29.12.04

JACARÉ E A LAGARTIXA 17 (Dezembro 2004)

AS LISTAS NACIONAIS

DEZ COISAS MAIS


Coragem das nossas tropas da GNR no Iraque, a que não tem faltado voluntários nem dedicação. É pelo dinheiro? É pelo bravado? Também é, mas é também pelo patriotismo de quem se sente militar.

A campanha eleitoral do PS entre Alegre e Sócrates foi um exemplo do envolvimento da opinião pública numa contenda interior num partido. O PSD, noutros tempos, e com outra fórmula, já foi capaz disto. Agora não é e foi o PS a fazê-lo e bem.

A Lei das Rendas esteve para ser mais radical, mas foi progressivamente “moderada” pelas pressões dos inquilinos. Mesmo assim ela podia, a prazo, inverter o papel do arrendamento urbano e diminuir a degradação das grandes cidades portuguesas. Não passou devido à dissolução, mas fica como um marco.

O fim das SCUTs, que devia ser universal e passou a ser casuístico, também devido às pressões das autarquias e populações, era uma correcção mais que necessária de um dos desmandos orçamentais mais flagrantes da governação Guterres. Também caiu com a dissolução, mas, mais cedo ou mais tarde, terá que se voltar a esta medida sob pena de não haver orçamento para as obras públicas.

O Euro2004 não era, de longe, prioridade nenhuma, muito menos “desígnio nacional”. Mas, já que se fez, ao menos que se tenha feito bem, como tudo indica que aconteceu.

A investigação da corrupção no futebol parece ter começado a sério. O “apito dourado”, um nome um pouco imbecil, traduz pelo menos uma vontade de esclarecimento que se espera vá até ao fim.

Pouco a pouco, o jornalismo português vai fazendo uma auto-reflexão crítica, com destaque para as iniciativas do Clube dos Jornalistas e para os blogues (como o Ponto Média e o Jornalismo e Comunicação), e para as revistas académicas e estudos, em particular da colecção dirigida por Mário Mesquita. Ainda há muita reacção corporativa pavloviana, mas o contrário também se verifica. Finalmente.


Os blogues portugueses foram a mais importante alteração positiva do sistema comunicacional nacional. Têm, todos sabemos, coisas péssimas: leviandade, cobardia anónima, agressividade balofa, arrogância moral, manipulação, militantismo sectário. Mas são miasmas que vêm da nossa atmosfera pequena e asfixiante, cheia de ressentimentos e escassez de bens e lugares, para a blogosfera. Mas, da blogosfera para fora, saiu qualidade, debate, controvérsia, imaginação e notícias.

No meio de muito lixo, continuam a publicar-se bons livros. Traduções fundamentais de Frederico Lourenço (de Homero), de Vasco Graça Moura (de Petrarca), de Pedro Támen (de Proust). A publicação da correspondência António José Saraiva – Óscar Lopes e o ensaio de Fernando Gil sobre o terrorismo, o anti-americanismo e o Iraque, são bons exemplos de “não ficção”.

A consagração tardia de Paula Rego em grandes exposições nacionais que revelam uma das maiores pinturas contemporâneas, dotando-nos de um universo pictórico genuinamente novo, que só uma mulher, uma portuguesa, uma louca genial podia ter feito.


DEZ COISAS MENOS


A morte de Sousa Franco, “morto” pela maneira como se fazem campanhas eleitorais em Portugal e pelo grau zero da politiquice partidária local, neste caso, do PS de Matosinhos.

Saída de Durão Barroso, numa fuga em frente, depois de dizer que “tinha compreendido” a mensagem dos portugueses nas eleições europeias, e deixando tudo a meio para um sucessor que ele não podia deixar de saber que era incompetente como chefe de governo.

Chegada de Santana Lopes a Primeiro-ministro empurrado pela acefalia do PSD face ao poder. Se as estruturas do partido se tivessem lembrado da frase de Sá Carneiro sobre como o país deve estar à frente do partido, nunca tinham embarcado numa situação que desprestigia o partido e lhe hipoteca o futuro.

Modo como o PSD tratou Manuela Ferreira Leite mostrando como pode ser cruel a injustiça dos partidos (a sociedade portou-se bastante melhor) face a alguém que tinha ganho a batalha da interiorização da austeridade, algo que nem o tandem Soares-Ernâni Lopes tinha conseguido. Este foi o bem mais precioso da governação Barroso e logo desbaratado.

