MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (Abril 2005)
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1. O PSD tem dentro de si vários “partidos” num só partido. O PS também, mas em menor quantidade, por isso é que o PSD é “o partido mais português de Portugal”, velha classificação que está longe de ser apenas propagandística, mas é também descritiva. Nos últimos dez anos, o PSD tem vindo a perder os “Portugais” que cabiam dentro dele. Mais: tem vindo a perder os “Portugais” mais dinâmicos socialmente, aquilo a que tenho chamado o equivalente moderno dos self made man originais, sem os quais qualquer programa de reformas deixa de ter base partidária e eleitoral de apoio. E isso reflecte-se de uma forma evidente no enquistamento do partido, na degradação do seu património de quadros, na cada vez menor influência social, muito para além das suas vicissitudes eleitorais, talvez até o último indicador que escolheria para retratar tal processo. O problema do PSD é começar a ter só um Portugal ou dois dentro de si e a ser mais um partido do Portugal do passado do que do futuro. Este dilema não será resolvido no Congresso, mas é o dilema que pesará em cima de qualquer liderança que não queira ser transitória, ou pior ainda, ajudar a aprofundar o divórcio entre o PSD e a sociedade portuguesa.
2. Como todos os partidos democráticos o PSD foi construído depois do 25 de Abril por dois factores: um, a resistência ao PCP e ao PREC; outro, no estado e a partir do estado. O primeiro mecanismo de construção, - partidos “feitos” pela resistência ao avanço comunista e radical de 1974-5 - , foi comum ao PSD e ao PS, que também praticamente não existia antes do 25 de Abril. Ambos são o que são por essa característica genética da fundação da nossa democracia, 48 anos de Estado Novo e dois de PREC, que marcou o equilíbrio esquerda-direita para muitos e bons anos. Depois apareceu o “centro” que os ideológos da “esquerda” e da “direita” dizem que não existe, mas, para infelicidade eleitoral de ambos, existe mesmo e “manda”.
E “manda” porque as sociedades ocidentais são suficientemente complexas para não caber nas dicotomias ideológicas de um mundo apenas construído pela combinação da herança da revolução francesa com a revolução industrial. Hoje há outras “revoluções” em curso que viraram a página, entre as quais, a gerada pela “consciência do fim” termo-nuclear, que deve ser repensada no terrorismo apocalíptico, e a existência de novas tecnologias perturbadoras do político, entre as quais a engenharia genética, e aquilo que se chama, um pouco impropriamente, a “revolução mediática”. Em Portugal, uma vez estabilizada a democracia, entramos no mesmo curso político das outras democracias, geramos um “centro” que vota solto, ou menos preso, e que, mais do votar, “comanda” o voto.
3. O segundo factor, - a construção dos partidos pelo estado - , é o mais fácil de descrever: para combater o PCP, o único partido que tinha emergido da ditadura com um aparelho político nacional e que mostrou, desde os primeiros dias depois do 25 de Abril, ter intenções hegemónicas, os partidos democráticos usaram o estado para crescer e se consolidar. Fizeram-no através do exercício do poder político, partidarizando as estruturas da nova democracia para poderem colocar lá os “seus” e não os de Salazar ou do PCP, atribuindo-se privilégios de controlo do espaço público, e garantindo o monopólio da acção política aos partidos de eleitores em detrimento dos partidos de militantes.
Estes mecanismos de controlo, – de que são exemplos os impedimentos a listas de independentes para a Assembleia da República, ou aos eleitores de escolherem a ordem de nomes dentro das listas apresentadas –, já tiveram o seu tempo e hoje devem ser repensados de modo a permitir maior papel dos eleitores nas formas da sua representação. Muitos outros mecanismos que tinham uma função “construtiva” no iniciar da democracia, tem hoje efeitos perversos e geram uma crise da representação.
