29.8.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 1 (Agosto 2004)

Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré” (Provérbio)


1- OS GENES EGOÍSTAS

Sou devedor à festa da Vila da Marmeleira de uma reciclagem anual de músicas que soem ser chamadas de “pimba”. Durante meia dúzia de dias, incluindo estes em que agora escrevo, os altifalantes actualizam-me os saberes musicais e todos os anos aprendo variadíssimas lições sobre a vida. Nelas se inclui uma canção sobre o Viagra, “Viagra é para levantar o derrubado”, outra sobre um senhor que chega a casa, toma um café, corrijo, “um cafezinho”, ouve “música ambiente” (o que é que será? Desprende-se das paredes? É o barulho da rua? A televisão?) e só gosta de jantar depois da uma: “o jantar sou eu que faço, a cozinha ela arruma”. Não percebi esta fatia do quotidiano. Há também um senhor que “gosta de mamar nos peitos da cabritinha”, e uma história sobre um “macho chifrudo”. Tudo bem, Gil Vicente está vivo e recomenda-se.
Há vários anos que um ou outro refrão, qual gene egoísta, não sai da minha cabeça com vontade de se reproduzir, ou seja que eu fale dele, para transportar muitas outras cópias do mesmo gene egoísta para as cabeças alheias. É o caso de uma canção que berrava alegremente “quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré”, provérbio que me parecia e parece de infinita sabedoria.
Como estamos em tempo de coisas populares, em vez de chamar a estes textos uma qualquer palavra em grego ou latim, ou uma frase profunda daquelas que dão magníficos títulos, quedo-me pelos bichinhos rastejantes. Fica pois estabelecido que o meu objectivo é lutar para manter a saudável diferença entre as lagartixas e os jacarés, o que é (se é!), bem preciso nos dias que correm.


2- TODO O DIA AO TELEFONE COM OS JORNALISTAS

De toda a gente envolvida, só uma parte pode verdadeiramente ferir, quando não matar, o processo da Casa Pia: a Procuradoria. E ferir já o fez. Porque, meus amigos, não somos todos burros. Aquela conversa da assessora veio do sítio onde nenhuma palavra sobre processos deveria vir, onde a última coisa que eu espero que exista é uma “estratégia de comunicação”. Mostra um grau de habitualidade das conversas e uma contínua “negociação” com as fontes. Mostra que não foi a primeira, nem terá sido a última. Conhece-se o resultado num jornal, como terá sido nos outros? Não é a função da assessora, como disse o Procurador, “passar o dia inteiro a falar ao telefone com os jornalistas”. A falar de quê, numa casa de segredo, discrição e reserva? Será que o assesssor(a) de imprensa do SIS também passa o dia “a falar ao telefone com os jornalistas”? Sei lá, tudo é possível.


3 – O MELHOR ARTIGO DA SEMANA - FÁTIMA BONIFÁCIO “Mais Dinheiro para a Educação?” ( Público, 15 de Agosto 200)

O artigo de Fátima Bonifácio sobre a ignorância colectiva cada vez mais catastrófica, dos estudantes, é uma chamada de atenção que irrita muita gente. Irrita país, famílias e estudantes porque remete para critérios que eles há muito abandonaram, e para valores que não têm força nas sociedades mediáticas. Os seus críticos dizem que este tipo de afirmações são recorrentes e em nada contribuem para resolver o problema. À esquerda, suspeita-se que elas são um manifesto contra a democratização do ensino pós -25 de Abril e os interesses dos professores. Discordo. Saúdo o mérito do artigo porque chama a atenção para um problema que em vez de melhorar, piora. E piora por razões ideológicas e políticas.