As interferências na comunicação social , a começar pelo caso Marcelo, do governo Santana Lopes. Claras, brutais, inequívocas e … completamente contraproducentes.

O anúncio do “fim” da austeridade foi o acto mais irresponsável do governo de Santana Lopes.

A pergunta do referendo europeu é um retrato de como os partidos (PS, PSD.PP) não tem respeito pelos portugueses e não hesitam em tentar manipula-los de uma forma grosseira, contribuindo para o défice democrático europeu.

A “justiça” no caso Casa Pia mostrou como era frágil, inepta e arrogante ao mesmo tempo, pouco sensível aos direitos e soçobrando no meio do mais pequeno vento dos poderosos e da manipulação dos media. Não se sabe ainda o que o processo vai dar, mas já deu o bastante para que haja muita probabilidade das vítimas continuarem vítimas.

Excesso de futebol na RTP, e populismo televisivo na TVI, são os símbolos da degradação de muita da oferta televisiva portuguesa, que se deteriora dia a dia.

Sócrates como a candidato da oposição é um péssimo sintoma do futuro. Sócrates é um produto mais “moderno” da mesma fábrica que gerou Santana Lopes. Enquanto que Lopes se fez entre o comentário desportivo e o teatro espectacular dos Congressos do PSD, Sócrates já é um produto mais dependente da imagem de holograma gerada pelos media. Sócrates tem mostrado um cinzentismo apático na oposição e pouca vontade de mudar, o que está longe de ser o bastante para quem tem posta no prato, uma mudança de ciclo político. É certo que, como governante, deu melhores provas do que Santana, mas foi demasiado pouco para fazer um currículo. Apesar de tudo, Santana Lopes tem mais vida, mais sangue, lágrimas e drama, e o choque entre os dois, à primeira vista, beneficia suficientemente Lopes para este lhe arrancar a maioria pedida.
JACARÉ E A LAGARTIXA 16 (Dezembro 2004)

CONDUÇÃO ERRÁTICA E (NÃO) COLIGAÇÃO

No PSD de hoje não adianta procurar qualquer ordem, qualquer estratégia, qualquer táctica para além da mais imediata gestão jornalística (feita por empresas de relações públicas) da propaganda. Na realidade, não há direcção política no sentido de não haver estratégia política, pagando-se o preço da deterioração da qualidade dos órgãos dirigentes, que já vem de longe, e da tendência perniciosa para se transformar num partido unipessoal. Como a liderança é errática até dizer chega, o partido tornou-se errático e funciona aos surtos contraditórios. No interior do partido e no grupo parlamentar é obvio que há actividades de existência e sobrevivência, mais reactivas aos lugares e à perda deles, mas a capacidade de influência no país e a atracção dos melhores para o partido e para a política está a um grau zero.
No partido, há “camisola” em muitos militantes que tem genuína vontade de mudar o país. Mas há muita impotência e perplexidade. E política há pouca. Se excluíssemos a jigajoga com o PS (a que o PS responde igualmente entoando a sua jigajoga) pouco sobraria. Se proibíssemos as acusações mútuas do género “vocês fizeram isto e nós aquilo”, que noutra ecologia têm todo o sentido existir, ficaria um enorme vazio O modo como toda a questão da coligação com o PP foi tratada é exemplar desse vazio político e deu ao país uma imagem de confusão e de mero apetite pelo poder.
Andou-se quinze dias a dizer sim e não, conforme os dias e as horas do dia e a impressão que fica é que o PSD a desejava e o PP, altaneiro, a recusou ou dificultou. A coligação começou por ser contra-natura na história ideológica do PSD visto que, nem de perto nem de longe tinha alguma coisa a ver com a AD do passado. Acabou por ser um expediente de governo que se foi tornando, à custa do PSD, numa dependência eleitoral como retrato da falta de confiança que Durão Barroso tinha na sua capacidade de ganhar eleições. Foi assim nas eleições europeias, com os resultados desastrosos para o PSD que se viu. O PSD já teve e pediu maiorias absolutas, lembram-se, ainda havia dinossauros na terra? Agora o PSD mendiga uma aliança com o PP e o PP dá-se ao luxo de fazer a rábula do caro. E tudo acabou. E ambos avaliam mal o desastre para que caminham
As razões nacionais para a coligação, caso existam, delas ninguém falou. Foi a pura ponderação de sondagens e a distribuição de lugares, tornados escassas pelas más perspectivas eleitorais, que levaram à decisão. A retórica dos dois dirigentes não oculta a triste realidade de fim de festa.


