleão, ou Lenine, ou Mussolini (com Hitler já não é tão fácil), o welfare state ou a ditadura do proletariado, mas é completamente impossível de aplicar à ciência, como se verificou no debate soviético sobre a genética, ou à literatura. Pound era fascista, mas, quando escreveu o seu poema contra a usura, a sua poesia é de direita ou de esquerda? Kafka percebeu o mundo concentracionário e burocrático muito antes de ninguém, mas o Processo é de direita ou de esquerda, é uma procura de ordem ou desordem? E Wagner e a sua música? E Proust?
Pode-se argumentar, contra o que digo, que o uso da dicotomia se limita ao terreno da política e da história e que é abusivo querer aplica-la à ciência e à criação literária e artística. Só que o carácter holístico da distinção esquerda / direita conduz inevitavelmente à sua utilização para além da política. As tentativas de fazer uma arte ou uma ciência “proletária” ou “progressista”, não foram uma perversão estalinista. Elas estão presentes como uma natural vontade de extensão, de perfeição, de uma dicotomia percebida como estruturadora do humano.
Outro problema é que a dicotomia esquerda / direita tem inevitavelmente em si uma teoria da história finalista, que transporta um sentido moral desigualmente representado nos dois lados da dicotomia. Um dos lados é moralmente superior ao outro. Veja-se como nenhum dos defensores da dicotomia prescinde de atribuir uma maior densidade moral ao seu lado do par, já para não falar de lhe atribuir um qualquer teleologia, ou destino manifesto.
Foi esta história que Fukuyama, analisando a crise do hegelianismo como teoria da história central no comunismo, disse que tinha acabado e acabou. Pode voltar, mas hoje está morta e enterrada e esta é uma das razões da crise heurística da dicotomia esquerda / direita. Se não conseguimos encontrar sentido manifesto na história, como é que o pessimismo ou o optimismo antropológico podem gerar uma explicação política global que estruture a acção política, sem a “certeza” da respectiva validade interpretativa? Só se a acção política for entendida como “experimental” na prática e civilizacional na ideia.
Voltaremos aqui depois de falar da dicotomia esquerda / direita como tradição identitária e como discurso proclamatório, duas formas muito próximas de a usar e as mais comuns no discurso político.
(Continua)