4 - TRAIDORA TRADUÇÃO – CARNIFICINA, CULTURA E HISTÓRIA

Porque é que o Ocidente ganhou, pelo menos para já? Uma parte decisiva da explicação está em que combate melhor. No campo de batalha, quando se opuseram não apenas dois exércitos, mas dois mundos culturais e civilizacionais, o espírito de iniciativa, a liberdade, a defesa da “terra”,associada à tendência para o confronto directo, frontal, violento, para a “guerra total”, para a destruição impiedosa do inimigo, faz a diferença. O livro de Victor Davis Hanson, Why the West Has Won, pretende explicar as vantagens da conduta dos soldados, oficiais e generais ocidentais no terreno da batalha, em relação aos seus congéneres não “ocidentais”. E o livro tem o enorme mérito de o explicar a partir de análises de afrontamentos tão diversos como Gaugamela, Lepanto, a guerra contra os zulus, ou o combate aero-naval de Midway. Claro que há algumas generalizações e alguns paralelos evitados, porque confundiriam a tese (as forças armadas soviéticas e nazis na II Guerra mundial, ou a guerra civil americana), mas é um muito interessante e actual ensaio histórico, a traduzir absolutamente.

7.8.04

TRAIDORA TRADUÇÃO - A NOSSA MAFIA CASEIRA (Julho 2004)

David Lavery (editor), This Thing of Ours. Investigating the Sopranos, Columbia University Press, 2002

Os Sopranos ficarão como uma série que revolucionou a televisão, não só pela sua qualidade genérica, mas também pelos notáveis guião, representação e realização. Num certo sentido, tem muitas semelhanças com o Dallas, uma série onde os maus dominavam o ecrã, entre o negócio, o crime, a cama, o psiquiatra e a família. No entanto, as diferenças são significativas: o Dallas era anti-capitalista, e os Sopranos são liberais; os maus do Dallas eram ricos e distantes, viviam nos bares e restaurantes dos hotéis de luxo da América do interior, e os maus dos Sopranos vivem entre o subúrbio étnico e o “american trash”. Daí que as pessoas gostassem de odiar os Ewing, e não consigam odiar Tony Soprano e a sua “equipa”.
Esta empatia é talvez o ponto mais interessante das análises da colecção de ensaios de responsabilidade de David Lavery, intitulada This Thing of Ours, um dos livros mais interessantes sobre os Sopranos, e uma antologia, típico produto da academia americana. Os títulos dos ensaios são magníficos e bem conformes com o mundo retratado entre os Sopranos e os filmes de Tarantino: “Fat fuck! (intraduzível) Porque é que não olhas para o espelho? Imagem do corpo e masculinidade nos Sopranos”, ou “Cunnilingus e Psquiatria fizeram-nos chegar até aqui? “, ou “Por detrás do Bada Bing! Negociando a autoridade na narrativa feminina”, ou o “Dezoito de Brumário de Tony Soprano”, ou “A brutalidade da carne e o carácter abrupto dos mariscos”, e por aí adiante.
É verdade que Tony Soprano nem sequer imagina o que é o Dezoito de Brumário, mas os Sopranos têm de tudo para toda a gente. Um dos mais interessantes capítulos deste livro é uma lista exaustiva das referências intelectuais dos Sopranos, que vai de Coleridge, a Robert Nozick, passando por Nietzsche, pela “madalena” de Proust (comentário de Tony, quando a psiquiatra Melfi lhe fala de Proust: “sounds very gay”), pelo Talmud, Sharon Stone, Tenneessee Williams, Rasputin – uma verdadeira enciclopédia da cultura erudita e popular ocidental. Não é fundamental saber que é Edgar Allan Poe “o tipo que fez toda aquela merda do Vincent Price (“Vincent Price shit”) ”, como diz Tony, quando a filha descobre um ensaio na Internet para copiar e assim fazer um falso trabalho para o namorado mafioso, para se gostar dos Sopranos. Mas para os émulos da dra. Melfi, a psiquiatra, ajuda. Aliás, a série é considerada pelos profissionais da psiquiatria aquela que melhor retrata o trabalho da profissão e os seus impasses.
Para os comuns mortais, resta tudo aquilo que é analisado neste livro: as disfunções familiares mais triviais numa família nuclear, as pequenas redes étnicas de partilha, entreajuda e competição, o provincianismo dos subúrbios (embora os subúrbios de Nova Iorque sejam uns subúrbios muito especiais), a mediterrânica contradição entre a honra e a vergonha, o machismo e as suas fragilidades, a centralidade da comida e do sexo, a criminalidade violenta (mata-se e tortura-se nos Sopranos), mas, mesmo assim, tão caseira e kitsch. A história também é retratada em acto, com a presença das mafias russas assumindo um papel crescente no mundo do crime, e a crescente disparidade entre o mundo das mulheres de meia idade, casadas com a geração mafiosa no poder, e as raparigas mais novas, como Meadows, que namora um negro e se dedica a causas da esquerda, tanto quanto há uma esquerda americana.
O que faz dos Sopranos uma série marcante, daquelas que definem um antes e um depois, é o excepcional trabalho, a qualidade e natureza inventiva, mérito da HBO, produtora para canal de cabo, o único onde nos EUA podem passar os Sopranos com a sua linguagem obscena e a violência. “It’s not TV . It’s HBO”, escreve-se num dos ensaios deste livro em que se esboça uma história desta produtora e do canal que a suporta, um dos exemplos da inanidade inútil da “excepção cultural” com que os franceses querem barrar a “americanização” da Europa, que eles acham que é a França em grande. Enquanto existirem séries como os Sopranos, ou como, no passado, a Twilight Zone, só os ingleses, os “nossos” americanos, são capazes de competir em criatividade e mudança, como é o caso do Monty Python, ou do Yes Prime Minister, obras-primas a seu modo. A continuar assim, a televisão continuará a ser uma arte americana.