A MELHOR FOTO DA SEMANA: UMA FOTO QUE DIZ QUASE TUDO

Esta foto de António Pedro Ferreira,publicada no Expresso desta semana,é um daqueles retratos perfeitos de tudo: das pessoas, da situação, da postura, faces, olhares, de com quem estamos metidos. Ali estão três pessoas que deveriam ser as mais poderosas de Portugal: Primeiro-ministro, Ministro de Estado responsável pela economia, e Ministro da Defesa. Cinco ou seis maiúsculas nos títulos. São poderosas mas não são tão poderosas como pensam. O poder parece só pesar a Álvaro Barreto, que é o único que está preocupado e parece não achar graça nenhuma ao que se está a passar. Tem toda a razão. O que se está a passar é o debate do Orçamento e as trapalhadas que levaram à dissolução. Os outros dois são jongleurs, jogadores da ribalta mediático-política, hábeis, sobreviventes do cimo da onda, mestres na espuma em que nos estamos tornando. Diante dos seus olhos está sempre um espelho, nunca um país. Querem lá saber do peso que Álvaro Barreto carrega aos ombros. O Primeiro-ministro está no gozo ao telefone, a mão tapa a conversa do seu vizinho do lado mas quase que se advinham as palavras. Uma coisa é certa: não são assuntos de estado. O Ministro da Defesa está satisfeito, com a mão no Velho Dinheiro, que tanto glorificou no Independente, e o olhar no mundo do Novo Dinheiro que tanto ajudou a estabelecer-se quanto dele pensa ser imune e superior. O seu sorriso diz-nos: o mundo é meu. Um certo Portugal está ali e não está a acabar.


O RETORNO DO PAULINHO DAS FEIRAS

Um editorial do Diário de Notícias desta semana tem toda a razão: a fronda de Portas contra os bancos é o retorno do “Paulinho das feiras”, tal como ele foi sempre. A ridícula adoração de alguns jovens direitistas aos “princípios” de Portas é um dos mal-entendidos mais completos que existe em Portugal. Portas não acredita em nada. É raro o caso na vida política portuguesa de uma ambição de poder tão pura, nua, cruel, amoral e cínica como a de Paulo Portas. Que Portas não acredita em nada, a não ser na predestinação dessa ambição, quem o leia há muito tempo não tem, sobre isso a mínima dúvida. Do cinismo à Vasco Pulido Valente sobre os portugueses ao patriotismo nacionalista serôdio, das invectivas moralistas do Catão do Independente à sinecura ambígua da Universidade Moderna, do anti-europeismo da palmeta e da pêra-rocha ao “sim” à Constituição Europeia, ele fará e ele será o que for preciso, quando for preciso.


O MUNDO GOOGLE

Se a nossa atenção se dirigisse para as coisas verdadeiramente importantes para o futuro (para o presente a atenção deve olhar para outras coisas) acompanharíamos, com a mesma atenção que a imprensa de referência internacional dá, tudo o que diz respeito ao mundo dos dados em linha e dos motores de busca. Ou por ordem inversa, de como através dos motores de busca chegamos às informações que precisamos. Quem no futuro controlar o modo como acedemos às informações, e mais importantes ainda, aos espectáculos, à televisão, á música, aos filmes, aos jogos, à virtualidade, a tudo o que é entretenimento,


UM PRÉMIO PARA UM BLOGUE PORTUGUÊS

Um blogue, o Ponto Media de António Granado ,ganhou um importante prémio europeu, o BOB (Best of Blogs) para o melhor blogue jornalístico em português, dado pela emissora alemã Deutsche Welle. O Ponto Media é um blogue despojado, uma colecção especializada de ligações, com textos, notícias, sítios, e blogues sobre comunicação social. Granado acrescenta poucas palavras às suas ligações, e o resultado é um instrumento de trabalho ligeiro e actualizado, indispensável aos especialistas e aos curiosos. Ele vive de uma das tradições, que é também uma das suas grandes virtualidades, da rede – o hipertexto enciclopédico, o Livro dos Livros.
O sucesso merecido de um blogue português deve chamar a atenção para o dinamismo da blogosfera portuguesa cujos ratings são internacionalmente reconhecidos: dois blogues portugueses fazem parte da lista dos cem mais “ligados” num universo de dois milhões e quinhentos mil na lista referência da Technorati. Há que reconhecer que os blogues portugueses portam-se bem melhor na competição internacional do que muitos outros produtos culturais. E ainda só estão a começar.

