ANTES E DEPOIS (Junho 1994)
Os recentes acontecimentos na Argélia confrontaram a opinião pública ocidental e os políticos das democracias com uma realidade que dificilmente conseguem integrar não só nas ideias correntes sobre a democracia, como no discurso político dominante. O mal-estar gerado é significativo e a incomodidade, em particular … esquerda, é grande. A direita, como nunca concedeu … democracia o estatuto de um valor metapolítico, compreende muito bem que se façam golpes de estado para resolver os problemas do exercício do poder político.
A atitude dos ocidentais em relação à Argélia é por isso essencialmente hipócrita: receberam de braços abertos um golpe de estado destinado a impedir que os vencedores das eleições assumissem a governação, e acabam por validar a continuidade do poder ditatorial e corrupto da FLN. Tudo conta para legitimar essa atitude: desde o argumento jacobino de que não deve haver liberdade para os inimigos da liberdade (verdade seja dita que o resultado é continuar a não haver liberdade nenhuma), até às múltiplas racionalizações da ignorância ocidental face ao mundo muçulmano e velhos medos nascidos da diferença cultural. O fundamentalismo, reduzindo a sociedade … comunidade, é devastador para a liberdade e a democracia, mas o fundamentalismo não pode passar a ter as costas largas que a FLN, republicana, socialista e laica, e que mergulhou a Argélia no descrédito e na demagogia revolucionária, nunca teve.
Este silêncio prudente e comprometido mostra as dificuldades interpretativas e explicativas de algumas variantes circulantes do pensamento democrático que pareciam suficientes para dar um sustentáculo legitimador ao conflito Leste e Oeste, enquanto este era percebido como um conflito entre a democracia e o totalitarismo. Revelam-se, no entanto, insuficientes para defrontar as ameaças à democracia que vem de um terreno que inclui fortes elementos do simbólico. O caminho progressivo do pensamento ocidental para a laicização do político, em sociedades criadas elas próprias pelo crescimento da "descrença", levaram a tomar por adquirido que o conflito ideológico se faria apenas pelo confronto de modelos de sociedade secular. Ora para o caso da Argélia e não só, não basta.
A crise argelina mostra como o pensamento democrático precisa de ser pensado para além de uma espécie de escolástica positivista, de um racionalismo mais ou menos apodíctico que faz surgir da razão e das luzes, o "império das leis" e a livre contratualidade social. Sempre foi esta aliás uma das minhas divergências antigas com João Carlos Espada que tem, melhor do que ninguém, feito o apostolado deste entendimento da democracia. O resultado é a profunda sensação de irrealidade que emana dos seus textos em relação aos problemas concretos da política e um forte pendor pedagógico e normativo. O que escreveu sobre a Argélia não escapa a esta irrealidade.
O problema, e faço justiça ao Espada de saber que ele o reconhece, é que seria tudo mais fácil se a FIS pudesse aceder democraticamente ao poder e fosse limitada no exercício desse poder por uma constituição que a impedisse de aplicar a sharia ou de retirar os direitos às mulheres - que a subordinasse ao "império das leis". Mas esta "boa e bem estabelecida solução teórica", como Espada se lhe refere, pouco nos diz sobre as razões porque os povos parecem renitentes … "bondade" teórica de tais soluções, ou sobre o problema prático de saber como é que se gera uma cultura democrática onde ela não existe. Aliás Espada mostra a sua dificuldade em defrontar situações como a argelina quando atribui, nas conclusões do seu artigo, a falência do primado do "império da lei" … circunstância de este "não dar votos" aos políticos que o defendem. Nada é mais remoto de qualquer descrição dos problemas da democracia (ou da sua falta) na Argélia do que esta conclusão que escapa ao problema essencial de saber porque é que as "massas" não desejam esse bem precioso que são as "leis" e votam na fé em vez da razão.
Sempre pensei que o pensamento democrático mais interessante e mais útil é aquele que é pensado nos limites da democracia, nas suas fronteiras e não no seu centro, o que é pensado com tragédia e interrogação - como dúvida. Mesmo como dúvida sobre as virtualidades de democracia. Dito de outra maneira: aprende-se mais sobre a democracia com Weber e Nietszche do que com Popper.