2.8.04

Miguel Veiga - INTERVENÇÃO NO CONSELHO NACIONAL DO PSD EM 11 DE JULHO DE 2004

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( MIGUEL VEIGA )

A decisão dilemática e muitíssimo problemática do Presidente da República (pretendo e julgo saber que só tomada na própria manhã que precedeu o Conselho de Estado já que, na noite anterior, o Presidente da República estaria inclinado, fortemente inclinado, para a dissolução) pôs termo, finalmente, felizmente, à primeira e maior das minhas, das nossas, preocupações, inquietações e quase angústias político-partidárias e, sobre elas, nacionais: a de conjurar os riscos e perigos de umas eleições antecipadas. Nesse sentido, intervim publicamente e levantei a minha voz do texto que previamente escrevi para este mesmo e anterior Conselho Nacional. Fi-lo, não porque escrever seja uma forma de falar sem ser interrompido – o que algumas vozes neste mesmo Conselho vieram provar o contrário – mas para que essa minha intervenção não pudesse ser, na sua clara intenção e no seu firme teor, vir a ser deformada e adulterada, como é do hábito de alguns nesta casa.

Assim, em resenha, repito o que escrevi e disse para aqueles que tiveram a paciência de me ouvir: “Uma coisa tenho como certa: temos a obrigação moral e política de evitar pretextos para que haja eleições antecipadas. É este o meu empenho. São estas as razões, o sentido e o propósito da minha consciência política, como PSD e como cidadão. E sei, pela sua história, que o Partido é capaz de surpreender o País.”. Nessa ordem de ideias, então propus a solução de uma terceira via, hoje já ultrapassada.

A decisão do Presidente da República, que não se lia nos astros nem se previa à luz da razão, pois eram muitas, diversas e até antagónicas as razões produzidas num e noutro sentido, arredou o risco, o perigo de eleições antecipadas e, assim sendo, sou o primeiro a congratular-me com ela.

Só que, no discurso que a motivou, o Presidente da República não deixou de repetir expressiva e significativamente – e muito – que não deixaria de avaliar permanentemente a execução rigorosa do programa governativo, nomeadamente nas áreas da Europa, da política externa, da defesa nacional, da justiça e do rigor orçamental das finanças (o que deverá ser entendido não apenas pela intersecção dessas áreas, com a excepção da da justiça, com as áreas da sua competência específica presidencial).

Só que o Presidente da República não se ficou apenas por essa intenção de vigilância permanente, ou seja, de um governo vigiado, isto é, de um estado de “inspecção permanente” o que aliás, constitucionalmente é de âmbito interpretativo muito discutível já que o Presidente da República não pode intervir na governação.

Só que nesse discurso o Presidente da República anunciou uma cominação implícita: “assumirei a plenitude dos meus poderes constitucionais”. O veto legislativo (que poderá ser ultrapassado pelo Parlamento), o recurso à inconstitucionalidade (que é pontual e vago), não são para tanto eficazes e decisórios.