13.12.04

O JACARÉ E A LAGARTIXA 14 (Dezembro 2004)

O SANTANISMO GOSTARIA DE TER SIDO UM GUTERRISMO MAS NÃO FOI

O país, que esteve cego pela falsa abundância do guterrismo, é o país idêntico ao que transporta a depressão nacional do santanismo. Um é o reverso aparente do outro, ambos são feitos da mesma massa, mas um correu bem ao princípio e fugiu no fim e o outro nunca correu bem e vai acabar mal. Está escrito nas estrelas. (Não foi preciso alterar esta frase, porque as estrelas cumpriram o seu dever.)
O guterrismo era um optimismo caro, o santanismo está a ser um pessimismo caro, mas gostava em bebé de ter sido um guterrismo. O que é que impede que o santanismo seja um guterrismo mesmo que mais pobre, mas igualmente despesista e incapaz de pensar o futuro? À primeira vista, o estilo populista do Primeiro-ministro deveria ser mais eficaz do que as simples técnicas do “Kiss” (keep it simple and stupid) do guterrismo, mas verificou-se que mesmo com tanto assessor e marketing, os resultados são escassos.
O problema está no produto. O engenheiro sabia umas coisas, tinha sido um aluno aplicado, e dominava as matérias da governação. Governava mal, mas não era por impreparação, era por socialismo e “solidariedade cristã”, era pelo pendor para o facilitismo, era porque demasiada abundância, num país como Portugal, dá sempre asneira. Mas era um homem estável e sossegado.
O actual Primeiro-ministro agita-se na razão directa da sua impreparação para o cargo que exerceu. Não tem credibilidade junto dos seus pares, nem conhecimento para discutir com eles qualquer vaga medida governamental. Quando é “espontâneo”, como lhe pedem aqueles que pensam que assim se salva melhor, o resultado é o discurso da incubadora, signé Santana Lopes como se fosse uma tatuagem a fogo.
É chefe de um grupo que precisa dele mais do que o contrário, mas, como respira fidelidades reverenciais, tende a escolher mal. Quem é que estaria disposto, entre os melhores, a ouvi-lo o dia todo a queixar-se de “eles”, a falar de “alguns”, a acusar “outros”, inuendos que não faltam em nenhuma sua frase “espontânea”?
O resultado está à vista. Esteve sempre à vista para quem era capaz de o ver.

A DEBANDADA

Um sector social importante e interessante entusiasmou-se com o guterrismo e deu uma importante caução ao santanismo nos seus dire straits iniciais: uma parte dos empresários portugueses com destaque para aqueles que precisam de um estado gastador e benevolente ao seu lado para os “proteger”.
O sinal interessante do que ia acontecer apareceu no Diário Económico, mostrando que tinha começado a debandada. Título: “Empresários criticam Santana Lopes por instabilidade política”. Abertura da notícia: Os empresários e economistas portugueses declaram-se muito preocupados com os efeitos na economia do período de instabilidade política que se abriu com a nomeação de Santana Lopes para primeiro-ministro e que, no passado fim-de-semana, conheceu um novo pico (…) Os empresários ouvidos pelo DE acusam o Governo de não ter qualquer estratégia de promoção do desenvolvimento e de só se preocupar com a gestão do dia-a-dia.”

Em breve, o eng. Sócrates estará a fazer almoços com empresários, na tradição do eng. Guterres. Foi certamente algo que pesou junto do Presidente da República, como já tinha pesado antes há quantro meses atrás.