4. O PSD de Sá Carneiro e dos outros fundadores assentou na sólida formação política que todos eles tinham, com base na doutrina social da Igreja, no conhecimento da social-democracia europeia ao modo alemão e nórdico, e na experiência portuguesa da “ala liberal” do marcelismo. Tinham preocupações com os direitos cívicos, com a pobreza e o atraso da sociedade portuguesa, olhavam para a Europa comunitária como um modelo, e eram “desenvolvimentistas”. Para cumprirem o seu programa precisavam de acabar com as imperfeições democráticas que sobravam do PREC, tendo tido sucesso mais rápido no plano político, e mais lento no plano económico, porque o PS bloqueou, muito mais do que devia, a revisão da parte económica da Constituição. Este processo teve como momentos políticos principais depois de 1976, a vitória da AD, a primeira alternância real do poder democrático; a vitória de Soares na primeira volta das eleições de 1985, contra os restos do basismo de Pintasilgo e o plano comunista de “igualizar”, fragilizando o PS, com a junção de votos PRD e PCP com Zenha; e por fim, a maioria absoluta de Cavaco, tendo como consequência o primeiro governo que defrontou uma sociedade política essencialmente democrática e de economia de mercado. Privatizações e abertura do espaço televisivo, ambos obra de Cavaco, representaram, junto com a entrada na UE, os últimos momentos definidores do contexto actual da nossa política. A partir daí houve desenvolvimentos, não houve mudanças.
5. O PSD foi construído, numa primeira fase, no topo, com quadros que tinham vindo da oposição liberal do regime marcelista, da chamada “ala liberal”, oriundos das listas na fase inicial da transição marcelista, da SEDES, do Expresso, dos círculos católicos ligados à doutrina social da Igreja, e, numa expressão menos significativa, de algumas figuras da oposição republicana e maçónica mais moderada à ditadura. Eram na sua maioria, como era típico da elite política de um país pobre e pouco desenvolvido, advogados e juristas. Na base, o PSD recolheu os restos das estruturas locais da ANP, e começou a recrutar as suas “bases” entre os notáveis e “homens bons” locais, entre os pequenos empresários e comerciantes, na altura alguns dos sectores mais dinâmicos do Portugal do interior. A estes sectores somaram-se emigrantes e retornados, ambos sectores igualmente com grande mobilidade social. Foi esta composição que permitiu a classificação do PSD como partido dos self made man, gente independente do estado, que tomava conta da sua vida e que queria “progredir”. A estes juntaram-se jovens que nas escolas defrontavam a hegemonia comunista e esquerdista, e que, mais tarde, vão começar a fazer variar a composição profissional do partido, com mais engenheiros, mais economistas, mais médicos.
8. Só para termo de comparação, o PS formou-se de forma bastante distinta. O partido tinha um núcleo político e ideológico forjado na oposição, vindo quer de pessoas que eram antigos comunistas, quer de notáveis republicanos e mações. Depois do 25 de Abril, agregou rapidamente funcionários públicos, professores, e elementos das profissões liberais urbanas. Um número escasso de quadros sindicais, dos bancários, dos seguros e dos empregados de escritório, ligaram-se ao PS, assim como certos grupos profissionais como os pescadores. Enquanto no PSD entraram os quadros locais da ANP, no PS entraram personalidades de topo dos governos de ditadura, algumas das quais da Maçonaria. O PS era um partido mais envelhecido que o PSD, com pouca juventude e, de um modo geral, englobando pessoas mais dependentes do estado.
9. Com os anos, e com a estabilização da democracia, os dois partidos foram recebendo outros fluxos. Os antigos esquerdistas entraram para o PS e o PSD, por esta ordem. Alguns jovens da extrema-direita pós-25 de Abril entraram para o PSD. O PS recebeu também quadros comunistas oriundos de sucessivas cisões “renovadoras”. À medida que o comunismo ia perdendo o seu poder de atracção, a maioria dos intelectuais aproximava-se do PS, assim como o sector cada vez mais importante nas cidades da “animação cultural”, enquanto o PSD começava a apelar a economistas e gestores e aos “negócios”, como nunca acontecera até então. Crescendo por cima e por baixo, em quadros e experiência, os dois partidos iam abandonando a precariedade inicial e transformavam-se em grandes partidos nacionais, alternando no poder e … começando a parecer-se, embora as diferenças ainda fossem muitas.
MANTER TODOS OS “PORTUGAIS” QUE CAIBAM NO PSD (2)
9. O último Congresso do PSD demonstrou à saciedade todos os perigos de implosão do partido, que referi no artigo anterior e, embora tivesse dado um passo no caminho certo, revelou a um observador comprometido, as enormes dificuldades que há que contornar, já não digo para fazer voltar o PSD à governação, mas para manter o papel do partido na vida política portuguesa.