Mais: aprende-se muito sobre a democracia entendendo, no sentido weberiano, as pulsões anti-democráticas, em vez de as esconjurar como se viessem das trevas exteriores. Rapidamente se percebe então a precariedade da ideia de que tudo possa ser resolúvel a uma razão transparente e a uma mera mediação de contratos sociais volunt rios, ignorando que há obscuridades essenciais nos comportamentos individuais e colectivos, que o "império das leis" cede muito mais ao império dos sentidos do que desejaríamos.
Freud percebeu essa opacidade e mostrou os limites do racionalismo clássico para entender os comportamentos quer individuais, quer das "massas". Um certo adormecimento dogmático do pensamento sobre a democracia tem levado a esquecer a relação entre a democracia e a demagogia e a esconder que, mesmo nas democracias mais consolidadas, não se consulta o "povo" sobre determinadas questões porque a sua resposta seria bem pouco conforme com os cânones políticos do pensamento democrático. É o caso, em determinadas circunstâncias, da pena de morte, dos privilégios dos políticos, ou dos impostos.
As grandes tentações totalitárias do nosso século e que tiveram expressão de massas, - o nazismo e o comunismo -, não surgiram tão longe de nós como gostaríamos que tivesse acontecido. A sua origem não está em qualquer perversão social, atraso cultural e económico, mas no nosso quotidiano mais vulgar, no meio de povos com grande tradição civilizacional como o alemão ou de sociedades tecnologicamente desenvolvidas como as da Europa entre as duas guerras.
Existe a tendência para esquecer que o poder, - mesmo o poder democrático -, assenta numa violência e que nessa fonte primeira não há assim tanta diferença entre a democracia e os seus opostos. As diferenças surgem depois, nessa mediação que separa a natureza da cultura e que faz a civilização. Só que muitas vezes não se chega ao depois, fica-se no antes.
Os recentes acontecimentos na Argélia confrontaram a opinião pública ocidental e os políticos das democracias com uma realidade que dificilmente conseguem integrar não só nas ideias correntes sobre a democracia, como no discurso político dominante. O mal-estar gerado é significativo e a incomodidade, em particular … esquerda, é grande. A direita, como nunca concedeu … democracia o estatuto de um valor metapolítico, compreende muito bem que se façam golpes de estado para resolver os problemas do exercício do poder político.
A atitude dos ocidentais em relação à Argélia é por isso essencialmente hipócrita: receberam de braços abertos um golpe de estado destinado a impedir que os vencedores das eleições assumissem a governação, e acabam por validar a continuidade do poder ditatorial e corrupto da FLN. Tudo conta para legitimar essa atitude: desde o argumento jacobino de que não deve haver liberdade para os inimigos da liberdade (verdade seja dita que o resultado é continuar a não haver liberdade nenhuma), até às múltiplas racionalizações da ignorância ocidental face ao mundo muçulmano e velhos medos nascidos da diferença cultural. O fundamentalismo, reduzindo a sociedade … comunidade, é devastador para a liberdade e a democracia, mas o fundamentalismo não pode passar a ter as costas largas que a FLN, republicana, socialista e laica, e que mergulhou a Argélia no descrédito e na demagogia revolucionária, nunca teve.
Este silêncio prudente e comprometido mostra as dificuldades interpretativas e explicativas de algumas variantes circulantes do pensamento democrático que pareciam suficientes para dar um sustentáculo legitimador ao conflito Leste e Oeste, enquanto este era percebido como um conflito entre a democracia e o totalitarismo. Revelam-se, no entanto, insuficientes para defrontar as ameaças à democracia que vem de um terreno que inclui fortes elementos do simbólico. O caminho progressivo do pensamento ocidental para a laicização do político, em sociedades criadas elas próprias pelo crescimento da "descrença", levaram a tomar por adquirido que o conflito ideológico se faria apenas pelo confronto de modelos de sociedade secular. Ora para o caso da Argélia e não só, não basta.
