25.5.05

ATENÇÃO: OPERAÇÃO DE PROPAGANDA EM CURSO (Maio 2005)

Não é por nada mas não gosto que nos tomem a todos por parvos. E parece-me mais que claro que é isso que o governo está a fazer com as manobras a propósito do défice. É que em matéria de défice ninguém nasceu ontem, para o bem e para o mal, estamos todos cá há muito tempo.
Senão vejamos. Este que vos escreve não é economista e portanto do défice tem uma visão acima de tudo política, ou melhor, de economia política no seu bom e antigo sentido. Isto quer dizer que como em todas as coisas da sociedade e da política as soluções são várias e nunca são consensuais. A sua aplicação implica escolher entre quem ganha e quem perde com as medidas da solução, gerindo-se os interesses e resistências respectivos.
O nosso défice não tem mistério: a razão pela qual o défice aumenta tem a ver com a forma como é o nosso estado, a sua cara ineficácia e a sua relação com os que dele directamente beneficiam, ou por necessidade ou por astúcia social. A sociedade portuguesa, medianamente pobre e atrasada, proteccionista e sem mobilidade de qualquer tipo, fortemente subsidiada e agarrada como uma lapa a um estado clientelar explica porque o défice existe e porque razão ninguém o quer domar, a começar pela maioria dos portugueses. Este é um dos casos clássicos da fundamentação da democracia em que o voto não ajuda, só a “razão de estado”, o “bem comum”, o “bom governo”, o que está para além do voto, inscrito nos poderes do mandato representativo.
Este que vos escreve considera já há muito tempo ter a doença da “obsessão pelo défice”, aquela que impede que haja “mais vida para além do défice”, a doença de achar que fazia bem a Portugal o estado ter muito menos dinheiro, para ver se se abria uma oportunidade para não ter vícios. Não sei se é possível que, mesmo com pouco dinheiro, se possam eliminar os vícios, mas sempre se podia tentar. Foi esta doença que me levou a apoiar Manuela Ferreira Leite e Durão Barroso, e criticar Santana Lopes e Bagão Félix, que desfizeram em meia dúzia de meses o fragilíssimo edifício que herdaram.
A razão porque faço esta distinção é porque é não só injusto como errado meter todos no mesmo saco. Mais, hoje meter todos no mesmo saco faz parte da operação de propaganda política em curso, destinada a mostrar que todos foram iguais e a retirar legitimidade política às únicas tentativas, débeis que tenham sido, feitas nos últimos anos, para limitar o défice controlando as despesas. Convém não esquecer, agora que se fala de novo no “monstro” (aliás herança socialista), que Manuela Ferreira Leite, entre outras coisas, congelou os aumentos na função pública e não é coerente critica-la ao mesmo tempo pelo que fez para controlar o défice e acusá-la de nada ter feito.
O problema é que Manuela Ferreira Leite viu a sua política ferida pela quebra de legitimação que o abandono de Durão Barroso trouxe ao governo PSD-PP. Barroso tirou-lhe o tapete ao abandonar o governo e ao impedir a política de austeridade de ter a sua sequência natural que eram reformas como a da função pública. Barroso acabou por legitimar para trás o abandono de Guterres e criar um ambiente propício para que Sócrates, seu herdeiro, não tivesse que arcar eleitoralmente com os desastres do último governo socialista. Depois, de modo ainda mais grave, Barroso foi mais longe, ao entregar o governo a um despesista contumaz, que só esperava a mais pequena oportunidade para proclamar o fim da austeridade e a “retoma” e fazer um orçamento ficcional para ganhar eleições. Bagão Félix ajudou-o e por isso acabou mal a sua carreira governativa.
Eu e mais algumas pessoas andamos a dizer isto nos últimos seis meses, mas os socialistas disseram algo de completamente diferente. Os socialistas criticaram as políticas de contenção do défice, e assumiram posições sempre muito mais próximas das de Santana Lopes do que de Manuela Ferreira Leite. Com o habitual discurso errático também disseram muita coisa em contrário, mas certamente não padeceriam da “obsessão pelo défice” até porque todas as vezes que abriam a boca, e na campanha eleitoral abriram muito a boca, propunham medidas que agravavam o défice.
Muito bem. A essência da operação de propaganda em curso é que afinal o défice está muito acima do que se previa e o Primeiro-ministro mostra-se “preocupado”, coisa que não se percebe porque não estava antes dado que simultaneamente já dizia que o défice iria estar muito acima e ao mesmo tempo dizia que não iria ter, apesar disso, qualquer “obsessão” com ele. O mecanismo que os propagandistas repetem é “está ainda pior do que se esperava”, com a ajuda do Governador do Banco de Portugal que nos devia explicar porque é que ele, mais do que ninguém, só agora se apercebeu e porquê desse descontrole.
Há duas razões para este disparo do défice, mas o PS só quer falar de uma, e é por isso que o que está em curso é uma operação de manipulação da opinião pública e não uma avaliação equilibrada do problema do défice. A razão de que o PS quer falar é a que vem do orçamento fictício de Santana Lopes, que aliás o Presidente da República deixou passar para que os funcionários públicos fossem aumentados e para não se viver de duodécimos, o que talvez impedisse o actual disparo das contas. A outra, aquela de que ninguém fala, é que são os socialistas que estão no poder e que todos os dias acrescentam, por acção e omissão, novo rol de despesas. A estas somam-se outras bem mais perigosas que tem a ver com as expectativas para o consumo privado e para as empresas, positivas ou negativas, levando a gastar-se mais ou a ter medo de investir. Foram os socialistas que saltaram de felicidade pela revisão do Pacto de Estabilidade e a abertura ao furo do défice de 3%para fazer o “choque tecnológico”. E o bloqueamento do processo de acabar com as SCUTS não entra nas contas do défice? E a decisão de não usar despesas extraordinárias, medida que não é estruturante, mas tem valor conjuntural, não ajuda a duplicar os números? E depois são os milhões do “choque tecnológico”, é a nacionalização da Bombardier, são as promessas de reforçar a segurança social dos idosos, são as múltiplas promessas, ainda feitas ontem, que aos portugueses não serão pedidos “mais sacrifícios”.
Pode sempre dizer-se que ainda não há orçamento rectificativo deste governo e por isso tudo se passa devido às previsões irrealistas do anterior. É verdade, mas não chega, porque muitas medidas de contenção, mesmo pontuais e de emergência, já podiam ter sido tomadas e o que acontece é o inverso, abundam as promessas e as medidas que implicam o aumento de despesa. Os socialistas mostram não ter qualquer urgência com o problema, usando o estratagema da comissão verificadora do défice para adiar as medidas que se ignora se são de contenção da despesa pública ou de aumento de impostos. Que há a verificar que o Banco de Portugal não saiba ou não deveria saber?
É mais que evidente que o PS já é, desde o início do ano, o vencedor eleitoral previsível e depois o governante real há cerca de três meses. Como é que se pode falar do disparo do défice neste ano esquecendo que os socialistas já têm que ser chamados a assumir parte dessa responsabilidade? Este esquecimento é que mostra a manipulação da opinião.

