A LAGARTIXA E O JACARÉ 4 (Setembro 2004)
O PEDIDO DE DESCULPAS QUE FALTA
A colocação dos professores é vista por muita gente de forma abstracta e instrumental. Para os pais, significa o alívio de ter os filhos fora de casa. Para as escolas, a criação de condições para poderem funcionar com regularidade. Para a maioria das pessoas, é “o início do ano lectivo”, um momento politizado da agenda comunicacional, que está em causa. Para muitos professores, significa a organização da vida toda e das suas famílias. Este ano significa a sua desorganização.
Com os atrasos ocorridos, os professores vão saber, na melhor das hipóteses, onde vão viver o próximo ano, a uma semana de terem que se apresentar nas escolas, que podem ser no canto oposto do país. Se são sozinhos e solteiros, não é difícil. Se tem família e filhos, (e muitas professoras são jovens mães) , já tudo é muito complicado. O atraso nas colocações é uma enorme perturbação nas suas vidas, afectando dezenas de milhares de pessoas. Sem vantagem para ninguém. Inutilmente.
Eu sei do que falo. Também um dia fui ver a lista de colocações, onde me calhou Boticas, entre Montalegre e Chaves. Naquela altura, a viagem de carro durava pelo menos cinco horas, no Verão, e seis ou sete no Inverno, a partir do Porto, onde vivia. Não conhecia ninguém em Boticas, que não tinha então nenhuma pensão. Isso queria dizer alugar uma casa, se houvesse. Na economia precária de um professor, a que tinha que se somar as viagens e as refeições, pesava. Depois, por mérito dos homens e mulheres de Boticas, nunca esquecerei o tempo que lá passei, mas isso já nada tem ver com os professores.
Nenhuma profissão em Portugal, nenhum sector com este peso numérico, está nestas condições. Em abstracto, até não acharia mal que quem está no início da sua carreira, aceite como normal uma grande mobilidade geográfica. O nosso comodismo profissional e o garantismo na função pública faz com que ninguém se mexa e, mesmo quem precisa de ter um primeiro emprego, se comporta como lhe sendo devidas condições que, noutros países e noutras profissões, toda a gente acharia normal. Insisto, não acho anormal esta instabilidade geográfica numa fase inicial de carreira, em que ter um emprego se paga com sacrifício. Mas não é disso que se trata. Do que se trata é do estado infernizar desnecessariamente, por erros seus, a vida de muitos milhares de pessoas. Pelo menos um pedido de desculpas lhes era devido.
AVANTE PARA TRÁS
O PCP é um caso típico de uma organização política acossada, encostada a um canto, sem poder sair, sem respirar, sem ser capaz de “fazer ondas”, como o mais pequeno estremeção do dr. Louça é capaz de fazer. É uma injustiça irónica da história, para com essa máquina perfeita de poder, que foi o PCP, quase uma vingança do fim do século XX, como se este não quisesse acabar sem antes pôr em ordem todos os seus demónios: o nazi-fascismo em 1945, o comunismo em 1989.
O que é que acossa o PCP? Muita coisa: toda a história do “socialismo real” soviético, toda a história do comunismo, os defeitos dos comunistas portugueses, as qualidades dos comunistas portugueses, o cansaço, a velhice, e a perda de vitalidade social da única instituição política portuguesa que não era “interclassista”. Como era “classista”, dependia das classes que nele se reviam, como muitos trabalhadores industriais do sul e trabalhadores rurais alentejanos. Com o declínio dessas classes, o PCP, que já fora obrigado a sobreviver à orfandade soviética, estiolou.
Há uns anos, disse do PCP que era uma “dinâmica organização da terceira idade” Hoje já nem dinâmica é. Depois, como os males nunca vem sós, o PCP é vítima da arrogância para com os mais fracos, que hoje a comunicação social tem. O PCP, que pôde contar durante muitos anos com a cumplicidade da comunicação social, que manifestava um completo respeito reverencial, acabou soterrado na mais terrível lama, a da indiferença. Com este misto de indiferença, e comiseração, está condenado à irrelevância.
Onde é que está a injustiça irónica nos dias de hoje deste destino? Simples: o PCP é ainda socialmente muito mais importante do que o BE ou o PP. Não só: é também muito mais importante eleitoralmente. Só que não o é em termos culturais e comunicacionais, e na, sociedade do espectáculo, isso significa não existir politicamente.