A crise argelina mostra como o pensamento democrático precisa de ser pensado para além de uma espécie de escolástica positivista, de um racionalismo mais ou menos apodíctico que faz surgir da razão e das luzes, o "império das leis" e a livre contratualidade social. Sempre foi esta aliás uma das minhas divergências antigas com João Carlos Espada que tem, melhor do que ninguém, feito o apostolado deste entendimento da democracia. O resultado é a profunda sensação de irrealidade que emana dos seus textos em relação aos problemas concretos da política e um forte pendor pedagógico e normativo. O que escreveu sobre a Argélia não escapa a esta irrealidade.
O problema, e faço justiça ao Espada de saber que ele o reconhece, é que seria tudo mais fácil se a FIS pudesse aceder democraticamente ao poder e fosse limitada no exercício desse poder por uma constituição que a impedisse de aplicar a sharia ou de retirar os direitos às mulheres - que a subordinasse ao "império das leis". Mas esta "boa e bem estabelecida solução teórica", como Espada se lhe refere, pouco nos diz sobre as razões porque os povos parecem renitentes … "bondade" teórica de tais soluções, ou sobre o problema prático de saber como é que se gera uma cultura democrática onde ela não existe. Aliás Espada mostra a sua dificuldade em defrontar situações como a argelina quando atribui, nas conclusões do seu artigo, a falência do primado do "império da lei" … circunstância de este "não dar votos" aos políticos que o defendem. Nada é mais remoto de qualquer descrição dos problemas da democracia (ou da sua falta) na Argélia do que esta conclusão que escapa ao problema essencial de saber porque é que as "massas" não desejam esse bem precioso que são as "leis" e votam na fé em vez da razão.
Sempre pensei que o pensamento democrático mais interessante e mais útil é aquele que é pensado nos limites da democracia, nas suas fronteiras e não no seu centro, o que é pensado com tragédia e interrogação - como dúvida. Mesmo como dúvida sobre as virtualidades de democracia. Dito de outra maneira: aprende-se mais sobre a democracia com Weber e Nietszche do que com Popper.
Mais: aprende-se muito sobre a democracia entendendo, no sentido weberiano, as pulsões anti-democráticas, em vez de as esconjurar como se viessem das trevas exteriores. Rapidamente se percebe então a precariedade da ideia de que tudo possa ser resolúvel a uma razão transparente e a uma mera mediação de contratos sociais volunt rios, ignorando que há obscuridades essenciais nos comportamentos individuais e colectivos, que o "império das leis" cede muito mais ao império dos sentidos do que desejaríamos.
Freud percebeu essa opacidade e mostrou os limites do racionalismo clássico para entender os comportamentos quer individuais, quer das "massas". Um certo adormecimento dogmático do pensamento sobre a democracia tem levado a esquecer a relação entre a democracia e a demagogia e a esconder que, mesmo nas democracias mais consolidadas, não se consulta o "povo" sobre determinadas questões porque a sua resposta seria bem pouco conforme com os cânones políticos do pensamento democrático. É o caso, em determinadas circunstâncias, da pena de morte, dos privilégios dos políticos, ou dos impostos.
As grandes tentações totalitárias do nosso século e que tiveram expressão de massas, - o nazismo e o comunismo -, não surgiram tão longe de nós como gostaríamos que tivesse acontecido. A sua origem não está em qualquer perversão social, atraso cultural e económico, mas no nosso quotidiano mais vulgar, no meio de povos com grande tradição civilizacional como o alemão ou de sociedades tecnologicamente desenvolvidas como as da Europa entre as duas guerras.
Existe a tendência para esquecer que o poder, - mesmo o poder democrático -, assenta numa violência e que nessa fonte primeira não há assim tanta diferença entre a democracia e os seus opostos. As diferenças surgem depois, nessa mediação que separa a natureza da cultura e que faz a civilização. Só que muitas vezes não se chega ao depois, fica-se no antes.