10. Luis Filipe Menezes representou a continuidade da experiência Santana Lopes, sem nenhuma mudança significativa. Os votos que recebeu e a recepção que o Congresso lhe propiciou são um bom exemplo para a reflexão sobre o que está mal no PSD. Os discursos de Menezes foram retoricamente sempre melhores do que os de Marques Mendes, como aliás os de Santana Lopes foram sempre melhores do que qualquer outro dirigente do PSD. Não é isso que está em causa, e nem sequer é preciso salientar que nos Congressos, que têm um aspecto ritual, isso é importante mas não pode ser o decisivo. Só que isto é o que menos o partido precisa, nem de excessos de “alma”, nem de retórica. Precisa de reflexão e de racionalidade para compreender o que se está a passar à sua volta e dentro de si.
11. O próprio facto de a comunicação social ter passado três dias a valorizar esta dicotomia, para acentuar o seu lado espectacular, ou seja, valorizar o estilo de Santana e de Menezes, diz-nos alguma coisa sobre as dificuldades de um retorno à realidade. Tudo isto por uma razão muito simples e sobre a qual ninguém se pergunta: porque razão é que o país e os eleitores, a começar pelos eleitores do PSD, não valorizam por aí além os arroubos sentimentais desses dirigentes? Menezes, que como Santana Lopes é intuitivo, percebeu-o quando gastou todo o seu último discurso a falar da questão da “credibilidade”. É, o problema é a credibilidade e os excessos afectivos não chegam para a mostrar e consolidar, quando se percebe que o que se diz é pouco e errado.
Não admira que Menezes tivesse muitas palmas quando falou sempre como se o PSD estivesse no clímax do seu poder, como se estivesse sólido e maioritário, podendo fazer ao PS todas as farroncas que desejasse, esquecendo a comezinha realidade do partido estar na oposição a uma maioria absoluta do PS para quatro anos e só contar, por um cabelo, para uma maioria constitucional. Se muitos congressistas não querem ver a realidade debil do PSD e preferem alimentar um autismo cego, o partido não se regenerará.
12. O segundo paradigma é o consensualismo e o medo do conflito. Marques Mendes foi censurado pelo único momento em que no Congresso um candidato esteve coerente com a tradição de ruptura do passado, ou seja quando criticou o estado do partido e a responsabilidade primacial de Santana Lopes. (Deixou de lado a de Durão Barroso, cuja fuga a meio de mandato e condicionamento da sucessão o torna co-responsável). Era isto que era habitual num partido que não costumava ter palavras mansas consigo próprio. Até agora.
Aqui os media atacaram Marques Mendes por criticar Santana Lopes, porque, ao fazê-lo, “ia perdendo o Congresso”. Ainda bem que não perdeu, mas se o perdesse teria feito a sua obrigação. Unanimismos falsos e salamaleques em nome da honra da família destroem a política. Nos momentos decisivos, os media estão sempre no seu discurso implícito a favor daquilo que renegam no seu discurso explícito, e é por isso que são muito conservadores. Foram eles que fizerem Santana Lopes (e o desfizeram) e foram eles que iam fazendo Menezes.
13. A reflexão sobre as “imagens” comunicacionais deve continuar a ser feita, porque o Congresso revelou como o paradigma espectacular é dominante na leitura dos media, e como estes mesmos media favorecem o show ao conteúdo. O problema é quando se elimina o espectáculo e se coloca no papel as frases magníficas e se vê que elas significam muito pouco, são incoerentes e remetem para soluções mal pensadas e inaceitáveis. O problema de Santana Lopes era passar-se para o papel o que ele dizia, no meio dos “com todo o respeito”, e com Menezes era a mesma coisa, embora, faça-se justiça, menos.
Se tomássemos a sério o monumental exercício de massagem do ego dos delegados e da “camisola” que foi toda a intervenção de Menezes no Congresso, o PSD deixaria de ser um partido democrático com mecanismos de representação para passar a funcionar em assembleia de democracia directa. Menezes prometeu a todos tal poder, que, se aplicasse o que propõs, não ficaria com nenhum, não lideraria nada no dia seguinte. O partido viveria de sucessivas reuniões de presidentes de secções que decidiriam tudo: deputados, delegados, presidentes das Câmaras, vereadores, políticas.