13.5.05

A LAGARTIXA E O JACARÉ 35 (Maio 2005)

O ESTILO E O HOMEM


A discussão sobre o “estilo” do primeiro-ministro tem a sua graça, se não prenunciasse as habituais desgraças. O homem tem um estilo, diz Eduardo Prado Coelho, que nestas coisas de “estilo” é mestre. O seu “estilo” é único, frio, distanciado, a contrario das nossas tradições efusivas dos últimos anos, que, de Guterres a Santana Lopes (Barroso também é excepção), encheram a vida cívica de amor e carinho, beijos e afectos. De facto, se fosse só isso, eu também aplaudiria farto da pasta sentimental em que todos nos queriam meter para “passarem bem na televisão”, essa rainha da manipulação afectiva. Mas há um pequeno acrescento na argumentação de Eduardo Prado Coelho que revela a real nudez: Sócrates não quer fazer “reformas abstractas”, proclamadas mas nunca realizadas, mas sim medidas “pontuais”.
Temos pois um governo minimalista para quatro anos e aqui é que a coisa se põe feia. Eu não sou contra pequenas medidas que às vezes tem grandes efeitos, mas parece-me que elas tendem a ser um paliativo e não uma solução. (Já não me refiro à sua eficácia real). De novo, volto ao mesmo, também eu minimal-repetitivo: há ou não há problemas estruturais graves em Portugal que exigem mexer com interesses instalados e têm tanta urgência que não podem ser adiadas? Se me disserem que não, muito bem, pode o engenheiro Sócrates ficar na repartição pública a “inovar” pelos séculos adiante. Agora que todos dizem uma coisa diferente, incluindo os socialistas até ganharem as eleições: havia gravidade, urgência e muita coragem para tocar nos interesses. Se era assim, as medidas pontuais são uma distracção. Onde Guterres adiava e distribuía, Sócrates distrai-nos e também distribui.
O problema é que , para não dizerem que o resto da coluna é só contra a França, os franceses tem uma frase boa para explicar o que acontece quando se assobia para o lado: “chassez le naturel et il revient au galop". E nessa altura o “estilo” de pouco serve.


EU NÃO ACHO NORMAL…

que um antigo Primeiro-ministro, que todos os dias anuncia que está activo da política, diga, com todo o à vontade, que vai ser empregado de um “grupo financeiro” para funções no exterior (percebe-se que África é o target, como agora se diz), porque, como foi chefe do governo, “conheceu” muitas pessoas importantes.
Duvido. No duplo sentido, que seja reconhecido, e que tenha sobre a matéria qualquer competência específica em matéria internacional, que nunca revelou. Eu sei que muitos antigos governantes se dedicam ao negócio das influências, a serem instrumentos de lobbies, mas não me parece que seja coisa para se gabarem e andarem a anunciar aos quatro ventos. O silêncio, a reserva, costumavam ser obrigatórios para esta função, a não ser que o “grupo financeiro” não queira ir longe.
Enfim, não é novidade nem é o primeiro, porque também anda por aí, respeitadíssimo, um outro político sobre o qual o empresário que o empregava dizia que “estar junto do poder valia um milhão de contos”.


