17.1.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 18 (Janeiro de 2005)

AS TRAGÉDIAS QUE NÓS FAZEMOS

As tragédias naturais são hoje essencialmente tragédias artificiais. O massacre provocado nas costas do Oceano Indico pelo maremoto de Dezembro tem uma parte de inevitabilidade e outra que bem poderia ter sido evitada, houvesse mais democracia, menos guerra e mais riqueza na região. Dos cento e cinquenta mil mortos, cerca de dois terços são na ilha de Sumatra, em Aceh, e nas zonas da Indonésia imediatamente limítrofes do local do sismo. Esses podem culpar a Providência que os atacou de surpresa e a pobreza que não lhes deu mais protecção, melhores casas, estruturas mais resistentes que pudessem minimizar os estragos e as mortes.
Mas, á medida que nos afastamos do epicentro, e caminhamos para ondas que atingem a costa uma, duas, três horas, sete horas depois, como na costa de África, cada vez é menos a Providência ou a pobreza que mata, mas a incúria. Claro que parte da incúria vem com a pobreza, mas não toda. A falta de aviso aos turistas na Tailândia, pelas piores razões, para “não estragar o turismo”, e a falta de pré-aviso, atabalhoado ou pouco eficaz que fosse, em locais como o Sri Lanka, atingido pelo maremoto já as campainhas das redacções tocavam em todo o mundo, e tudo quanto era entidade de emergência estava pelo menos acordada a perceber o que a tinha atingido, aí já pesa a incúria e a ignorância. A experiência do Pacífico onde os maremotos são mais comuns leva as populações a fugirem ao mais pequeno sinal de que alguma coisa está errada no mar. Ninguém vê o mar recuar centenas de metros sem fugir logo, e não vai pôr-se a apanhar o peixe que ficou ao ar. Quem vive junto ao mar no Pacifico foge para as colinas, e houve casos raros em que populações ribeirinhas do Indico sabiam disso, ou porque tinham visto um filme na televisão, ou porque havia uma memória difusa de outros maremotos, e conseguiram fugir às maiores devastações e mortandade. Tivessem consigo a pequena rapariga sueca que tinha estudado na escola os maremotos e salvou os pais explicando-lhes que tinham que fugir para sítios altos e a morte seria menos pesada. Saber salva vidas e salvou-as mesmo no sismo de Dezembro de 2004.
Agora a incúria, o abandono, o pequeno valor que se dá às vidas humanas – em dois locais fortemente atingidos há guerras civis, em Aceh e nos territórios da Índia e Sri Lanka de população tamil – impediu que coisas tão simples como colocar os carros da polícia ou do exército, e podem ter a certeza que há muitos, sirenes a tocar, pelas praias acima, teriam tirado alguns milhares da morte. Já para não falar dum melhor sistema de pré-aviso para maremotos como existe no Pacífico.
O papel dos homens e dos seus erros não adianta muito para corrigir o que já se fez mal, mas mais vale sabe-lo do que o ignorar.


O PROBLEMA DO PORTO

O Porto tem um problema, que já foi na minha opinião pior do que o que é hoje, mas que continua a ser um problema. Dito com todas as letras: o problema é a presunção que na cidade é preciso dividir o poder político com um clube de futebol, ou melhor com os seus dirigentes, e que estes têm o direito próprio de, pelo facto do clube ser vitorioso no futebol, mandar no Porto. É um caso típico de um poder fáctico local, que se manifesta agressivamente e que explora uma rede de cumplicidades e interesses muito para além do futebol, incluindo interesses políticos do PS e de algumas personalidades regionais do PSD, empresários, jornalistas e intelectuais deserdados da longa e dispendiosa protecção das administrações autárquicas socialistas. O modo como o PSD pretendeu fazer a sua lista do Porto, admitindo uma quota para o sr. Pinto da Costa, representa um retrocesso enorme face às eleições de 2002, dá o pior dos sinais para a sociedade e mina a candidatura autárquica de Rui Rio.


