A LAGARTIXA E O JACARÉ 18 (Janeiro de 2005)
AS TRAGÉDIAS QUE NÓS FAZEMOS
As tragédias naturais são hoje essencialmente tragédias artificiais. O massacre provocado nas costas do Oceano Indico pelo maremoto de Dezembro tem uma parte de inevitabilidade e outra que bem poderia ter sido evitada, houvesse mais democracia, menos guerra e mais riqueza na região. Dos cento e cinquenta mil mortos, cerca de dois terços são na ilha de Sumatra, em Aceh, e nas zonas da Indonésia imediatamente limítrofes do local do sismo. Esses podem culpar a Providência que os atacou de surpresa e a pobreza que não lhes deu mais protecção, melhores casas, estruturas mais resistentes que pudessem minimizar os estragos e as mortes.
Mas, á medida que nos afastamos do epicentro, e caminhamos para ondas que atingem a costa uma, duas, três horas, sete horas depois, como na costa de África, cada vez é menos a Providência ou a pobreza que mata, mas a incúria. Claro que parte da incúria vem com a pobreza, mas não toda. A falta de aviso aos turistas na Tailândia, pelas piores razões, para “não estragar o turismo”, e a falta de pré-aviso, atabalhoado ou pouco eficaz que fosse, em locais como o Sri Lanka, atingido pelo maremoto já as campainhas das redacções tocavam em todo o mundo, e tudo quanto era entidade de emergência estava pelo menos acordada a perceber o que a tinha atingido, aí já pesa a incúria e a ignorância. A experiência do Pacífico onde os maremotos são mais comuns leva as populações a fugirem ao mais pequeno sinal de que alguma coisa está errada no mar. Ninguém vê o mar recuar centenas de metros sem fugir logo, e não vai pôr-se a apanhar o peixe que ficou ao ar. Quem vive junto ao mar no Pacifico foge para as colinas, e houve casos raros em que populações ribeirinhas do Indico sabiam disso, ou porque tinham visto um filme na televisão, ou porque havia uma memória difusa de outros maremotos, e conseguiram fugir às maiores devastações e mortandade. Tivessem consigo a pequena rapariga sueca que tinha estudado na escola os maremotos e salvou os pais explicando-lhes que tinham que fugir para sítios altos e a morte seria menos pesada. Saber salva vidas e salvou-as mesmo no sismo de Dezembro de 2004.
Agora a incúria, o abandono, o pequeno valor que se dá às vidas humanas – em dois locais fortemente atingidos há guerras civis, em Aceh e nos territórios da Índia e Sri Lanka de população tamil – impediu que coisas tão simples como colocar os carros da polícia ou do exército, e podem ter a certeza que há muitos, sirenes a tocar, pelas praias acima, teriam tirado alguns milhares da morte. Já para não falar dum melhor sistema de pré-aviso para maremotos como existe no Pacífico.
O papel dos homens e dos seus erros não adianta muito para corrigir o que já se fez mal, mas mais vale sabe-lo do que o ignorar.
O PROBLEMA DO PORTO
O Porto tem um problema, que já foi na minha opinião pior do que o que é hoje, mas que continua a ser um problema. Dito com todas as letras: o problema é a presunção que na cidade é preciso dividir o poder político com um clube de futebol, ou melhor com os seus dirigentes, e que estes têm o direito próprio de, pelo facto do clube ser vitorioso no futebol, mandar no Porto. É um caso típico de um poder fáctico local, que se manifesta agressivamente e que explora uma rede de cumplicidades e interesses muito para além do futebol, incluindo interesses políticos do PS e de algumas personalidades regionais do PSD, empresários, jornalistas e intelectuais deserdados da longa e dispendiosa protecção das administrações autárquicas socialistas. O modo como o PSD pretendeu fazer a sua lista do Porto, admitindo uma quota para o sr. Pinto da Costa, representa um retrocesso enorme face às eleições de 2002, dá o pior dos sinais para a sociedade e mina a candidatura autárquica de Rui Rio.