SERÁ QUE ALGUÉM FEZ ALGUMAS VIOLÊNCIAS DIVERSAS ÀS CRIANÇAS DA CASA PIA OU NADA ACONTECEU E A PRIMEIRA VÍTIMA É O SENHOR CARLOS SILVINO A QUEM NINGUÉM DÁ O BENEFÍCIO DA DÚVIDA`?

A ouvir os comentários sobre o processo Casa Pia parece que tudo é uma invenção, a não ser no caso do senhor Carlos Silvino que sobre esse ninguém se importa. Esse foi o único que eu vi de algemas, por isso deve ser o único culpado. Eu parecia-me que tinha havido “indícios” da existência de uma rede de prostituição infantil, que usava como mão-de-obra sexual as crianças da Casa Pia. Agora, ouvindo o que se diz, parece que havia prostituição mas não havia clientes. Engraçado que os que dizem que os acusados não são culpados (e podem não sê-lo) nunca se perguntam onde estarão os culpados. Porque alguma coisa aconteceu ou não? Ou é tudo invenção?


O MELHOR CRENTE

Todas as semanas Luís Delgado escreve uma oração ao Senhor dos Aflitos para que o mundo seja aquilo que ele quer que seja: bom para o dr. Santana Lopes, para o governo da nação, e para ele, o fiel dos fiéis. Para que nada aconteça. Para que nada se passe. Para que não haja cataclismos, nem ministros “irresponsáveis”. Para que haja calma e tranquilidade. Para que não haja “agitações reais e artificiais”. Para que não haja “alarmes”. Para que haja “pensamento positivo”. Para que os “negativistas” ardam no Inferno. Para que os críticos “ressentidos” sejam internados em hospitais psiquiátricos. Para que haja respeito. Para que não haja despeito. Para que haja outra entrevista em prime-time do primeiro-ministro para que este “fale” para o povo “por cima” dos “comentadores”. Para que a “comunicação passe” (uma frase marcelista). Para que o Natal chegue depressa. Para que haja muitas prendas no sapatinho. Para que a meteorologia se comporte bem. Para que os portugueses não ouçam as vozes da desgraça. Para que Santana mantenha o seu “integral domínio” da economia (sim, ele foi capaz de escrever isto num delírio da fé). Para que Santana continue no “seu melhor”, como está sempre e cada vez mais. Para que o Azul seja Verde. Para que o Amarelo seja Vermelho. Para que o duro seja mole. Para que o quente seja frio. Para que a gravidade nos puxe para cima. Para que Nosso Senhor nos ouça.
Não ouviu.

ELOGIO DA TASCHEN


O mundo é feito de mil palavras e de mil imagens. Das mil imagens muitas se perdem todos os dias, em particular as mais humildes, os cartazes, os panfletos, as capas dos discos, os reclames, os folhetos, as gravuras das caixas de fósforos, os prospectos turísticos, as ilustrações das publicações baratas, da pulp fiction, desenhos, gravuras, litografias, aguarelas, feitas por trabalhadores anónimos.
Esta colecção “Ícones” da Taschen, como aliás outras da mesma editora, recolhe e divulga de forma barata algumas dessas imagens, sonhos e medos, diabos e aviões, mariachis e santos, deuses indianos e pedagogia do socialismo da defunta RDA, tentações de Las Vegas e imaginações da ficção cientifica, cortes de cabelo em Bombaim e bares na cidade do pecado, ícones do nosso perdido tempo. É o mundo do kitsch, mas quem é que cresce no meio dos Uffizi ou da Tate?

7.12.04

A LAGARTIXA E O JACARÉ 13 (Novembro 2004)