UM FISCO SÓ COM DIREITOS E SEM DEVERES

Existe em Portugal um elevado índice de fraude fiscal concentrando-se em determinadas corporações, profissões e interesses que parecem imunes aos impostos. Num país remediado esta incidência da fraude fiscal é socialmente muito perturbadora, porque os que trabalham não podem fugir ao fisco e o fisco é por isso um profundo factor de desigualdade social.
O resultado é que o fisco é também um propulsor da demagogia e do populismo, o que faz com que os governos o usem para legitimarem a sua má gestão e instituírem práticas desiguais e leoninas entre o estado e os cidadãos em nome de um combate à fraude fiscal. Não é preciso ir mais longe do que a enorme diferença de tratamento entre o que se deve ao fisco e o que o fisco deve, porque recolheu a mais, quase sempre por engano da administração fiscal, e que entende só devolver a seu belo prazer. Já para não falar da introdução de um princípio de inversão do ónus da prova, que me parece muito mais pretender iludir a capacidade da administração fiscal para investigar, do que punir os culpados. Seja em que matéria for, parece-me muito perigoso que, face à administração, seja o cidadão a provar que é inocente e não ela a provar que é culpado. Todos os abusos e arbitrariedades são possíveis.
É por isso muito preocupante a facilidade com que se aceita que o fisco se comporte de forma prepotente, arrogando-se más práticas sem qualquer sanção para proteger a sua incompetência e falta de modernização, sendo-se indiferente a direitos do cidadão que deviam ser garantidos. Convém lembrar que certos direitos de cidadania são-no também face à administração fiscal, que não pode comportar-se como uma burocracia arrogante, detentora de todos os direitos e nenhum dever, muitas vezes incompetente, excessivamente politizada, e actuando ao sabor dos problemas ainda maiores de incompetência dos governos. Estamos a aceitar um clima de prepotências fiscais em nome do combate á fraude fiscal, que, como é habitual, cai em cima dos que tem menos defesa e nunca sobre os verdadeiramente criminosos
As liberdades também se perdem assim.
MEMÓRIAS DA "LEITURA" (Dezembro de 1994)

Há uma semana, a livraria "Leitura" do Porto realizou aquilo que era um seu velho sonho: consegiu "explodir" o seu espaço na esquina da Rua de Ceuta para o lado e libertar-se da impossibilidade física de crescer que a "aprisionava" há muitos anos. Este fait-divers da vida livreira portuense pode parecer irrelevante para os lisboetas, que são a maioria dos leitores do Diário de Notícias, mas a "Leitura" é um caso sui generis da história cultural portuguesa, e uma parte da minha biografia. E a esta não se pode escapar.

Se as livrarias tivessem um olhar, ou uma "alma", certamente que o olho da "Leitura" me acompanha há demasiado tempo com severidade, complacência e ironia - como é suposto ser o "olhar" do "espírito do tempo", o mesmo que espreita de dentro do triângulo, ou no espaço em branco dessas letras simples, escritas num cursivo escolar, como aquelas que são as do velho "reclame" da Rua de Ceuta. E esse "olhar" viu-me demasiadas vezes para eu não sentir o seu peso, uma leve sensação de que se está a ser avaliado. Isto era antes da televisão popular, era outro mundo.

Escrevi em 1968, annus mirabilis, para a "Divulgação", o antigo nome da "Leitura", o meu primeiro texto para um catálogo de exposição de pintura, fazendo uma improvável relação entre Rilke e a Commedia, entre Arlequim e as rochas de Duíno. Tudo a pretexto de uma exposição da Rosa, cuja fotografia belíssima, com um ar perfeitamente grego, aparecia ao lado do texto, tudo decorado com um cinzento suave que fazia parte das cores de que as pessoas gostavam antes da vinda do Arquitecto Taveira. Sépia, mauve, um leve ocre... Depois fiz mais catálogos para exposições do Batarda e do Mouga, escrevi sobre o Ângelo e o Zé Rodrigues, mas este foi o primeiro e o primeiro conta sempre.

Mas o mundo dos amáveis ocres estava a acabar depressa de mais. Aliás não estou bem certo que alguma vez tivesse existido, porque talvez na época não olhássemos para essas cores com o ar vagamente blasé e intelectualmente decorativo que temos hoje. Caminhavamos para a política pura, dura e radical que acabava por ser o único caminho ético possível. Eis-nos pois de 1968 a 1970 em ritmo acelerado para nos tornarmos "guardas vermelhos" e eis que a "Leitura" (então "Divulgação") resolveu contribuir poderosamente para a "demarcação entre nós e o inimigo": traz cá, em plena "liberalização" marcelista, Yevgeny Yevtushenko.