TERRAS DE HABITUAL SOFRIMENTO
Vale a pena dizer mais alguma coisa sobre o massacre das crianças ossetas? Não sei. Para quem conhece a Rússia do interior ,tudo o que se viu em Beslan é familiar. As casas estragadas, feitas com materiais baratos, as ruas pouco cuidadas, o parque automóvel “soviético”, as roupas baratas, simples nos homens e falsamente espaventosas nas mulheres, as batas, as kalashnikovs nas mãos de todos, a profusão de fardas diferentes, a confusão, a mistura entre a coragem individual e a incompetência criminosa. Nada engana: estamos numa província pobre e desleixada, lá para o fundo de parte nenhuma, do lado de trás do comunismo extinto e dos “novos capitalistas” das matérias-primas.
É um povo que preza a escola, que considera que o primeiro dia de aulas é uma festa cívica, que deve ser recordada toda a vida numa fotografia cheia de laçarotes ou num vídeo com rapazinhos vestidos de crescidos. Foi num dia destes que a Ossetia do Norte descobriu com horror aquilo que sempre soube mas nem sempre quis lembrar – que tem uma das geografias mais perigosas do mundo do século XXI, entre as montanhas chechenas, e os vales sem lei da Geórgia, entre os rivais inguches e os separatistas da Ossetia do Sul, na fronteira de todas as mortes (como essa outra fronteira das Balcãs) que é o Cáucaso. Na Europa.
O PIOR ARTIGO DA SEMANA
António Tabucchi, “Vergonha de Verão”, Diário de Noticias, 5 de Setembro.
Nestes dias, o artigo de Tabucchi é um exemplo da ambiguidade que muitos intelectuais da esquerda radical têm em relação ao terrorismo. Escrito como uma defesa de Adriano Sofri, antigo dirigente de Luta Contínua, condenado pelo assassinato de um polícia, é um retrato sectário e enraivecido da Itália contemporânea. Não conheço o “caso Sofri” para me pronunciar sobre ele com as certezas de Tabucchi. Mas uma coisa eu sei – falta um parágrafo fundamental na sua diatribe contra a “Itália idiota, mesquinha, arrogante, vulgar…”, etc. Este:
“Essa Itália onde, havendo democracia e liberdade, um grupo de deserdados do catolicismo progressista e do leninismo organizacional, chefiados por estudantes e intelectuais arrogantes, condenava à morte políticos, polícias, empresários, chefes de pessoal, sindicalistas, e batia-lhes à porta de casa para lhes disparar uma rajada de metralhadora, ou, aos mais felizes, baleava nas pernas. Essa Itália, sinistra e cruel, que levou mais longe do que qualquer país da Europa, a enorme violência terrorista das ideias abstractas pelo poder de matar alguém.”
Disto, Tabucchi esqueceu-se.
O PEDIDO DE DESCULPAS QUE FALTA
A colocação dos professores é vista por muita gente de forma abstracta e instrumental. Para os pais, significa o alívio de ter os filhos fora de casa. Para as escolas, a criação de condições para poderem funcionar com regularidade. Para a maioria das pessoas, é “o início do ano lectivo”, um momento politizado da agenda comunicacional, que está em causa. Para muitos professores, significa a organização da vida toda e das suas famílias. Este ano significa a sua desorganização.
Com os atrasos ocorridos, os professores vão saber, na melhor das hipóteses, onde vão viver o próximo ano, a uma semana de terem que se apresentar nas escolas, que podem ser no canto oposto do país. Se são sozinhos e solteiros, não é difícil. Se tem família e filhos, (e muitas professoras são jovens mães) , já tudo é muito complicado. O atraso nas colocações é uma enorme perturbação nas suas vidas, afectando dezenas de milhares de pessoas. Sem vantagem para ninguém. Inutilmente.
Eu sei do que falo. Também um dia fui ver a lista de colocações, onde me calhou Boticas, entre Montalegre e Chaves. Naquela altura, a viagem de carro durava pelo menos cinco horas, no Verão, e seis ou sete no Inverno, a partir do Porto, onde vivia. Não conhecia ninguém em Boticas, que não tinha então nenhuma pensão. Isso queria dizer alugar uma casa, se houvesse. Na economia precária de um professor, a que tinha que se somar as viagens e as refeições, pesava. Depois, por mérito dos homens e mulheres de Boticas, nunca esquecerei o tempo que lá passei, mas isso já nada tem ver com os professores.
Nenhuma profissão em Portugal, nenhum sector com este peso numérico, está nestas condições. Em abstracto, até não acharia mal que quem está no início da sua carreira, aceite como normal uma grande mobilidade geográfica. O nosso comodismo profissional e o garantismo na função pública faz com que ninguém se mexa e, mesmo quem precisa de ter um primeiro emprego, se comporta como lhe sendo devidas condições que, noutros países e noutras profissões, toda a gente acharia normal. Insisto, não acho anormal esta instabilidade geográfica numa fase inicial de carreira, em que ter um emprego se paga com sacrifício. Mas não é disso que se trata. Do que se trata é do estado infernizar desnecessariamente, por erros seus, a vida de muitos milhares de pessoas. Pelo menos um pedido de desculpas lhes era devido.