Só que, e daí esta minha intervenção, permito-me chamar a atenção deste Conselho, e por que não da Comissão Política e do Presidente do Partido, o que faço não como um conselho mas como um aviso de quem não é ignorante: É que constitucionalmente o Presidente da República pode recusar nomes do futuro elenco governativo e até a nova orgânica do próximo governo.

Dizem-no todos os constitucionalistas, inclusivamente aqueles que o Presidente da República ouviu ponderada e minuciosamente antes de tomar a sua decisão.

Na decisão sobre a formação do novo elenco governativo e na sua orgânica haverá que ter em conta esse soit disant “direito de veto” do Presidente da República nessa nomeação. E melhor decide quem melhor prevê, Dr. Pedro Santana Lopes.

Permito-me este aviso, não me atrevo ao conselho, porque o entendo como relevante, que é, em ordem a conjurar os perigos e riscos de um “direito de veto” presidencial, porventura improvável mas certamente possível.

A decisão do Presidente da República, aquém ou para além das suas fundadas razões, foi uma decisão corajosa, precisamente porque foi tomada ao arrepio da sua própria família política, e do seu clã pessoalmente mais próximo, o do Dr. Ferro Rodrigues (os outros, do Dr. João Soares ao Dr. Sócrates – penso estarmos a entrar num período pré-socrático – do Dr. Lamego, a demarcar o território para um regresso de António Vitorino, ao Dr. Jaime Gama) o que se vai traduzir, a curto prazo, numa inflexão moderada do PS a que o eleitorado do centro-esquerda e do centro – que com o PS disputamos - não será insensível. Digo-o com alguma apreensão já que sendo o meu adversário o PS, a continuação na sua liderança do Dr. Ferro Rodrigues, dada a sua debilidade, era, como costumo dizer, um esteio do nosso “seguro de vida”...

Falei de decisão corajosa porque, sobretudo e acima de tudo, considero a coragem a primeira e a maior das virtudes políticas.

E, por que falo de coragem política, é esta, Pedro Santana Lopes, uma das certas qualidades políticas que nunca deixei de lhe reconhecer.

E digo-lhe (neste preciso momento) o que repito e reitero, o que letra por letra, eu lhe disse no último Conselho: “a sua personalidade – que eu estimo e a quem reconheço certas qualidades políticas, embora amiúde me desgoste e me afaste do seu estilo, amiúde e, lamentavelmente para mim, populista e até me indisponha e afaste no plano das próprias convicções políticas, sendo que as minhas são de arreigadas matrizes e desenvolvimentos sociais-democratas ao arrepio das liberais e das da democracia cristã, na fidelidade às matriciais bases programáticas com que fundámos e difundimos uma social-democracia à portuguesa, esta sim ainda com a marca indiscutível, que não foi outra a de Francisco Sá Carneiro, que ele nos deixou em vida e nos legou por morte, sem derivas para o conservadorismo, para um liberalismo puro e duro, para uma direita radical, para um regresso a uma Europa nacionalista, para uma fusão com um PP do Dr. Paulo Portas num partido dito liberal, de social liberal.

Não tenho qualquer preconceito pessoal sobre si Dr. Pedro Santana Lopes. Tenho, sim, conceitos diferentes sobre o modo de estar e fazer política, tenho, sim, conceitos diferentes em termos das próprias convicções social-democratas.

E repito o que disse no anterior Conselho: só falo estritamente de política e em termos políticos pois me recuso a outras invasões espúrias ou outras intromissões preconceituosas sobre o modo de vida de quem quer que seja. Aliás, todos os que me conhecem sabem que o puritanismo e até os falsos pudores vitorianos não são a minha chávena de chá...

Senhores Conselheiros:

O meu adversário político é o Partido Socialista, hoje em sobressaltado e dividido ... ... pousio. Nesse combate combaterei, alinhado ou desalinhado, com os meus correligionários sociais-democratas, sim, com aqueles que considero da minha família política no PSD, que também a tenho e de há muito.