As suas propostas levariam a tornar a democracia representativa partidária numa democracia directa, o que significa que apenas os mais activos teriam voz, e não seria surpresa, encontrarmos no fim o mesmo partido fechado sobre si mesmo que temos agora. Até a sua proposta de directas, tem que ter condições prévias para não ser manipulada pelo aparelho partidário, a começar pela individualização da militância, acabando com os pagamentos colectivos de quotas e com centenas de falsos militantes inscritos para engordar artificialmente as secções e aumentar o número de delegados, que depois são eleitos por meia dúzia de pessoas.
14. O papel de Santana Lopes só não foi absurdo porque é mais do que isso: reprovável até ao limite. Não assumiu uma única responsabilidade do que se passou, atirou as culpas para um título de jornal, imediatamente desmentido pelo próprio jornal (nem se pergunta porque é que o efeito de um raríssimo desmentido de um jornal, não funcionou a seu favor, como aconteceu a Bush nas eleições americanas), para um comentador de um programa de debate que passa à noite num canal de cabo, e para um ministro que se propôs como candidato, caso ele perdesse. Só o caso do ministro era grave, mas aí ele não fez nada.
Santana Lopes foi ao Congresso para se vingar, para apoiar Menezes, para fazer chantagem sobre os que o queriam criticar e para, pela sua presença, condicionar o Congresso e o partido. Não me surpreendeu, como não me surpreende nada, que force a candidatura de Lisboa, que force a candidatura presidencial, que faça tudo para que Cavaco perca e Marques Mendes falhe. É isto que significa o “vou andar por aí”.
15. Neste contexto penso que se percebe as minhas objecções ao modo como actuou o “grupo” à volta de António Borges, cujo efeito prático foi bloquear a mais que necessária crítica ao passado imediato, favorecer Menezes e enfraquecer Marques Mendes. A não ser a “marcação do terreno”, ela própria ambígua, a sua acção só reforça a ideia da transitoriedade e pouco ou nada contribui para a renovação que se pretende, acabando por ser muito mais complacente com a deriva populista, de que resultou o péssimo resultado eleitoral, que Marques Mendes. Se quisermos ser directos e usar os “ismos”, mesmo na sua imprecisão, há que ter em conta que o “nogueirismo” resistiu melhor ao “santanismo” do que o “barrosismo” e outros “ismos” de elite. Com raras e honrosas excepções, uma certa elite do partido conviveu melhor com a deriva populista do que o eleitorado social-democrata e muitos militantes que recusavam com vigor, coisas como a campanha negativa e o culto de personalidade do “menino-guerreiro”.
16. É evidente que não está em causa nem as pessoas, nem a qualidade da sua intervenção, nem sequer o seu papel fundamental de trazerem mérito profissional e social reconhecido de fora para dentro do partido, que é para mim o mecanismo fundamental que deve presidir às carreiras políticas. Mas convinha que não existissem dúvidas que se fosse António Borges ou Manuela Ferreira Leite a estarem no papel de Marques Mendes, a tentarem uma ruptura com a “vida” que o partido leva, teriam sido triturados pela mesma máquina que se voltou contra Marques Mendes. Manuela Ferreira Leite seria apontada como a principal responsável pela derrota do partido pela sua política de austeridade e António Borges descrito como “sulista, elitista e liberal” e cristão-novo. A complacência com que foram recebidos é envenenada, como se vê analisando o modo como muitos delegados votaram simultaneamente em Menezes para a liderança do partido e na moção de António Borges.
17. Ora a moção e os discursos que a apoiaram independentemente dos seus méritos individuais e qualificações na sociedade – e são pessoas como essas que o PSD precisa - não demarcavam nada, não só em termos políticos e ideológicos, como na reflexão sobre o partido, não se diferenciando nem em relação a Marques Mendes, e acima de tudo, nem a Menezes e a Santana Lopes. E isso, neste Congresso e nos tempos de hoje, nada muda, conserva.
Se, e este se é importante, este “grupo” (e a verdade, minha querida Manuela, é que se actuou como grupo…) tivesse apresentado uma alternativa política ao programa de Marques Mendes, se contribuísse para identificar o que está mal no partido, não teriam qualquer estado de graça e isso talvez os levasse a compreender os problemas que Marques Mendes tem que defrontar quase sozinho e fragilizado pela sua actuação.
Para a semana, voltaremos a Marques Mendes.