AVANTE PARA TRÁS
O PCP é um caso típico de uma organização política acossada, encostada a um canto, sem poder sair, sem respirar, sem ser capaz de “fazer ondas”, como o mais pequeno estremeção do dr. Louça é capaz de fazer. É uma injustiça irónica da história, para com essa máquina perfeita de poder, que foi o PCP, quase uma vingança do fim do século XX, como se este não quisesse acabar sem antes pôr em ordem todos os seus demónios: o nazi-fascismo em 1945, o comunismo em 1989.
O que é que acossa o PCP? Muita coisa: toda a história do “socialismo real” soviético, toda a história do comunismo, os defeitos dos comunistas portugueses, as qualidades dos comunistas portugueses, o cansaço, a velhice, e a perda de vitalidade social da única instituição política portuguesa que não era “interclassista”. Como era “classista”, dependia das classes que nele se reviam, como muitos trabalhadores industriais do sul e trabalhadores rurais alentejanos. Com o declínio dessas classes, o PCP, que já fora obrigado a sobreviver à orfandade soviética, estiolou.
Há uns anos, disse do PCP que era uma “dinâmica organização da terceira idade” Hoje já nem dinâmica é. Depois, como os males nunca vem sós, o PCP é vítima da arrogância para com os mais fracos, que hoje a comunicação social tem. O PCP, que pôde contar durante muitos anos com a cumplicidade da comunicação social, que manifestava um completo respeito reverencial, acabou soterrado na mais terrível lama, a da indiferença. Com este misto de indiferença, e comiseração, está condenado à irrelevância.
Onde é que está a injustiça irónica nos dias de hoje deste destino? Simples: o PCP é ainda socialmente muito mais importante do que o BE ou o PP. Não só: é também muito mais importante eleitoralmente. Só que não o é em termos culturais e comunicacionais, e na, sociedade do espectáculo, isso significa não existir politicamente.
TERRAS DE HABITUAL SOFRIMENTO
Vale a pena dizer mais alguma coisa sobre o massacre das crianças ossetas? Não sei. Para quem conhece a Rússia do interior ,tudo o que se viu em Beslan é familiar. As casas estragadas, feitas com materiais baratos, as ruas pouco cuidadas, o parque automóvel “soviético”, as roupas baratas, simples nos homens e falsamente espaventosas nas mulheres, as batas, as kalashnikovs nas mãos de todos, a profusão de fardas diferentes, a confusão, a mistura entre a coragem individual e a incompetência criminosa. Nada engana: estamos numa província pobre e desleixada, lá para o fundo de parte nenhuma, do lado de trás do comunismo extinto e dos “novos capitalistas” das matérias-primas.
É um povo que preza a escola, que considera que o primeiro dia de aulas é uma festa cívica, que deve ser recordada toda a vida numa fotografia cheia de laçarotes ou num vídeo com rapazinhos vestidos de crescidos. Foi num dia destes que a Ossetia do Norte descobriu com horror aquilo que sempre soube mas nem sempre quis lembrar – que tem uma das geografias mais perigosas do mundo do século XXI, entre as montanhas chechenas, e os vales sem lei da Geórgia, entre os rivais inguches e os separatistas da Ossetia do Sul, na fronteira de todas as mortes (como essa outra fronteira das Balcãs) que é o Cáucaso. Na Europa.
O PIOR ARTIGO DA SEMANA
António Tabucchi, “Vergonha de Verão”, Diário de Noticias, 5 de Setembro.
Nestes dias, o artigo de Tabucchi é um exemplo da ambiguidade que muitos intelectuais da esquerda radical têm em relação ao terrorismo. Escrito como uma defesa de Adriano Sofri, antigo dirigente de Luta Contínua, condenado pelo assassinato de um polícia, é um retrato sectário e enraivecido da Itália contemporânea. Não conheço o “caso Sofri” para me pronunciar sobre ele com as certezas de Tabucchi. Mas uma coisa eu sei – falta um parágrafo fundamental na sua diatribe contra a “Itália idiota, mesquinha, arrogante, vulgar…”, etc. Este:
“Essa Itália onde, havendo democracia e liberdade, um grupo de deserdados do catolicismo progressista e do leninismo organizacional, chefiados por estudantes e intelectuais arrogantes, condenava à morte políticos, polícias, empresários, chefes de pessoal, sindicalistas, e batia-lhes à porta de casa para lhes disparar uma rajada de metralhadora, ou, aos mais felizes, baleava nas pernas. Essa Itália, sinistra e cruel, que levou mais longe do que qualquer país da Europa, a enorme violência terrorista das ideias abstractas pelo poder de matar alguém.”
Disto, Tabucchi esqueceu-se.