As reservas e as objecções que levantei e, mantenho, quanto a Si Dr. Pedro Santana Lopes, reitero-as quanto a ele já como Presidente do Partido, já como indigitado 1º Ministro. Não serei seu adversário mas, na minha consciência política não lhe posso dar os meus vivas, nem o meu apoio nem o meu voto. Aliás nestes escassos dias que vão desde a sua eleição para Presidente do Partido neste Conselho, ele, aos meus olhos, nem perdeu os defeitos que lhe apontei nem ganhou as qualidades cuja falta eu para tanto lhe apontava.

E, tal como na anterior votação eu votei contra, nesta abster-me-ei na plenitude da minha própria consciência política. Nenhum secretismo de urna poderá encobrir ou disfarçar a minha convicção. Uma pessoa, pelo menos, entre a centena deste Conselho sei que terá de compreender a minha atitude: o próprio Dr. Pedro Santana Lopes. Quem foi, como Pedro Santana Lopes, durante tantos e tantos anos opositor e derrotado, e até trouble-maker contra tantos líderes no nosso Partido, sabê-lo-á melhor do que ninguém.

E, vou terminar, agora já regressado aos meus tiques literários, com a invocação de um grande poeta da minha preferência. Senhores Conselheiros: “O meu copo é pequeno mas eu só bebo no meu copo”. *



* Ouvem-se uma dúzia de palmas avulsas. Miguel Veiga votou e, à saída, abordado por enxame de jornalistas, uma perguntou-lhe sem tir-te nem guar-te: “Então, Dr. Miguel Veiga, gostou do que ouviu? Miguel Veiga respondeu-lhe: “Só gostei do que eu disse”.

Miguel Veiga - INTERVENÇÃO NO CONSELHO NACIONAL DO PSD EM 1 DE JULHO DE 2004

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(MIGUEL VEIGA )

Compreendo, num plano pessoal, humano e até político, a aceitação pelo Dr. José Manuel Durão Barroso da Presidência da Comissão Europeia.

Mas, sublinho, que, para nós, portugueses e, antes de mais, nestes tempos difíceis de crise que Portugal atravessa, esse cargo, essa função não é mais importante do que a de Primeiro Ministro de Portugal. Sobretudo quando este governo, sob a sua batuta e direcção, tinha arduamente empreendido, contra ventos e marés, a execução de um programa de rigor, de severidade, de coragem, num estilo, numa marca louvavelmente não populista e até, honra lhe seja, anti-populista, que, impondo embora sacrifícios aos portugueses, se propunha remediar e sanar os perniciosos e gravosos efeitos herdados das derivas e dos desatinos da imponderada e desgraçada governação socialista. Nessa louvável empresa a que o Dr. Durão Barroso meritoriamente se lançou com severa e obstinada governação – e que sempre mereceu o nosso apoio e elogio – o Dr. Durão Barroso, como Ministro de Portugal, centrou-se e ancorou-se numa personalidade forte, séria, competente e não vacilante que, por ela própria e pela sua acção, demonstrou, no campo concreto do exercício governativo, ser a pedra axilar do seu elenco e do seu programa: a Ministra das Finanças, Drª Manuela Ferreira Leite, como tal segunda figura do seu governo.

Só que a execução do programa estava, como ainda está, a meio, tornando-se necessário, nos condicionalismos actuais, nacionais, europeus e mundiais, imprimir-lhe ainda mais vigor, mais rigor, mais competência e maior eficácia, o que os portugueses esperavam da qualidade, do talento, do patriotismo e do sentido de Estado e da governação do Primeiro Ministro de Portugal numa estratégia assente na continuidade, fundada na coerência da execução do programa e da acção governativa, e nessa estabilidade e nessa segurança que são indispensáveis a qualquer navegação para se chegar a bom porto, para levar a carta a Garcia, como sempre, aliás, o Primeiro Ministro não se cansava de invocar. Neste plano se referencia e reporta a decantada confiança política.

Só que a aceitação da presidência da Comissão Europeia implicava necessariamente o abandono, a vacatura da função de 1º Ministro de Portugal. E com ela, necessariamente também, a nomeação de um novo e outro 1º Ministro, ou de um 1º Ministro-outro no dizer Pessoano, com o seu respectivo e novo elenco governativo.