UM FISCO SÓ COM DIREITOS E SEM DEVERES
Existe em Portugal um elevado índice de fraude fiscal concentrando-se em determinadas corporações, profissões e interesses que parecem imunes aos impostos. Num país remediado esta incidência da fraude fiscal é socialmente muito perturbadora, porque os que trabalham não podem fugir ao fisco e o fisco é por isso um profundo factor de desigualdade social.
O resultado é que o fisco é também um propulsor da demagogia e do populismo, o que faz com que os governos o usem para legitimarem a sua má gestão e instituírem práticas desiguais e leoninas entre o estado e os cidadãos em nome de um combate à fraude fiscal. Não é preciso ir mais longe do que a enorme diferença de tratamento entre o que se deve ao fisco e o que o fisco deve, porque recolheu a mais, quase sempre por engano da administração fiscal, e que entende só devolver a seu belo prazer. Já para não falar da introdução de um princípio de inversão do ónus da prova, que me parece muito mais pretender iludir a capacidade da administração fiscal para investigar, do que punir os culpados. Seja em que matéria for, parece-me muito perigoso que, face à administração, seja o cidadão a provar que é inocente e não ela a provar que é culpado. Todos os abusos e arbitrariedades são possíveis.
É por isso muito preocupante a facilidade com que se aceita que o fisco se comporte de forma prepotente, arrogando-se más práticas sem qualquer sanção para proteger a sua incompetência e falta de modernização, sendo-se indiferente a direitos do cidadão que deviam ser garantidos. Convém lembrar que certos direitos de cidadania são-no também face à administração fiscal, que não pode comportar-se como uma burocracia arrogante, detentora de todos os direitos e nenhum dever, muitas vezes incompetente, excessivamente politizada, e actuando ao sabor dos problemas ainda maiores de incompetência dos governos. Estamos a aceitar um clima de prepotências fiscais em nome do combate á fraude fiscal, que, como é habitual, cai em cima dos que tem menos defesa e nunca sobre os verdadeiramente criminosos
As liberdades também se perdem assim.
AS TRAGÉDIAS QUE NÓS FAZEMOS
As tragédias naturais são hoje essencialmente tragédias artificiais. O massacre provocado nas costas do Oceano Indico pelo maremoto de Dezembro tem uma parte de inevitabilidade e outra que bem poderia ter sido evitada, houvesse mais democracia, menos guerra e mais riqueza na região. Dos cento e cinquenta mil mortos, cerca de dois terços são na ilha de Sumatra, em Aceh, e nas zonas da Indonésia imediatamente limítrofes do local do sismo. Esses podem culpar a Providência que os atacou de surpresa e a pobreza que não lhes deu mais protecção, melhores casas, estruturas mais resistentes que pudessem minimizar os estragos e as mortes.
Mas, á medida que nos afastamos do epicentro, e caminhamos para ondas que atingem a costa uma, duas, três horas, sete horas depois, como na costa de África, cada vez é menos a Providência ou a pobreza que mata, mas a incúria. Claro que parte da incúria vem com a pobreza, mas não toda. A falta de aviso aos turistas na Tailândia, pelas piores razões, para “não estragar o turismo”, e a falta de pré-aviso, atabalhoado ou pouco eficaz que fosse, em locais como o Sri Lanka, atingido pelo maremoto já as campainhas das redacções tocavam em todo o mundo, e tudo quanto era entidade de emergência estava pelo menos acordada a perceber o que a tinha atingido, aí já pesa a incúria e a ignorância. A experiência do Pacífico onde os maremotos são mais comuns leva as populações a fugirem ao mais pequeno sinal de que alguma coisa está errada no mar. Ninguém vê o mar recuar centenas de metros sem fugir logo, e não vai pôr-se a apanhar o peixe que ficou ao ar. Quem vive junto ao mar no Pacifico foge para as colinas, e houve casos raros em que populações ribeirinhas do Indico sabiam disso, ou porque tinham visto um filme na televisão, ou porque havia uma memória difusa de outros maremotos, e conseguiram fugir às maiores devastações e mortandade. Tivessem consigo a pequena rapariga sueca que tinha estudado na escola os maremotos e salvou os pais explicando-lhes que tinham que fugir para sítios altos e a morte seria menos pesada. Saber salva vidas e salvou-as mesmo no sismo de Dezembro de 2004.