Hoje deve ser bizarro imaginar a excitação da vinda da terra das estepes, do escritor russo, digo "soviético", mas foi na época um petit scandale. Primeiro, porque a vinda de Yevtushenko era claramente uma concessão pensada do regime marcelista para mostrar o "degelo" do salazarismo; segundo, porque o escritor era um crítico do estalinismo e um símbolo da literatura soviética nos limites da crítica "consentida" ao regime; terceiro e mais fundamental, porque exactamente pelo que disse atrás, Yevtushenko era o representante máximo da "traição" da URSS, o "revisionismo" encarnado. Yevtushenko ajudou à festa - chegou a Lisboa, passeou-se com o establishement literário do PCP e dos seus compagnons de route e depois anunciou ao Diário de Lisboa que queria visitar Fátima para ver as massas rezar. A crise passou de petit scandale para grande escândalo e até o PCP, que devia conhecer alguma coisa das dificuldades de erradicar da alma russa o pathos religioso, ficou incomodado.

Como o maoismo estava então ainda em grande parte por organizar e era mais uma revolta cultural do que uma ortodoxia com regras, um grupo de pessoas, no qual me incluía, resolveu ir fazer umas "provocações" ao "revisionista", ou seja, armar uma arruaça ao Yevtushenko e aos seus mentores lisboetas. O local da cena foi a "Divulgação" de Lisboa, irmã da do Porto, e a materialização das provocações foi levar a uma sessão de autógrafos alguns livros pouco inconvenientes para o "poeta" assinar: a Bíblia, as Citações do Presidente Mao Tsé Tung,- das Editions du Seuil e não as chinesas que eram perigosas de mais -, e uns livros claramente "reaccionários". O resultado foi o previsível: Yevtushenko espantado começou a perceber que alguma coisa não estava certa e recusou os autógrafos, houve algum burburinho e eu, mais o Alexandre de Oliveira, penso que o José Bernardo (em vésperas de se tornar o "oportunista Tiago") e uns surrealistas lisboetas, fomos postos na rua pelo Carlos Porto.

Depois o tempo foi passando, deu-se o 25 de Abril e quando voltei ao mundo dos vivos voltei também à "Leitura", dia após dia, depois cada vez mais espaçadamente, à medida que outra política, agora mais impura embora igualmente dura, me ia fazendo trair as ruas do Porto, a Foz, os alfarrabistas do Largo Montpellier, as encostas da Corticeira, o jardim de S. Lázaro...

3.1.05

A CAMPANHA ELEITORAL NO PORTO (Março 2002)

1. A campanha eleitoral no Porto foi, com a de Loures já há muitos anos, a mais interessante em que pude participar. Foi uma campanha atravessada por problemas políticos reais, de carácter nacional, e que esteve longe de ser apenas o eco local de um confronto político nacional.
Dela quero dar aqui um testemunho que sei ser pouco habitual nos políticos portugueses. Falar de uma experiência política muito próxima, vivida por dentro, ainda por cima com interesse de causa, é complicado. Mas há aspectos do que se passou que penso ser importante ficarem registados tanto mais que a cobertura da comunicação social foi errática e distraída. O principal jornal do Porto, o Jornal de Noticias, entendeu que não devia cobrir as campanhas locais, talvez com receio de as ter de comparar, e esteve ausente em parte incerta.
Infelizmente o cinismo militante do comentário jornalístico, que atingiu nesta campanha níveis de arrogância insuportáveis, impede os media de não só ajudarem a compreender o que se passa, como de perceberem diferenças porque é sempre mais cómodo meterem tudo no mesmo saco.