Só que, está de há muito escrito na nossa Constituição e até dito pelo histórico Constitucional (veja-se o pretendido governo Vitor Crespo e o propósito gorado de Mário Soares, depois de dissolvido o governo PS-CDS), que essa nomeação do 1º Ministro depende, em última e definitiva análise e em exclusiva e superior instância, da decisão única e discricionária do Presidente da República.

E, portanto, comportava ela o risco, seriíssimo, e o perigo, gravíssimo, de, não sendo aceite o nome proposto, acarretar a convocação de eleições antecipadas, interrompendo a execução do programa e ainda a ameaça terrível de, na nossa circunstância, os seus resultados nos poderem vir a ser desfavoráveis, levando-nos à entrega do poder, por 4 anos, aos socialistas com as consequências deletérias e nocivas para Portugal.

Havia, pois, necessária e previamente, que assegurar que esse risco, esse perigo, esse dano fossem esconjurados ou, pelo menos, minimizados a um risco menor e politicamente aceitável. O que se lhe impunha e era exigível.

Vejamos mais de perto.

São dois planos e duas questões distintas: a demissão dependente do Primeiro Ministro e decorrente da aceitação da Presidência da Comissão Europeia – um; outro, o segundo, consequência inevitável do primeiro, a escolha do novo Primeiro Ministro, cuja aceitação estava, como está, dependente do Presidente da República. Só que a decisão (demissão) do 1º punha o 2º (escolha do substituto) nas mãos do Presidente da República.

E, para influir e determinar porventura a vontade deste, era indispensável propor um novo Primeiro Ministro, senão igual ao primeiro, pelo menos dotado das qualidades pessoais e políticas que haviam norteado a acção do demissionário, dele e do seu governo. Uma personalidade, se não igual, ou um alter ego, pelo menos reconhecidamente, publicamente aceitável em termos de consensualidade, vale por dizer, capaz de assegurar a decantada continuidade e estabilidade na execução do programa governativo, gerador de confiança política.

Ora, para surpresa de todos nós e desencanto de muitos, entre os quais modestamente me incluo, nem esse processo foi preparado com segurança* pois, pior que isso, foi lançada uma personalidade política, a do Dr. Pedro Santana Lopes – que eu estimo e a quem reconheço certas qualidades políticas embora amiúde me desgoste e me afaste do seu estilo, amiúde populista, e até me indisponha e afaste no plano das suas convicções políticas, sendo que as minhas são de arreigadas matrizes e desenvolvimentos social-democratas, ao arrepio de quem, como ele, já pretendeu fundir o PSD com o CDS num único partido, de direita dura e liberal, que ele já tinha baptizado de PSL, de partido social liberal. Quem é que subverte o legado e o sonho políticos de Francisco Sá Carneiro?

Personalidade esta do Dr. Pedro Santana Lopes que não só é questionável mas questionada, não só controversa mas controvertida, não só altamente discutível mas discutida mas, sobretudo, polémica em todos os meios da política portuguesa e da nossa sociedade.

Não há consenso quanto à sua competência ao nível de um Primeiro Ministro, quanto à sua credibilidade, à sua fiabilidade, à sua estabilidade e à sua espessura político-constitucional, requisitos indispensáveis não só à função mas à sua continuidade em termos de estabilidade e eficácia, à confiança que dele é exigível.

E, logo, realidade indiscutível, a projecção do seu nome, “et pour cause”, dividiu de alto a baixo o governo do próprio Primeiro Ministro de Portugal Dr. Durão Barroso. Da sua Ministra chave passando aos seus Ministros mais relevantes e competentes (v. gr. da Drª Manuela Ferreira Leite à Drª Teresa Gouveia, ao Dr. Marques Mendes e tutti quanti).

O Dr. Pedro Santana Lopes divide, não une o nosso PSD, e divide o nosso tradicional eleitorado, o Povo PSD. Não é consensual. É, ao invés, controvertido e polémico. E a sua propositura a Primeiro Ministro agravará as condições de estabilidade e continuidade, e nesse sentido falo de consensualidade, de confiança, o que poderá fazer pender, possivelmente a nosso desfavor, o juízo de convicção e de fundo do Presidente da República e a sua pronúncia decisória.