O OUTRO DEBATE PÚBLICO: OS BLOGUES POLÍTICOS

O Causa Nossa, o blogue de um grupo de simpatizantes e militantes socialistas, com relevo para Vital Moreira, fez um ano. Na blogosfera, um ano é um século, pelo que aguentar a parada durante tanto tempo é mérito. No caso do Causa Nossa o mérito é tanto maior quanto este blogue é um dos animadores do debate político na rede e este, no seu conjunto, está a milhas de qualidade do que se pratica no espaço público dos átomos, em particular no sistema político-jornalístico. Nesse debate exterior há vozes individuais fortes e indispensáveis, a mecânica dos jornais dá à opinião um papel vigoroso e eficaz, mas é a preponderância de vozes individuais que sobreleva a um debate colectivo. Na blogosfera existe a informação, a interacção, a rapidez e a qualificação do debate sem paralelo “lá fora”. Como em todas as coisas há o bom, o mau e o muito mau, mas havendo o bom já não estamos mal.
Sendo injusto, como se é sempre quando se escolhe poucos entre muitos, esse debate político é fomentado essencialmente por um pequeno número de blogues, de que aqui cito cinco. Embora a política tenha uma representação em muitos outros blogues, mais pessoais ou mais especializados, os exemplos que vou dar são de blogues predominantemente sobre política, a maioria próximos dos socialistas e do Bloco de esquerda, e um mais à direita do espectro político, para utilizar os descritores habituais. A composição política da blogosfera conheceu uma evolução para a esquerda, que a coloca mais próxima dos equilíbrios do sistema político-comunicacional, em grande parte favorecida pela saída de alguns pioneiros que se assumiam como de direita e que migraram para a comunicação social tradicional. De igual modo, a forma como evoluiu o conflito iraquiano, uma pedra de toque nas polémicas iniciais, favoreceu a crescente intervenção da esquerda na blogosfera. Tal evolução era inevitável, mas a blogosfera continua a manter muitas especificidades, em particular uma forte representação do pensamento liberal e eurocéptico, que não tem expressão no sistema político-comunicacional fora da rede. Aí uma agenda política muito limitada e limitadora, assente no mainstream político, reflecte a escassez que tradicionalmente os partidos políticos e os jornais portugueses têm de liberdade e imaginação face á Europa e face ao “estado social”.

CINCO BLOGUES POLÍTICOS

Para além do Causa Nossa, são relevantes os Blogue de Esquerda II e Barnabé , ambos próximos do Bloco de Esquerda e da esquerda radical. O Barnabé é o mais lido, mas o menos influente pela sua duplicação da agenda jornalística e grande previsibilidade, enquanto o Blogue de Esquerda II, um pioneiro dos primeiros tempos da blogosfera, tem uma voz com identidade e qualidade. Perdeu o ambiente de polémica dos primeiros tempos, que hoje é assumido essencialmente pelo Barnabé, mas os interesses dos seus autores estão longe de se limitar à agenda político-jornalística e isso é dá-lhe uma respiração própria.
Alinhado no campo do socialismo moderado, o Bloguítica é de todos os que cito o único que é de autoria individual, escrito por Paulo Gorjão, o que representa um enorme esforço e trabalho do autor. No Bloguítica encontra-se uma análise sempre acertada do spin governamental, revelando, com exemplos, aquilo que muitas vezes escapa ao jornalismo superficial que se deixa usar e serve de eco para passar “mensagens” políticas com origem em sectores do governo. As mais recentes notas sobre a “trigunta” são um contraponto ao emaranhado jurídico em que Vital Moreira se deixou prender na questão da pergunta do referendo europeu.
Para servir de contraponto a esta hegemonia da esquerda, o Blasfémias é o herdeiro colectivo de um grupo de blogues ligados ao pensamento liberal e aos dissidentes do PP, mas que ganharam em conjunto uma dimensão e uma massa crítica que o fazem a melhor voz liberal na blogosfera. Nele escreve João Miranda um caso muito interessante de humor e perspicácia política, traduzida nas notas recentes sobre a pergunta do referendo, muito mais imaginativo que os imitadores nacionais do Spectator.

EXEMPLO DA INFORMAÇÃO EXISTENTE NOS BLOGUES - A RECORDAÇÃO DE “UM FILÓSOFO JÁ ANTIGO”

Citado nos blogues, com a importância devida, ignorado fora deles, este diálogo no Parlamento Europeu, para se perceber o “caso Buttiglione”:

Buitenweg : "Senhor Buttiglione: Algumas das suas opiniões estão em directa contradição com a lei europeia. Por exemplo: a discriminação com base na orientação sexual é interdita e o Senhor disse que a homossexualidade é um pecado e é sinal de desordem moral. Gostaria de saber directamente de si, agora, como é que nós poderemos esperar que o Senhor combata por esse direito e se poderia dar-nos um exemplo de como espera alcançar o seu objectivo."