2. O problema do “futebol” que atravessou a campanha, no Porto foi tudo menos uma questão de futebol: foi uma questão de poder político, nua e crua e até exemplar e reveladora nessa nudez e crueza. Em nenhum sítio do pais o mesmo se passou. O incidente com Vilarinho , pelo seu carácter anedótico, tem pouco a ver com o jogo muito mais a sério que se passava no Porto. A questão no Porto era pura e simplesmente a de se saber quem mandava na cidade, se o poder político legitimamente eleito, se um conjunto de poderes fácticos, que incluíam os derrotados das ultimas eleições autárquicas e o establishment que durante mais de dez anos se criou à sua volta. Esse establishment incluía dirigentes desportivos como o Sr. Pinto da Costa, interesses imobiliários poderosos, uma corte de agentes culturais, jornalistas e jornais, e um conjunto de “personalidades” que apareciam a falar pelo Porto e que, por singular coincidência, eram todas apoiantes de Fernando Gomes.
Nestas eleições, conduzindo verdadeiramente a campanha do PS, esteve o Sr. Pinto da Costa, presidente do FC do Porto. O Sr. Pinto da Costa é um demagogo populista típico, pouco educado, que fala alto e grosso, gosta de intimidar e ameaçar os seus adversários, faz ultimatos e chantagens. Na Contra-Informação é sempre acompanhado por uns mastins violentos, vá-se lá saber porquê. Mas , dito tudo isto, o Sr. Pinto da Costa é um adversário muito mais poderoso do que Narciso de Miranda, que, pelo menos, tem o mérito de ser um político eleito. O seu poder vem de não ter pejo de usar o FC do Porto para obter poder político e benesses excessivas, para o clube sem dúvida, mas também para os seus amigos políticos.


3. O FCP não está para o Porto como clubes como Benfica ou o Sporting estão para Lisboa. Transportando o nome da cidade – diferentemente do Boavista e do Salgueiros que tem nomes dos antigos bairros fabris do Porto – o clube é uma instituição profundamente popular, na qual a cidade se identifica quase como quem respira. Uma das minhas memórias de infância, é a de assistir, da casa de Pedroto, (imaginem as voltas que o mundo dá), que era amigo do meu avô materno, a esse acontecimento que atravessava toda a parte oriental da cidade que era a entrada e a saída dos jogos das Antas. Uma multidão de homens ia e vinha colocando milhares de pessoas nas ruas, numa cidade e num tempo em que ver multidões não era comum. Havia um ambiente de festa, então sem a parafernália das bandeiras, cachecóis e chapéus, apenas alegrada pelo som do hino do clube tocado aos berros nos altifalantes do estádio. Era uma festa masculina, visto que as poucas mulheres que iam ao futebol ficavam cá fora nos carros, a ouvir o relato e a fazer crochet. Era uma festa popular, operária, e recordo-me do escuro dos fatos domingueiros sobre o fundo branco dos prédios modernos e nalguns casos modernistas das casas das Antas, zona residencial de gente rica que vivia de costas para o espectáculo incomodo de ver o seu território invadido aos domingos à tarde.


4. O FC do Porto conheceu na última década uma fase “gloriosa” da sua vida, com sucessivas vitórias nacionais e internacionais e isso empolgou justamente o Porto. Foi também nesta altura que o Sr. Pinto da Costa esteve na origem de um revivalismo do pior provincianismo nortenho, que é a afirmação do Porto “contra” Lisboa , dos gritos de “vamos queimar Lisboa” e dos ataques aos “mouros” e outras amabilidades do género que ele partilhava com Fernando Gomes. Os dois ajudaram a dar ao Porto uma dimensão provinciana e mesquinha que avilta uma cidade de valores universais, e usaram-na para promover as suas carreiras políticas e o seu poder.
A cada eleição autárquica , percebia-se que durante os anos de gestão socialista do Porto, o Sr. Pinto da Costa foi um dos pilares do poder de Fernando Gomes e Nuno Cardoso. Não importa saber se o fez por convicção política ou por oportunidade, porque no tipo de intervenção política que lhe é característico isso é irrelevante. O que é certo é que o fez e obteve um cheque em branco da edilidade para tudo o que queria fazer. As condições em que Nuno Cardoso ofereceu ao FC do Porto tudo o que podia e não podia, permitindo-lhe fazer um negócio com um grande grupo económico, certamente mais valioso do que o custo do estádio, foi prejudicial ao interesse público da cidade mas revelador das trocas de influência e poder recíprocas.