Será fácil, facílimo, prever o que lhe foram dizer a este respeito as personalidades para tanto auscultadas pelo Presidente da República já que, com ou sem declarações públicas, sabemos, e alguns de vós até sabê-lo-ão mais directa, imediata e pessoalmente, já que nunca esconderam nem escondem a este mesmo respeito a sua opinião e resposta. E que não são de agora.*

Permito-me referenciar a um por todos, como presença e mentor tutelar do nosso PSD e de vós, na vossa imensa maioria, o Prof. Cavaco Silva! Não sabem alguns de vós? Perguntem-lhe, perguntem-lhe então o que ele pensa para melhor informarem e formarem o vosso juízo político.

Perante este ambiente dilemático, angustiante e dramático ( havida como a decisão mais complexa a tomar pelo Presidente da República) – eleições antecipadas ou não (as 1ªs com os riscos, os perigos e os danos gravíssimos para todos nós, para o nosso Partido, e sobretudo para o País), haverá, no meu entender que fazer o possível e o impossível, para tentar evitá-lo:

Procurar encontrar, dentro ou fóra do Partido, uma personalidade cujo perfil, cuja estatura, cuja competência, cujos méritos e cujas capacidades, reconhecidamente indiscutíveis, nos assegurassem a continuidade e a eficácia da governação empreendida, geradora da confiança política e, assim, da possibilidade de vir a ser aceite pelo Presidente da República e, consequentemente, de evitar as eleições antecipadas.

E não se diga que a previsível e próxima eleição do Dr. Pedro Santana Lopes como Presidente do PSD seria desde logo obstáculo impeditivo para tanto porquanto quer ele quer a comissão política poderiam, se assim o viessem a entender, tomar essa decisão de clarividência e humildade políticas.

O que ao Dr. Pedro Santana Lopes nem causaria engulhos de honestidade política ou de probidade intelectual já que foi ele quem defendeu, e acerrimamente como é do seu timbre, a possibilidade e até a vantagem da separação e repartição entre pessoas diferentes do cargo de Presidente do Partido e do cargo de Primeiro Ministro. A não ser que, na circunstância, ele já haja mudado novamente de opinião. O que, quanto a mim, também não me surpreenderia dada a sua conhecida e proverbial volubilidade e renovada versatilidade políticas. E, por mim falo, eu que aqui só falo estritamente de política e em termos políticos pois me recuso a outras evasões espúrias ou outras intromissões preconceituosas sobre o modo de vida de quem quer que seja.

E quanto às eleições que se seguem, de hoje?

A competência primeira e suprema para eleger o Presidente do Partido e da Comissão Política é do Congresso – órgão supremo do Partido – art. 14º, nº 1 al. d).

Ao Conselho Nacional, a este CN, compete (subsidiária e supletivamente), eleger o substituto de qualquer dos titulares dos órgãos nacionais do Partido no caso de vacatura do cargo ou de impedimento prolongado, sob proposta do respectivo órgão – artº 18º - 2.

Só que os planos são diferentes, diferentes são os universos do eleitorado, as opções e escolhas, os debates, as propostas, o contraditório, são radicalmente diferentes.

Todos nós o sabemos e, melhor do que ninguém, o próprio Dr. Pedro Santana Lopes, que já foi três vezes a Congresso, em três disputas homéricas, que todas elas perdeu.

Acresce que é ao Conselho Nacional que compete igualmente aprovar as propostas referentes ao apoio a uma candidatura à designação de candidato a Primeiro Ministro – al. f) do mesmo artigo.

Escolher o Presidente do Partido não é escolher o proposto a Primeiro Ministro. Insisto e sublinho com ênfase político.

São previsíveis, e largamente, os resultados favoráveis da votação deste conselho quanto à eleição do Dr. Pedro Santana Lopes como Presidente do Partido. O facto consumar-se-á, do que não tenho dúvidas nem alimento vãs expectativas, daqui a pouco.