Buttiglione: "Posso recordar um filósofo, já antigo, mas talvez não completamente esquecido, de Könisberg - um tal Emmanuel Kant -, que fez uma clara distinção entre moralidade e direito. Muitas coisas, que podem ser consideradas imorais, não devem ser proibidas. Quando fazemos política, não renunciamos ao direito de ter convicções e eu posso pensar que a homossexualidade é um pecado e isso não ter efeito na política, o que só sucederia se eu dissesse que a homossexualidade é um crime. Da mesma maneira, a Senhora é livre de pensar que eu sou um pecador em muitas coisas da vida, e isso não tem nenhum efeito nas nossas relações como cidadãos.

"Direi por isso que considero uma abordagem inadequada do problema pretender que toda a gente concorde em questões de moralidade.(…) "Nós podemos construir uma comunidade de cidadãos mesmo que em algumas questões de moralidade tenhamos opiniões diferentes. A questão é, isso sim, da não discriminação. O Estado não tem o direito de meter o nariz nessas questões de moralidade e ninguém pode ser discriminado com base na sua orientação sexual ou qualquer orientação de género. É isto o que está na Carta dos Direitos Fundamentais, na Constituição, e eu tenho defendido esta Constituição."


A INFLUÈNCIA DOS BLOGUES POLÍTICOS CONTRA O JORNALISMO DE REBANHO

A influência destes blogues é grande, mas ainda demasiado invisível. São lidos já hoje por milhares de pessoas por dia, e os mais lidos têm mais leitores do que alguns jornais diários como A Capital. Todos são lidos pela generalidade dos jornalistas, e muitos deles fornecem um suplemento mais fresco de questões, debates, pontos de vista, informações que a imprensa tradicional aproveita quase sempre sem citar. Enquanto nos blogues há uma cultura da citação, pelas características de hipertexto que tem a rede, nos jornais só se cita inter-pares, quando a visibilidade de um artigo ou de uma opinião a torna inevitavelmente de autor.
Mas, do mal, o menos, sempre se contraria a tendência para o “pack journalism”, o jornalismo de rebanho, que tanto caracteriza os órgãos de comunicação social de hoje. O que um diz é igual ao que diz o outro e por aí adiante, e ninguém se atreve a ter um olhar diferente. Continua a ser pejorativo que se diga de um jornal ou de um noticiário televisivo “só eles é que pegaram nesse aspecto”, como se isso fosse um defeito, o preço do afastamento do rebanho.
Nos blogues, o efeito de rebanho também existe, em particular na dependência da agenda mediática, mas é menor e funciona doutra maneira. Há lá muito ego á solta, os que sabem e os que não sabem. Dos que não sabem, o peso da ignorância presumida empurra para o limbo, dos que sabem, aprende-se mesmo quando não se concorda. Leiam os blogues que vale a pena.
A LAGARTIXA E O JACARÉ 12 (Novembro 2004)

NÃO

3. DOS “PEQUENOS PASSOS” À CORRERIA

A Europa tem vindo a fazer-se com sucesso pelo “método dos pequenos passos”, que Jean Monnet preconizou desde início. Nas suas primeiras duas décadas constitui-se como Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), e passou a Comunidade Económica Europeia no Tratado de Roma (1957). Alargou-se, pouco a pouco, até na década de oitenta ter quinze países europeus. Deu um salto importante com o Acto Único Europeu (1986), os Tratados de Maastricht (1993) e Amesterdão (1997). Criou-se o Mercado Comum e mais tarde a moeda única. Nesses quarenta e cinco anos iniciais conseguiu resolver a fractura que provocara duas guerras na Europa e constituir-se como a principal potência económica mundial. Esteve sempre do lado da história, tal como a história se desenrolou no nosso mundo ocidental. Muitos dos mais importantes países da CEE faziam parte da OTAN, a aliança anticomunista que travou o expansionismo soviético na Europa. O seu próprio processo de unificação económica acompanha a revolução mundial conhecida como a globalização. Passo a passo, pouco a pouco, consolidando o adquirido antes de tentar novos voos. Com prudência, um velho valor da política europeia desde Aristóteles.
Depois perdeu o pé, começou a deslizar. A guerra na Jugoslávia mostrou até que ponto a Europa deixara de controlar os seus destinos em termos de paz e guerra. Deveria ser uma guerra europeia, centrada numa intervenção europeia, e acabou por exigir uma intervenção americana. E, no vazio do pós-guerra fria, as últimas versões do gaullismo, versão Mitterrand, e versão Chirac, começaram a transportar para a Europa uma pseudo-identidade assente na competição com os EUA, o mais importante aliado da Europa, cujas tropas tinham garantido a sua liberdade, e o verdadeiro autor, depois de 1945, do plano que fazia assentar na “unidade” da Europa democrática, a sua paz e prosperidade.
Esta perda de pé, aconteceu no momento em que os socialistas dominavam a maioria dos governos europeus, de Guterres a Blair. Era a geração dos “líderes fracos”, de que muito se falava sem tirar consequências, e não se caracterizava por uma especial coragem em defrontar os problemas europeus, em proporção inversa da sua abundante retórica e do gosto pela “engenharia política”. E os problemas típicos de uma crise de crescimento da Europa somavam-se: a guerra da Jugoslávia mostrava a inanidade da defesa europeia, sem os EUA e para alguns isso era “humilhante”; as “políticas comuns” revelavam cada vez mais a desigualdade que geravam e o egoísmo nacional dos países que mais delas beneficiavam, e o “alargamento” a prazo, prometido com excessiva rapidez, suscitava cada vez mais preocupações. Face a tudo isto, os principais governantes, sob liderança de franceses e alemães, em vez de começarem a defrontar estes problemas, enterraram a cabeça na areia sob a forma de uma fuga em frente. O resultado final dessa fuga em frente é a Constituição Europeia.