5. Quando Rui Rio ganhou a Câmara Municipal do Porto de surpresa, todo este establishment não queria acreditar no que lhe acontecera . O efeito de surpresa levou à denegação da realidade, como quando nos anunciam uma doença mortal , a que se segue um enorme aturdimento e um desejo ressentido de vingança. O porta voz desse sentimento e da sua tradução política, acabou por ser nesta campanha eleitoral o Sr. Pinto da Costa.
Passou todo o tempo a fazer pronunciamentos políticos explícitos, muitos dos quais em prime-time televisivo, perante o entusiasmo pouco disfarçado dos jornalistas, que gostam daquele clima de espectáculo e bragadoccio . O Sr. Pinto da Costa não escondeu o apoio ao PS e o combate ao PSD, atacando-me explicitamente a mim e a Rio de sermos tudo e mais alguma coisa. Pronunciou-se contra a realização pelo PSD do comício do dia 9. "Gozou", como dizia gentilmente o Expresso, comigo e com o PSD. Se isto não é política, não sei o que é política.
Fê-lo no limite do que é admissível em democracia. Já se tinham passado as cenas em que uns valentões dos Super Dragões agrediram em matilha comerciantes idosos e senhoras numa contra-manifestação a que as autoridades policiais fecharam todos os olhos. Depois começou por atacar de forma descabelada Rui Rio a quem chamou entre outras coisas “Hitler”, enquanto nas ruas os Super Dragões o chamavam de “esgoto”. No entanto, apesar disso, muitos senhores finos da política, não desdenhavam a companhia dos ditos Dragões .
Instigou a um clima de insulto e violência. A maneira como comentou a tentativa de agressão que ocorrera contra mim, – e eu sou a ultima pessoa que gosta de ser vitima, mas também não tenho feitio para alimentar a impunidade reinante –, era em si mesmo um apelo a novas violências. Os sites da Internet, mostrando bem que o acesso a novas tecnologias não altera a cabeça dos Dragões pós-modernos, enchiam a rede de hate-mail, ecoando o Sr. Pinto da Costa e os amáveis Super Dragões, com o pedido para que da próxima vez fossem mais eficazes e agredissem mesmo.
Os media , como de costume, nos momentos mais críticos passam ao lado, ficam indiferentes e nefelibatas. Não conheço um único editorial de um jornal, todos tão sensíveis em criticar os menores deslizes dos políticos, que se pronunciasse contra estes discursos políticos grosseiros e violentos, e muito menos com o clima anormal de violência e agressividade que eles geravam na cidade. Admito que, a julgar por incidentes anteriores, haja, em particular nos jornais do Porto, puro e simples medo. Que Rio tivesse que andar com escolta policial e houvesse contra mim uma tentativa de agressão, foi muito mais motivo de chacota e minimização contra quem foi vitima do clima de violência instalado do que de criticas aos agressores. Nas habituais colunas de sobe e desce , onde os jornalistas ajustam as suas contas com os políticos, Rio e eu descíamos porque éramos atacados ... Muito melhor comportamento teve o Presidente da República e o Ministro da Administração Interna, que mostraram firmeza nos seus valores democráticos e tomaram a sério o que acontecia no Porto.