Mas, permito-me questionar, será satisfeita a legítima ambição do Dr. Pedro Santana Lopes em ser Presidente do PSD com esta nomeação, em estado de necessidade, de substituição do Dr. Durão Barroso através deste universo supletivo e suplente do Conselho Nacional em relação ao universo supremo de um Congresso? A sua ambição, que é legítima, não sairá diminuída na sua legitimidade de fundo, que não já na sua legitimidade jurídico-formal, esta que tenho como indiscutível?

Entrar pela porta grande é uma coisa, entrar pela porta estreita, sumida e de emergência é outra sob o ponto de vista da legitimação de mérito e da credibilidade, da confiança política, reportada no seu grau e força, aos processos e aos universos dos diversos e distintos sufrágios.

Poderia até encarar uma presidência interina como 2º Vice-Presidente do Partido, em gestão corrente, e à imagem do governo, até ao próximo Congresso que seria convocado de urgência.

Senhores Conselheiros:

É este o meu entendimento. Uma coisa tenho como certa: temos a obrigação moral e política de evitar pretextos para que haja eleições antecipadas. É este o meu empenho. São estas as razões, o sentido e o propósito da minha consciência política, como PSD e como cidadão.

E sei, pela sua história, que o Partido é capaz de surpreender o País.

Declarou com ênfase o Dr. José Manuel Durão Barroso que não há pessoas insubstituíveis. Só que a questão não é essa. A questão é a de saber e escolher quem são os substitutos.

Finalmente:

Queria desejar-lhe Dr. José Manuel Durão Barroso, êxitos e sucessos no seu cargo de Presidente da Comissão Europeia. O que lhe exprimo como seu amigo, correligionário e convicto europeísta que desde sempre fui tal como o meu caro Amigo. Mas permita-me uma observação que embora timbrada de ironia, não deixa de ser pesadamente realista e política.

Como irá entender-se, no plano europeísta, com quem ainda há dias declarou, o que repito expressis et apertis verbis, “que irá bater o pé à Europa e lutar por um regresso à componente nacionalista”? As afirmações não são minhas, são do Dr. Pedro Santana Lopes. Sem comentários, por dispensáveis.

Vivo num estado de grande preocupação, da maior inquietação e de quase de angústia com os riscos e perigos da situação actual. O que me atormenta e me apoquenta. E muito, muitíssimo.

Não terminarei desta vez com a invocação de um poeta ou a citação de um escritor, muito aos meus gostos e tiques literários. Mas, sim, com um presságio da sabedoria popular: a minha antiga empregada veio acompanhar-me ao táxi que me levou ao avião e, no percurso, enquanto me batia amistosamente nas costas, dizia-me ela: “senhor doutor, não se apoquente, não se apoquente, não se apoquente tanto, saiba que uma desgraça nunca vem só. Uma desgraça nunca vem só! E por aqui me fico e tenho dito.*



* Neste momento, o Dr. José Manuel Durão Barroso interrompeu Miguel Veiga para declarar que já tinha dito que ficara inteiramente e plenamente convencido pelas conversações havidas com o Presidente da República que este, do mesmo modo que aceitaria a sua demissão de 1º Ministro, encorajando-o até à Presidência da Comissão Europeia, não impediria a continuação da governação PSD-PP. E interpelou Miguel Veiga: quais são os factos que conhece e as fontes que lhe permitem pensar o contrário? Ao que Miguel Veiga retorquiu: o que li nos jornais através do comunicado escrito do próprio Presidente da República, declarando que não se tinha comprometido com essa continuidade governativa. Era o que estava escrito pelo próprio Presidente da República e ele Miguel Veiga tinha lido. E nada mais. Ou só: saiba Dr. José Manuel Durão Barroso que não fui a Coimbra para aprender a ler.

* Vozes interrompem o orador chamando-lhe “bruxo, bruxo”. Miguel Veiga interrompe o curso da sua intervenção e responde em alto som “não sou bruxo, nem Zandinga, nem Zandinga”. E mais: “o que eu não sou é ignorante”.

* Sem uma única palma nem vaia, num silêncio sepulcral.