Agora a incúria, o abandono, o pequeno valor que se dá às vidas humanas – em dois locais fortemente atingidos há guerras civis, em Aceh e nos territórios da Índia e Sri Lanka de população tamil – impediu que coisas tão simples como colocar os carros da polícia ou do exército, e podem ter a certeza que há muitos, sirenes a tocar, pelas praias acima, teriam tirado alguns milhares da morte. Já para não falar dum melhor sistema de pré-aviso para maremotos como existe no Pacífico.
O papel dos homens e dos seus erros não adianta muito para corrigir o que já se fez mal, mas mais vale sabe-lo do que o ignorar.
O PROBLEMA DO PORTO
O Porto tem um problema, que já foi na minha opinião pior do que o que é hoje, mas que continua a ser um problema. Dito com todas as letras: o problema é a presunção que na cidade é preciso dividir o poder político com um clube de futebol, ou melhor com os seus dirigentes, e que estes têm o direito próprio de, pelo facto do clube ser vitorioso no futebol, mandar no Porto. É um caso típico de um poder fáctico local, que se manifesta agressivamente e que explora uma rede de cumplicidades e interesses muito para além do futebol, incluindo interesses políticos do PS e de algumas personalidades regionais do PSD, empresários, jornalistas e intelectuais deserdados da longa e dispendiosa protecção das administrações autárquicas socialistas. O modo como o PSD pretendeu fazer a sua lista do Porto, admitindo uma quota para o sr. Pinto da Costa, representa um retrocesso enorme face às eleições de 2002, dá o pior dos sinais para a sociedade e mina a candidatura autárquica de Rui Rio.
UM FISCO SÓ COM DIREITOS E SEM DEVERES
Existe em Portugal um elevado índice de fraude fiscal concentrando-se em determinadas corporações, profissões e interesses que parecem imunes aos impostos. Num país remediado esta incidência da fraude fiscal é socialmente muito perturbadora, porque os que trabalham não podem fugir ao fisco e o fisco é por isso um profundo factor de desigualdade social.
O resultado é que o fisco é também um propulsor da demagogia e do populismo, o que faz com que os governos o usem para legitimarem a sua má gestão e instituírem práticas desiguais e leoninas entre o estado e os cidadãos em nome de um combate à fraude fiscal. Não é preciso ir mais longe do que a enorme diferença de tratamento entre o que se deve ao fisco e o que o fisco deve, porque recolheu a mais, quase sempre por engano da administração fiscal, e que entende só devolver a seu belo prazer. Já para não falar da introdução de um princípio de inversão do ónus da prova, que me parece muito mais pretender iludir a capacidade da administração fiscal para investigar, do que punir os culpados. Seja em que matéria for, parece-me muito perigoso que, face à administração, seja o cidadão a provar que é inocente e não ela a provar que é culpado. Todos os abusos e arbitrariedades são possíveis.
É por isso muito preocupante a facilidade com que se aceita que o fisco se comporte de forma prepotente, arrogando-se más práticas sem qualquer sanção para proteger a sua incompetência e falta de modernização, sendo-se indiferente a direitos do cidadão que deviam ser garantidos. Convém lembrar que certos direitos de cidadania são-no também face à administração fiscal, que não pode comportar-se como uma burocracia arrogante, detentora de todos os direitos e nenhum dever, muitas vezes incompetente, excessivamente politizada, e actuando ao sabor dos problemas ainda maiores de incompetência dos governos. Estamos a aceitar um clima de prepotências fiscais em nome do combate á fraude fiscal, que, como é habitual, cai em cima dos que tem menos defesa e nunca sobre os verdadeiramente criminosos
As liberdades também se perdem assim.