6. Apesar deste clima pouco saudável o PS e o PP colaram-se de imediato ao Sr. Pinto da Costa . O candidato do PP foi-lhe prestar vassalagem num almoço devidamente propagandeado e , em plena campanha eleitoral, deu "instruções" publicamente aos membros do PP com funções na CM do Porto para votarem contra Rui Rio, apesar de haver uma coligação PSD-PP . Com amigos destes não são precisos inimigos.
O PS fez mais – sustentou toda a sua campanha no Porto no discurso do dirigente do clube e moldou a sua actividade à esperança que estes incidentes fossem o milagre que esperavam para ganhar as eleições. Na bancada de honra dos jogos de futebol durante a campanha, um Alberto Martins aéreo e intimidado, era passeado por Orlando Gaspar ao lado do Sr. Pinto da Costa como se fossem membros de uma corte gravitando à volta do rei. Quando do jogo com o Panathinaikos , o Sr. Pinto da Costa anunciou aos quatro ventos que convidava todos os cabeças de lista no Porto para irem ver o jogo, exceptuando-me a mim, e todos obedientemente lá foram como se estas situações fossem a coisa mais normal do mundo.
Depois houve a manifestação dos Super Dragões que teve como orador principal o antigo Presidente socialista da Câmara Municipal do Porto Nuno Cardoso e na qual dirigentes do PS e do PP se passeavam de cachecol azul felizes e contentes. Um ou dois inocentes úteis do PSD faziam a mesma coisa . Os jornais do Porto diziam que “importantes personalidades” da cidade lá iriam estar e davam como exemplo Pedro Batista. Estamos conversados.
Na cidade foi distribuído amplamente um panfleto assinado pelo PS , com o símbolo e o logotipo do PS e no papel habitual do PS , e não anónimo como depois se veio a dizer , no qual se pedia ipsis verbis aos "portistas" para "castigarem" o PSD, os "inimigos do Futebol Clube do Porto", votando PS. Dois dias depois, ao ser confrontado com esse panfleto , o PS veio negar a sua autoria , não esquecendo no entanto de explicar que o panfleto era inútil até porque a “identificação” entre os adeptos do FC do Porto e o PS já estava feita, como dizia José Saraiva. Ao mesmo tempo nunca explicaram porque tinham uma completa indiferença em esclarecer quem teria usado indevidamente o seu símbolo, o seu papel e o seu logotipo . Que se saiba, numa questão tão grave como seria a falsificação de um comunicado partidário, o natural era que o PS fizesse uma queixa para determinar os autores da falsificação. Até hoje.
Estávamos pois em plena guerra civil.


A CAMPANHA ELEITORAL NO PORTO (2)

7. A situação no PSD no Porto também não era fácil. Havia divisões públicas entre as diferentes concelhias do PSD e a Distrital e o modo como tinham ocorrido as recentes eleições autárquicas e a posterior eleição do Presidente da Junta Metropolitana tinham deixado feridas que ainda estavam abertas.
Elas aprofundaram-se mais quando, numa fase inicial do conflito, no Porto, Luís Filipe Menezes contribuiu para isolar ainda mais Rui Rio, numa atitude mal recebida em todo o PSD. Muitos militantes podiam até estar convencidos que Rio estava a actuar mal, mas sabiam que era um “deles” que estava a ser atacado e reagiam instintivamente contra a campanha hostil que lhe era feita. Porém, muitos mais do que se poderia pensar, estavam com Rio por razões substantivas, porque concordavam com a sua defesa do interesse público da cidade face à herança da administração ruinosa do PS.
No entanto, passado este momento inicial, todos remaram para o mesmo lado, a começar por Luís Filipe Menezes que lutou por um bom resultado no Porto e tem mérito na sua obtenção. A verdade é que o comportamento da Distrital do Porto durante a campanha foi leal e dedicado e nunca nela, sob minha condução pessoal e com o apoio dos meus companheiros de lista, faltou a solidariedade activa a Rui Rio, que o momento exigia sem ambiguidades. Pena foi que um pequeno grupo, por irredutível oposição a Luís Filipe Menezes, se tivesse marginalizado da campanha e acabasse na noite das eleições num hotel, esquecendo-se que a solidariedade tem sempre dois lados. Quem arrostou com os momentos difíceis da campanha e estava a responder pelos resultados estava no local institucional próprio, a sede da Distrital, e era lá que deviam todos estar, Rui Rio incluído.

8. A campanha com esta ecologia prometia ser turbulenta. As pressões eram muitas e as tensões também, mas isso fazia com que as decisões que tinham que ser tomadas - e houve decisões - traduziam o que é a política, acima da mera gestão de interesses. Pode-se passar anos e anos sem momentos destes mas houve na campanha do Porto, essa paixão pelo combate político a sério, de princípios e valores pelo que se pensa ser o bem público sem cedência à facilidade.
No momento mais difícil da campanha, os dias imediatamente anteriores e posteriores à manifestação dos Super Dragões, o clima adensava-se. Contrariamente ao que tinha afirmado desde o inicio da campanha, que era minha convicção que o apelo clubistico no Porto não teria efeitos e, se os tivesse, seriam contraproducentes para quem o quisesse cavalgar, alguém na campanha nacional do PSD resolveu pôr nos jornais que havia “muita preocupação” com o que se estava a passar no Porto, dando assim uma manifestação de fraqueza cujos efeitos eram muito mais devastadores do que uma política de firmeza. Como é óbvio, aos adversários do PSD isso cheirou a tibieza e começaram a explorá-la.
Por isso, quando acompanhei Rui Rio no edifício da Câmara Municipal durante o período em que decorria a manifestação dos Super Dragões sabia que estávamos muito mais sozinhos do que devíamos estar e que quase actuávamos por conta própria, no limite de um risco e responsabilidade demasiado pesados. Houve quem lembrasse que se se perdesse a maioria absoluta ou mesmo as eleições a culpa era nossa.