BAGÃO FELIX ENGANOU-NOS QUANTO ÀS DÍVIDAS FISCAIS DOS CLUBES, OU SÃO OS SOCIALISTAS QUE ESTÃO A CONTAR MAL A HISTÓRIA?

Não sei mesmo, mas desconfio que as duas coisas são verdade. Aliás duvido que alguém saiba o que se passa com as dívidas dos clubes de futebol ao fisco, a não ser a certeza claríssima de que eles não pagam como toda a gente tem que pagar e têm privilégios injustificados em empresas que estão sempre a fazer negócios de milhões. A verdade é que, sem se perceber nunca o que se passa, eles lá vão escapando, de governo para governo, no meio de alguma fúria pública, muita hipocrisia e ameaças explicitas do devedor que pelos vistos metem medo ao credor. Pensei que Bagão Félix não estava só a fazer bravado eleitoral, mas pelos vistos foi ingenuidade visto que deixou um equívoco despacho, que eu o ouvi defender com má consciência e frouxidão. Acima de tudo sem indignação correspondente aos decibéis com que nos brindava antes. Por isso alguma coisa haverá.
Agora os socialistas que não se encostem à frouxidão alheia para justificar a própria, porque se o estado não consegue fazer nada para que os clubes paguem as suas dívidas ao fisco, todo o combate pelo cumprimento das obrigações tributárias é visto como uma treta inconsequente.


PROTECÇÃO, PROTECÇÃO, PROTECÇÃO

Experimentem cantar a palavra como se fosse uma versão prosaica do Hare Krishna. O que ouvem é o novo hino da Europa, substituindo a “alegria” beethoveniana. Cantam os empresários a propósito dos têxteis chineses, cantam os intelectuais, por causa de Hollywood, cantam os sindicatos que não querem ver os polacos e os checos a estragarem o caríssimo e insustentável “modelo social europeu”.
Nessa versão moderna do Hare Krishna destacam-se os intelectuais. Um bom exemplo do papel que têm tradicionalmente os intelectuais, no sentido eminentemente francês do termo, que aliás pertence à história cultural da França, está à vista nos Encontros que o governo francês patrocinou nestes dias em Paris. A fina flor da intelectualidade europeia foi convocada para cantar a mantra do proteccionismo cultural anti-americano por Chirac e para ajudar à campanha pelo “sim” no referendo francês. Todo o encontro está cheio de equívocos, uns inocentes, outros consentidos, mas na “operação”.
No palco chiraquiano, o rocker francês (ainda não legislaram para que haja uma palavra francesa para rock…) é uma velha personagem da minha vida. Encontra-lo agora no espectáculo do “sim” e dos intelectuais é um tardio ajuste de contas pela Sylvie. Onde antes a França podia avançar e bem com Zola, agora avança com Johny Halliday, um típico subproduto americano.


EU SOU SUSPEITO

porque sou amigo do Vasco Graça Moura, mas que o último livro de poemas que publicou, Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves é um magnifico livro, é. Eu sou ainda mais suspeito porque alguns desses poemas foram publicados inéditos no Abrupto, e porque conheço noutros a “biografia” que lhe está por detrás. Também vivi a mesma Bruxelas, do regresso a casa à noite…Mas eu não suspeito de mim, sei que não sou propriamente partidário do amiguismo na crítica, e que o livro é magnifico, é. Depois, dentro do livro, eu sou também suspeito de gostar daquele movimento entre falas e autorias, que caminha de um poema para outro, e um é de Horácio em latim e Graça Moura em português que soa a latim que soa a português, outro é uma tradução, mais à frente uma versão, mais à frente uma citação. O poema de Blake do tigre, “brilho em brasa”, caminha assim entre palavras dele e nossas. Eu sou suspeito de gostar de ler um livro assim porque acho que este é o cerne da poesia ocidental, uma conversa interior entre textos, uma “alta” conversa mas mesmo assim uma conversa, de corpo para corpo, de tempestade para tempestade, de música para música, de verso para verso, de palavras para palavras, de emoções para emoções. Um dos poemas fala disso, do mundo que já coube e que já não cabe na poesia, mas fala na voz de um “fabro” como Dante chamava a Arnaut Daniel e Eliot a Pound. E o Vasco está no cerne dessa tradição central do “fabro”, a mais clássica de todas, da poesia que se ergue como uma fábrica de palavras, em que os sentimentos são fortes porque são domados por disciplinas antigas como os decassílabos, para não serem vulgares, sendo, como humanamente são, vulgaríssimos.