(Continua)

A CARTA

Segundo o Diário Económico, o Primeiro-ministro prepara-se para escrever uma carta aos portugueses sobre o Orçamento Geral do Estado. O que nos vai dizer o Primeiro-ministro? Que subiu ordenados da função pública, que baixou impostos e que subiu pensões? Que aumentou as despesas de investimento? Que tudo é possível sob a sua governação?
O que é o OGE dizem-nos os jornais todos os dias, consta das declarações do Primeiro-ministro e do Ministro das Finanças, foi discutido no parlamento, motivou dezenas de artigos de diferentes opiniões, embora com a estranha tendência generalizada para considerarem o OGE como negativo para o país. A isso pode-se acrescentar a avaliação da Comissão Europeia e de uma série de estudos realizados pelas principais empresas internacionais de rating e auditoria, que acompanham a economia portuguesa, e cujo conselho é seguido pelos governos e pelos investidores estrangeiros. A Standard & Poor's, a mais importante empresa de ratings, no mundo, resume essa apreciação: “negativo”. Estranha falta de contraditório, que deve ser o motivo pelo qual a carta primo-ministerial vai ser escrita.
Se se confirmar a notícia está-se perante um típico acto de propaganda, porque duvido que seja o esclarecimento dos portugueses o objectivo da carta. Sendo assim, façam o favor de poupar o nosso dinheiro que este tipo de publicidade pelo correio é muito cara. Na minha caixa do correio, juntar-se-á à outra publicidade não solicitada, ou será que a lei que me defende a caixa do correio dos abusos publicitários não funciona para a missiva governamental?


ARAFAT


No momento da sua esperada morte Arafat é endeusado por aquilo que não é, nunca foi, e dificilmente será para a história: um “homem de paz”. Bem pelo contrário. Arafat, se a história tiver qualquer justiça, será julgado com grande severidade pelos resultados a que a sua política levou os palestinianos. Ele foi o principal responsável pelo impasse em que caíram as negociações com Israel para a independência do estado palestiniano, e pela última decisão de relevo que tomou como dirigente politico-militar, o iniciar da Intifada que ainda hoje prossegue, que trouxe um enorme sofrimento a palestinianos e israelitas, enfraqueceu até ao limite as forças mais moderadas a favor da paz, entregando uma parte significativa do controle dos territórios a grupos como o Hamas.
Com Arafat, nenhum líder palestiniano moderado sobreviveu, às suas manobras políticas, e várias vezes deu luz verde á criação de ainda mais milícias envolvidas em atentados terroristas, dependentes da Fatah. Será também avaliado pela enorme corrupção que grassa na Autoridade Palestiniana, que recebe fundos muito significativos, principalmente da UE, e os faz desaparecer quer em actividades terroristas, quer para contas no estrangeiro controladas pela elite política da OLP. Não é um balanço brilhante.