9. Tendo visto a manifestação dos Super Dragões, com o PS e o PP à ilharga, com os meus próprios olhos, e sabendo muito bem o que era naquele local uma “grande” manifestação – estivera lá com Mário Soares em 1986 e a diferença entrava pelos olhos dentro – apercebia-me que não estavam mais de 1500 pessoas, número aliás da avaliação policial. Nos jornais do Porto, embandeirava-se em arco repetindo-se propagandisticamente o número de 5000 manifestantes dado pelos seus organizadores. Porém, quem a tinha organizado sabia muito bem que a “grande” manifestação contra Rio e o PSD falhara e isso explica o tom de acrescida violência e agressividade que se verificou nos dias imediatamente seguintes.
O clima só começou a mudar quando da volta de Durão Barroso, comigo, Menezes e Rio pelas ruas do Porto. Não porque acredite que manifestações demasiado protegidas pela militância partidária sejam em si só muito significativas em termos de votos, mas porque se quebrava a ideia que as ruas nos estavam vedadas e que as intimidações davam resultado. Na noite em que houve a tentativa de agressão, uma das primeiras invectivas que me foi dirigida em português vernáculo foi: "vamos f... o comício". A realização do comício ajudou assim a mostrar que a violência e a intimidação eram postas na ordem e isso acalmou os ânimos.

10. Os resultados do distrito do Porto são conhecidos. Embora haja uma vitória tangencial do PS por 1% , a verdade é que o PS sofreu importantes perdas seja qual for o ângulo porque se analise os números dos votos. Perdeu dois deputados, enquanto o PSD ganhou três. Perdeu milhares de votos e passou de 47,98 % para 41,24 %. O PSD teve uma subida de 32,67 % para 39,98 %. Se olharmos o distrito, o PSD ganhou em sítios tão emblemáticos como Felgueiras.
O PSD ganhou voto urbano de forma consolidada e subiu sempre muito e o PS desceu também muito e se houve um efeito do "futebol" ele foi puramente residual. Talvez nos custasse o 1 % que precisávamos para ultrapassar o PS, mas sabíamos também que ganhávamos votos pela nossa atitude em muitos outros sítios do país. Por isso nos soube tão bem, na noite de 17 de Março, ter vencido com a razão este combate político.


11. As lições desta campanha são importantes para o sistema político português. Nela se passou uma espécie de 2a volta das autárquicas no Porto, que Rui Rio também venceu. Nas legislativas de 2002 terminou finalmente a batalha autárquica do Porto, com um Presidente mais legitimado e reforçado, e com todos os poderes ligados ao establishment do PS, como o Sr. Pinto da Costa, fragilizados na sua tentativa de mandarem na cidade, por cima dos votos dos portuenses. Estão pois criadas agora condições para que se resolva a contento dos interesses legítimos do FC do Porto e da cidade, a questão do estádio.
Ao mesmo tempo, esta campanha foi um prenúncio das dificuldades que o governo do PSD vai encontrar se tiver a coragem de defrontar os interesses poderosos que cresceram encostados ao PS e à sua gestão ruinosa. Quando há despesismo, alguém ganha e muita gente ganhou excessivamente e por isso vai-se dar mal com o corte nas despesas e o rigor das contas.
Mas a campanha mostrou também que é a firmeza, mesmo nos momentos que parecem mais difíceis, a única atitude que dá frutos. A grande operação "futebolística" do Porto falhou por isso mesmo.